quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Quinto preceito - Capítulo II

CAPÍTULO II
É preciso, portanto, apoiar fortemente os sentimentos que nos vêm da Verdade; e como eles são frios e lânguidos, por causa do pouco vigor que o Entendimento lhes dá, é preciso sustentá-los e, por assim dizer, nutri-los e aquecê-los, tendo por eles uma grande atenção e uma firme crença. É preciso ajudar a graça, estender-lhe a mão e acolhê-la, quando ela se comunica a nós. É preciso não apenas escutá-la, mas escutar o que ela diz; ouvir não apenas as palavras, mas compreender o seu sentido, recebê-las no coração; em seguida, fazê-las passar do coração às mãos, ou seja, colocá-las em prática e dar efeito ao que ela ordena. E, como quando alguém nos fala baixinho ou de longe, acudimos atentamente a nossa orelha e redobramos a nossa atenção, da mesma forma, quando acontece de se pronunciarem estas Verdades para nós, sem dúvida é preciso uma escuta tanto mais atenta, visto que nós as pronunciamos em baixo volume. É preciso empregar todo o nosso estudo para compreendê-las e retê-las. Ora, esta vantagem nos vem da Graça mesma, tão logo nós nos dispomos a recebê-la. Asseguremo-nos de que, por menor que seja o esforço que façamos para nos colocarmos diante dela e nos tornarmos capazes de recebê-la, ela se aproxima de nós, ela vem ao nosso encontro. E para possui-la inteiramente, nós só temos que não rejeitar os secretos movimentos que ela realiza em nós. Não é verdade que não tornaríamos público em alto e bom som uma verdade constante e que não seria razoavelmente contradita, que arruinando nossa cobiça nos permitiria estabelecer nosso repouso? Será que nos livraríamos de uma infame e cruel tirania que nos oprime? Não ouvimos dizer, agora mesmo, que o meio infalível para adquirir a paz do espírito é reprimindo nossas paixões; e que se somos os mestres, somos felizes; e também que nossa felicidade cresce na mesma medida em que a arrancam de nós? Certamente, não há nada que mais tenhamos à boca, mas não há nada também que menos tenhamos dentro do coração. Tão logo nos pronunciamos esta Verdade, não pensamos mais nela; temos nosso espírito em outro lugar, faltam-nos igualmente a atenção e a crença. Cegos e infelizes que somos! Por que, buscando com tanto cuidado a tranquilidade e a alegria, e não desejando nada com mais paixão do que chegar a isso, fazemos ao mesmo tempo todas as coisas capazes de nos privar disso? Por que, querendo nos tornar felizes, buscamos as honras e as riquezas que são manifestamente contrárias ao nosso desígnio, que se opõem ao nosso objetivo, e não apenas nos impedem de chegar à felicidade, como também nos precipitam na miséria? Dizemos que é preciso nos desfazer da ambição e da avareza, que é preciso apagar nossa cobiça e, no entanto, fazemos o possível e o impossível para mantê-la, dando-lhe material para que se reacenda. Certamente, nós nunca entendemos o sentido destas Verdades, nunca as compreendemos ou, pelo menos, nunca acreditamos nelas. Não nos persuadimos dos inconvenientes e das desordens que são causadas em nosso espírito quando nossas paixões estão desregradas.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 485-487.

Quinto preceito - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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QUINTO PRECEITO
QUE devemos penetrar o verdadeiro sentido da Verdade

CAPÍTULO PRIMEIRO
Vimos acima como é que, de duas maneiras diferentes, o Entendimento peca em relação à Vontade: não lhe fazendo um fiel e justo relatório da condição das coisas; e lhe apresentando a Verdade sob imagens tão frágeis e lânguidas que, muito longe de tocá-la, ela não lhe causam a mínima emoção. O primeiro destes inconvenientes parece ser suficientemente reparado pelas máximas e pelas precauções de que fomos instruídos até aqui. Em seguida, nos dedicaremos a encontrar remédios para o outro. Sem dúvida, a indiferença e o peso com o qual o Entendimento age para lhe oferecer este último serviço, faz com que ele seja totalmente inútil. E, da mesma forma que um braço fraco e impotente não nos ajuda em nada, mesmo que ele não nos faça mal algum, também as Ideias que o Entendimento forma, por mais que não sejam falsas, são tão temerárias e tão pouco ativas, que a alma não se excita em nada e nem mesmo as ressente. São estes pensamentos que um Antigo nomeou muito apropriadamente de paralíticos e sem movimento, por causa do fato de elas não serem capazes de estender a mão para a Vontade, nem lhe dar a mínima assistência [no original latino, Nieremberg escreve: “Istae sunt cogitationes, quas egregie Alchuuinus paralytica dixit, sine motum sunt; nequeunt porrige voluntati manum; nequeunt gubernare lacertum”. O “antigo” a que se refere o tradutor é Santo Alcuíno de Iorque (735-804), que é considerado o Patrono das universidades cristãs; ndt]. Assim, vê-se ordinariamente que uma verdade igualmente entendida e aprovada por duas pessoas, a uma excita até ao ponto de entrar profundamente em seu coração, enquanto que à outra apenas toca muito dificilmente. Eu vos pergunto, o que mais poderia causar esta diferença, se não fosse a languidez do Entendimento, que não toma como deveria esta Verdade, que não a anima, que não lhe dá nem calor nem força, e que, por sua moleza, impede sua eficácia? Sem dúvida, é preciso que ele [o Entendimento; ndt] esteja capacitado, no seu devido fundamento, na disposição necessária para recebê-la. É preciso que ele se coloque diante dela, que ele a acolha com alegria, que se torne capaz de seu efeito, que ele ajude suas operações. De outra forma, certamente elas [as operações; ndt] lhe serão inúteis e, por mais que ela seja a coisa mais forte e mais penetrante do mundo, não receberemos nem mesmo a mínima impressão. Aquilo que se nos diz nos toca as orelhas, mas não toca o nosso coração. Por mais presentes que estejamos a quem nos fala, pode-se dizer que não estamos diante dele; e mesmo que, de olhos fixos, com rosto sóbrio, com corpo firme e imóvel, façamos parecer que estamos atentos, não temos a mínima atenção; escutamos como quem não escuta. Quanto homens, eu vos pergunto, ouviram a Verdade mesma falar, quando ela veio sobre a Terra – que, para se comunicar a nós, assumiu um corpo mortal e se revestiu de nossa Naureza – e aprovaram-na, aplaudiram as exortações que fez de abandonar o mundo e, no entanto, permaneceram ligados ao mundo, não se desfizeram de suas honras e de seus bens e, pior ainda, não renunciaram a seus vícios? [neste trecho, no original latino, Nieremberg cita alguns nomes: “Quot sunt, qui verissimum habuerunt, qui saepius audierunt, quod magnus Antonius, quod Simeon Stylita, quod Franciscus, subita sapientia: sed retinuerunt suas opes, &, quod peius est, opera, vitia?”, que poderia ser traduzido da seguinte forma: “Quantos são aqueles que escutaram com muito verdadeiro, que muitas vezes escutaram aquilo que, com sabedoria, o grande Antônio, Simeão Estilita e Francisco disseram: mas mantiveram suas riquezas e o que é pior ainda, continuaram nas ações depravadas e nos vícios?”. Os três personagens citados são: Santo Antônio de Pádua (c. 1195-1231), São Simeão Estilita (c. 389-459) e São Francisco de Assis (1182-1226); ndt]. Houve outras a quem esta mesma Verdade persuadiu, entrou inteira no coração, se imprimiu vivamente em seu espírito. Mais uma vez eu vos pergunto, de onde é que pensamos que isso possa proceder, se não for do fato que nestes o Entendimento se agarrou à Verdade fortemente e com vigor, enquanto que naqueles ele agiu com covardia e negligência? Aquele insolente Rei do Egito que, por ter vencido quatro Reis, se tornou tão orgulhoso, para não dizer tão brutal, a ponto de não apenas tirar deles as prerrogativas e as marcas de sua grandeza, mas tirando-lhes também os privilégios da humanidade, impondo-lhes o jugo com o mesmo império que ele impunha aos animais, atrelando-os a seu carro de triunfo, terá, alguma vez, posto os olhos no movimento das rodas de seu carro? Ou seja, terá ele visto a mais natural imagem da instabilidade da Fortuna? Terá, alguma vez, considerada a Fortuna mesma, a ponto de entender que ela é inconstante e variável? No entanto, ele não fez sólidas reflexões, a ponto de, ao ver que um desses Reis olhava muito fixamente uma roda, e lhe tendo perguntado o motivo, ele achou que aquele Rei estava admirado com a velocidade com a qual ela girava, e ele achou que aquele Rei tirava prazer do ver como os raios da roda que estavam no alto, de repente, caiam e se encontravam embaixo; foi então que ele se deu conta dos dois estados da vida e começou a deplorar a inconstância das coisas do mundo. Foi então que este Príncipe soberbo, que nunca se havia deixado tocar por esse tipo de pensamento, abriu todo o seu espírito e, começando a temer para si a mudança que via no outro, começou a desconfiar da duração de sua felicidade, e começou a considerá-la suspeita de inconstância, e mudou o cativeiro desses Reis escravos numa condição suportável e doce, e começou a tratá-los com toda sorte de favores, daí em diante [no original latino, Nieremberg cita explicitamente o Rei Sesóstris, no entanto, não está claro a qual dos três reis com este nome se refere o autor; ndt]. De onde vem o fato de que gritemos tão frequentemente contra a Fortuna, que nos lamentemos sem cessar dela, que digamos que ela só nos dá coisas do Mundo, que este brilho com o qual ela nos deslumbra é não apenas falso como também perigoso, que é um brilho fatal que nos conduz ao precipício? De onde vem que afirmemos isso tão seriamente, mas não sejamos persuadidos disso? É porque não penetramos no interior da verdade e só a vemos pelo lado de fora. Não conhecemos de forma alguma este nada sobre o qual falamos tão fortemente; caímos numa manifesta contradição; tornamo-nos ridículos ao dizer que a coisas do mundo não são nada, ao mesmo tempo em que corremos tão efusivamente para elas. Se, de verdade, acreditássemos nisso, nós as rejeitaríamos constantemente; elas seriam o contínuo objeto de nosso desprezo. Como é possível que aquilo que não é nada posso nos atrair tão poderosamente a ponto de reter o nosso coração? Esta força só pertence a Deus; sem dúvida, ela é própria apenas daquele que é todas as coisas. Será que poderíamos, aqui, admirar suficientemente, deplorar suficientemente a nossa loucura de fingir dizendo que os bens e as honras do mundo são um nada, mas ter a impudência de preferir este nada à Virtude? De preferi-lo à mais nobre e preciosa de todas as coisas? Somos impostores e não cremos no que dizemos. Temos, em nossa boca, muito excelentes propósitos, mas não os temos no coração. Pronunciamos salutares máximas, glorificamo-nos dizendo belas sentenças; mas não temos correta inteligência delas. A languidez de nosso Entendimento faz com que elas sejam inúteis e sem fruto. Solicitamos aos outros que façam o bem, nós os animamos com nossos discursos; mas não lhes mostramos o exemplo. Com isso, permanecemos na frieza e na preguiça, ignorando as coisas com as quais queremos lhes instruir. Somos como aquelas pessoas que falam enquanto dormem, que não conseguem se escutar e são escutadas por outros. Somos semelhantes a um instrumento musical que ninguém escuta o som que ele faz e, portanto, não causa prazer algum. Não consideramos que as aparências da Verdade só são conhecidas por nós pela casca, e nos enganamos de que ela esteja onde, com efeito, ela não está. É por isso que não somos capazes de valorizá-la como realmente vale. Como nós não a vemos, ela não nos excita e não nos parece digna de ser amada. Quem olha apenas para o estojo onde se guardam pedrarias, julga bem que elas estejam dentro, mas não é capaz de estimá-las segundo seu verdadeiro valor. Nós paramos na superfície da Verdade; considerando apenas sua aparência agradável e brilhante; mas não a buscamos mais fundo; nós apenas a estimamos por seu estojo. Que certeza poderemos ter acerca dela com este tipo de estimação? 

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 480-485.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Quarto preceito - Capítulo III

CAPÍTULO III
Como é possível que, nisso, não tendo nada que nos estimule o suficiente a sermos mentirosos, não façamos nada com mais liberdade e em maior quantidade do que mentir? Sentimos vergonha, ficamos incomodados por sermos chamados de enganadores; e no entanto enganamos com muita facilidade e, às vezes até – o que é ainda mais estranho –, sentimos um certo prazer em enganarmos a nós mesmos. Entre todos os homens que podem servir de motivo para atiçar nossa cólera, não há nenhum contra quem ela se excita e se inflama mais fortemente do que contra aqueles, sob uma aparência de franqueza e de sinceridade, brincam conosco e nos traem. Isso não podemos suportar e, normalmente, testemunhamos extremos ressentimentos. No entanto, ficamos felizes de brincar conosco mesmo e nos trairmos a nós mesmos. Temos consciência de sermos astutos e enganadores com os outros; mas não temos nenhum escrúpulo de o sermos conosco mesmos; não apenas suportamos isso, como também isso nos agrada; e nossa depravação vai até ao ponto de, nisso, encontrarmos até mesmo alguma delícia. Tão logo descobrimos a Verdade, e este belo Astro derrama seus raios sobre nós, levamos as mãos aos olhos. Nós os fechamos para não ver sua luz; amamos as trevas e sentimos prazer com a obscuridade; como aqueles pássaros infelizes que não suportam a claridade do dia [no original latino, Nieremberg cita as corujas e os gatos almiscarados, ambos animais de hábitos noturnos; ndt]; às vezes até, muito pior do que eles, visto que o fazemos voluntariamente e por desígnio, enquanto que eles o fazem por fragilidade e por impotência. Se, segundo nosso próprio sentimento, há infâmia em fazer calar a Verdade, por causa do temor que temos do suplício e da morte mesma, será que nos cremos honestos ao suprimi-la por causa de um respeito muito menor do que este? Ou seja, para adquirir as riquezas e as outras vantagens desta vida – que são passageiras e vãs –, e adquiri-las perdendo os bens do Céu – que são sólidos e permanentes, e que o amor e a prática da Verdade faz com que sejam infalíveis? Havia uma Lei entre os Egípcios que obrigava os estrangeiros a ir uma vez por ano diante do Magistrado, para declarar seus exercícios e suas atividades; e que condenava à morte aqueles que, nisso, fossem surpreendidos mentindo. Eles acreditavam criminoso e indigno da vida aquele que a fantasiasse e não falasse dela com fidelidade. Podemos pretender-nos inocentes, nós cujas vidas são uma fantasia e uma mentira perpétua? Nós que temos prazer em nos enganar para nos escusar de bem viver? De que serve nos adularmos, se somos criminosos e não abraçamos a Verdade? Sem dúvida, nos devemos propô-la como a soberana regra de nossos pensamentos e de nossas ações; como aquela a que todas as criaturas se reconhecem obrigadas naquilo que fazem; a quem elas não apenas devem o ser como também o bem ser. E como a devemos amar, visto que, através dela, atingimos o máximo da felicidade! Será que não teríamos nem amor nem sentimento algum por aquilo que toda a Terra confessa e publica? Por aquilo que o Céu mesmo reverencia? Por aquilo que atrai todas as graças e faz descer todas as bênçãos? Será que não teríamos respeito pela coisa do mundo que mais merece respeito? Aquela coisa, diante da qual, se dobram e se humilham os mais nobres e os mais sublimes? Abracemo-la, portanto, de todo o nosso coração; consagremos a ela todas as nossas afeições. Ou, se não somos capazes de um tão alto efeito, se não lhe podemos dar nosso amor, não façamos dela, pelo menos, o motivo de nosso ódio. Humilhemo-nos em sua presença e pareçamos, ao menos, tomados por um religioso e santo temor. Será que somos mais seguros do que o Céu, que estremece, que treme, diante dela? 

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 477-480.

Quarto preceito - Capítulo II

CAPÍTULO II
Assim, portanto, qualquer um que ame a paz e deseje adquirir o repouso, qualquer um que pretenda a felicidade, cuja rara vantagem é ser imutável e eterna, deve amar constantemente a Verdade, que é a base e o fundamento imóvel da felicidade. Nós aprendemos que ela se encontra na Razão, como sua fonte; na Razão purificada dos erros e, por assim dizer, do lixo e dos resíduos da Opinião. Esta Razão é a nobre e preciosa matéria de que é feita a Justiça e todas as outras Virtudes. Ela as produz e as mantém; ela é a sua Mãe e Nutridora. É um fogo divino que nos esclarece e que, conservando-se pura dentro de nós, é um penhor de nossa alegria muito mais nobre e certo do que, para os Romanos, era certa a duração de seu Império, aquele fogo sagrado que as Virgens guardavam com tanto cuidado . É preciso, por isso, buscar sem cessar a Verdade; tirá-la das coisas à força; abraçá-la, por assim dizer; adquiri-la, em seguida, de tal maneira que ela se torne um de nossos mais poderosos hábitos; que ela brilhe até nos nossos mínimos discursos; que ela os faça ser constantes e indubitáveis; e que ela dê também a nossos pensamentos a Veneração das coisas divinas. Disso, tiraremos a rara vantagem de que nossas palavras ordinárias terão a força e o peso dos juramentos; de que nossos conselhos serão escutados com o respeito que se tem aos Oráculos; de que nossos movimentos serão recebidos como se viessem do Céu. Mas, se acontece de sermos negligentes na prática de um tão grande bem, não o faremos impunemente, pois atrairemos para nós uma infinidade de males; sendo certo que a ciência que é sem ação, e que podemos dizer que é ociosa e morta, vale muito menos que a ignorância mesma. É por causa deste defeito que os Antigos Sábios infelizmente caíram na depravação notada pelo grande Apóstolo [trata-se de São Paulo; ndt]. Ele disse: é por não ter colocado em ação seus conhecimentos que eles foram abandonados às paixões da ignomínia e a seus sentidos reprovados. É por isso que, não apenas não fazendo o bem, eles começaram a fazer também o mal; e se encheram de iniquidade, de impureza, de avareza, de ociosidade; eles se tornaram operários da inveja e das calúnias; ficaram cheios de inveja, de homicídio, de engano, de fraude; eles eram caluniadores, orgulhosos, cheio de ódio a Deus, injuriosos contra o próximo, desobedientes de seus pais, sem amizade, sem franqueza, sem misericórdia. Consideremos, eu vos peço, em que abismo de males eles precipitaram, quando tornaram inúteis, por sua negligência, as luzes da Verdade que, para eles, se tornaram fracas e sombrias, de forma que toda verdade que pretendiam tirar do saber mais sublime seria incapaz de esclarecer verdadeiramente e seria incapaz de encher o espírito, senão de trevas e de confusão.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 475-477.

Quarto preceito - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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QUARTO PRECEITO
QUE é preciso buscar cuidadosamente a Verdade

CAPÍTULO PRIMEIRO
Tudo o que acabamos de dizer é para aqueles que, não tendo a segurança para combater abertamente os males, devem recorrer ao artifício para os evitar e que têm necessidade de compensar a falta de coragem com a habilidade. É certo que não seríamos capazes de ter cuidado suficiente na garantia contra a dor e a tristeza; não há nada que possamos fazer para nos defendermos das flechas de dois tão poderosos inimigos. É preciso, para isso, sem dúvida, um espírito firme e constante; que faça uma séria profissão de buscar, em todos os lugares e sempre, a verdade; que a proponha a si soberanamente; e cujo maior prazer, assim como a maior inclinação, seja abraçá-la e segui-la. Ora, antes de todas as coisas, ele deve saber que esta constância e esta firmeza só lhe podem vir da Razão. E é sobre este fundamento que se apoiou o Filósofo que disse que é preciso opor a coragem à Fortuna, a Lei à Natureza e a Razão às paixões [no original latino, Nieremberg cita nominalmente o filósofo Diógenes, sobre o qual já falamos anteriormente; ndt]. E, para bem falar a verdade, quem poderia, eu vos pergunto, melhor acalmar as tempestades que a Fortuna excita do que um espírito resoluto, que nada é capaz de abalar? Quem ensina e melhor guarda a Justiça do que a Natureza? Por quem a inconstância e a impetuosidade das paixões são mais bem impedidas do que pela Razão? É dela que a Verdade tira o seu Ser. Ela vem do Céu, ela procede de Deus, sua primeira e natural Origem. A Opinião, pelo contrário, que a falsifica, que é como seu Macaco, que afeta e tenta se passar por ela, vem da terra, procede dos sentidos corrompidos, ela é filha do engano e da ignorância. Enquanto que a Verdade ecoa a excelência do lugar de onde saiu, é igual e imutável, faz com que aqueles que a amam não sejam inconstantes e diversos, mas sejam sempre iguais a si mesmos; a Opinião, pelo contrário, que sente a baixeza de seu nascimento, e que, por esta razão, é flutuante e incerta, comunica seu defeito a seus sectários e os torna, como ela, incertos e flutuantes. Aquela nos enche de alegria e exerce sobre nosso espírito o poder de um Rei legítimo; esta nos domina como um Tirano, nos enche de problemas e de confusão. A primeira caminha sozinha e não tem necessidade de um séquito para ser autorizada e para estabelecer o seu império; a outra tem um séquito insolente e tumultuoso, é acompanhada pelas paixões, assim como de outros satélites violentos e cruéis. Numa palavra, a Verdade é simples, é uma, é sempre a mesma. É por isso que dois grandes Santos a nomearam A Lei universal das Artes, a Arte do Operário todo-poderoso [no original latino, Nieremberg escreve: “Vere a divinis Augustino & Prospero, dicitur lex omnium artium; & ars omnipotentis Artificis”. Trata-se, portanto, de Santo Agostinho (354 - 430) e de São Próspero de Aquitânia (c. 390 - c. 465); ndt]. Ela é a guia fiel da Virtude, e regra infalível dos hábitos. Seus sentimentos são, em todos os lugares e sempre, iguais; ela é invariável em seus julgamentos e pensamentos. A Opinião, pelo contrário, está numa miserável e perpétua irresolução. Aquilo que, antes, ela aprovava, no presente ela condena; ela não se determina; ela é sempre diferente de si mesma. Se, portanto, queremos que nosso repouso tenha um fundamento sólido e firme, é preciso que o estabeleçamos sobre a Razão e sobre a Verdade. Só há uma porta através da qual ela entra em nós; mas há muitas através das quais a Opinião se introduz, ela se arrasta por inúmeras aberturas – por nossos sentidos, por nossa imaginação, por nossos desejos, por nossos apetites. Não apenas ela excita e remexe as paixões, como também ela concorda com elas em diversos assuntos, ela segue seus movimentos e, com elas, muda frequentemente. Disso é que vem o fato de que aqueles que ela possui, não estando de acordo consigo mesmos, são incapazes de o ser também com os outros. Isso, porém, não acontece àqueles que são governados pela Razão; porque, recebendo de uma única fonte e como que de um único canal, a luz da Verdade, não são distraídos por esta multidão de falsas imagens que a Opinião costuma formar, e que impedem o espírito de agir com clareza no discernimento das coisas. É por isso que se tem razão de dizer que todas as máximas verdadeiras são irmãs, já que são filhas de um mesmo Pai, porque vêm todas do Entendimento [no original latino, o autor se refere explicitamente a Proclo Lício (412 - 485); ndt]. Assim é que, certamente, vemos as pessoas de bem e as razoáveis sempre conformes nos sentimentos e nos hábitos; enquanto que, ordinariamente, os outros são divididos e diversos, não conhecem a Verdade ou só a conhecem imperfeitamente, são semelhantes aos navios desgarrados durante uma noite obscura que não veem o Norte e não conseguem manter a rota direita. Com isso, podemos dizer que eles têm uma luz que permanece ofuscada, apagada pelas trevas da ignorância; uma luz que, sendo estendida sobre todas as ações de suas vidas, servindo como um véu espesso que lhes cobre os olhos, faz como que se choquem em todos os encontros e faz com que, como cegos miseráveis, tropecem incessantemente.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 472-475.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Terceiro preceito - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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TERCEIRO PRECEITO
QUE devemos nos dedicar seriamente a nos distrair da Opinião

CAPÍTULO PRIMEIRO
Eis como, por esta indústria da Opinião corrigida e convertida a um bom uso, acalmaremos as agitações de nosso espírito, pacificaremos os conflitos e os movimentos de nossa Vontade. Por mais difícil e intratável que ela possa ser, a satisfaremos plenamente; ela não terá mais do que se lamentar; fecharemos inteiramente a sua boca. Ora, como ela é flexível e dócil, como não é de sua natureza que ela se torne problemática e rebelde e que, se ela o é, deve-se apenas à falta de instrução e de disciplina, a venceremos e ela abraçará o bem onde quer que ele se apresente e sob qualquer aparência que a Razão lhe mostre. Mas, é nisso que é necessário que nos governemos hábil e eficazmente. É preciso fazer com ela o que uma Mãe faz com seu filho. Da mesma forma que, quando ela vê que ele leva sua mão sobre uma faca, ela tem o cuidado de afastá-la dele; e vendo que ele se obstina a querê-la, gritando e se atormentando por causa disso, ela a retira dali e coloca em seu lugar uma noz ou uma batata, acalmando-a definitivamente; assim também, quando nossa vontade concebe algum desígnio ruinoso, quando solicita coisas capazes de lhe fazer mal, quando leva sua mão sobre o gume da Fortuna, por assim dizer, é preciso afastá-lo dela, subtrai-lo e colocar um bem em seu lugar, para que, ligando-se a ele, ela se acalme e nos deixe em repouso. Mas, porque a aparência sob a qual a Razão lhe mostra o bem não é a que aparece no início, porque nunca descobrimos a verdade de uma só vez, e porque um antigo Filósofo teve razão de dizer que ela se esconde no fundo de um abismo [no original latino, Nieremberg se refere a Demócrito; ndt], é preciso que o Entendimento aplique todos os seus esforços no sentido de procurá-la, é preciso que ele penetre fundo nas coisas até ao ponto de encontrá-la; da mesma forma que os avaros, que vão buscar o ouro até ao centro da terra. Da mesma forma que eles se dedicam noite e dia por causa disso e não param nunca, enquanto não descobrirem alguma coisa, também é preciso que nos dediquemos até encontrarmos nada. Que felicidade e que riqueza é encontrar esse nada! Pois são apenas coisas que o vulgo estima tanto, eleva a um tão alto ponto e deseja tão apaixonadamente. Aprendamos, aqui, a nos servir utilmente de nossa liberdade. Usemos, da forma como se deve, das luzes de nosso Entendimento. Façamos valer bem este instrumento tão nobre e tão capaz de operar nossa alegria. Que ele se empregue nisso e se dedique com todas as suas forças e com todas as ajudas que lhe vêm da Razão; que ele percorra Céu e terra para nos livrar, ou pelo menos, nos distrair de uma Opinião falsa e perigosa; e para nos persuadir de que aquilo que acreditamos ser um mal não o é. Será que sabemos que a memória das coisas duras e desagradáveis é, por si mesma, dura e desagradável? Elas são certamente mais cruéis do que aquela Serpente que traz seu veneno nos olhos, visto que ela só fere através da vista, enquanto que elas nos ferem com a nossa própria; elas se imprimem em nós, por nós mesmos; e se tornam o fatal instrumento de nossa infelicidade. Nisso, sem dúvida, elas são ainda piores, já que não ferem o corpo, mas o espírito; já que ofendem a parte que nos é mais sensível e difícil de curar; aquela parte na qual as menores chagas, sendo perigosas, se tornam facilmente incuráveis. Certamente, temos pouco cuidado com nosso repouso, ligando-nos à lembrança de coisas que nos inquietam e nos causam pena, afligindo-nos com pensamentos tristes e funestos, sem ousar nos distrair deles e transportar nosso espírito para além. Se nos acontece, alguma vez, de esclarecer e se dissiparem as nuvens que nos cobriam; se suspendemos nossa dor e eliminamos nossos problemas; tudo isso é apenas por um momento e, logo em seguida, voltamos a estar como estávamos. Como as crianças que persistem em querer brincar com o fogo, por mais que se queimem e não conseguem se impedir, de forma alguma, nem mesmo com o mal que dele recebem, de levar as mãos. No entanto, temos um meio bem presente e bem fácil para nos garantirmos contra a tristeza. Não consideremos as coisas desagradáveis, quando elas nos acontecerem; e não pensemos mais nela, depois que passarem. Não empreguemos tão mal a nossa memória, renovando a imagem dessas coisas. E se elas retornam, cuidemos que elas não nos causem nem terror nem espanto. É certo que quanto mais manipulamos uma ferida, tanto mais ela se envenena e cresce. De mesma forma que não somos tocados pelos males que não sabemos que nos vieram ao encontro, não sentiremos aqueles de que não nos lembramos mais; eles parecerão não terem acontecido, e nosso esquecimento produzirá o mesmo efeito que nossa ignorância. Sendo assim, não seria sinal de extrema fraqueza nos atormentarmos com as calamidades desta vida? Visto que o remédio é tão fácil de se empregar; e visto que, para nos defendermos, basta apenas não pensar nelas. Somos pouco razoáveis, quando temos tanta paixão e tanto ardor pelos bens; sobretudo quando eles têm em comum com os males o fato de só nos tocarem na medida em que são conhecidos, e quando podemos tão facilmente enganar o sentimento que eles nos dão. Por que é, para nós, tão difícil perdê-los, se, quando se trata de nossa felicidade, nos é indiferente tê-los ou não os ter? Se, não os possuindo, não deixamos de ser contentes? E, pelo contrário, os possuindo, não somos capazes de evitar a nossa miséria? Pensemos num avaro que perdeu seu tesouro, sem o saber; ele não deixará de se regozijar dele, imaginando ainda o ter; enquanto que, se lhe dissessem que ele não o possuísse mais, ele ficaria em desespero. Eu vos pergunto, quem mais, além da Opinião, produziria nele estes dois efeitos? Certamente, não é preciso outra prova para justificar que, assim como o mal que ignoramos não nos toca, aquele no qual não pensamos mais não é capaz de ser mais do que muito pouco sensível.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 467-471.

VI Tópico sobre o uso da opinião - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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TÓPICO PRECEITUAL SOBRE O USO DA OPINIÃO
SEXTO LUGAR
DA razão da providência

CAPÍTULO PRIMEIRO
Quanto ao mais, se os Sábios do Paganismo – que só tinham as luzes naturais e não eram iluminados do alto como nós o somos [no original latino, Nieremberg escreve: "Caeterum in plurimis, fatorum consideratio Demetrium impulit, pluresque antiquorum ad malorum opinionem ponendam, aut portandam; scilicet, necessitatis lex coegit ad patietiam"; o que poderia ser traduzido assim: "além do mais, em muitíssimas coisas, a consideração dos fatos estimulou Demétrio e muitos outros antigos a deporem as opiniões sobre os males ou carregá-las consigo; ou seja, a força da necessidade os coagiu à paciência". Ao que tudo indica, trata-se do mesmo Demétrio I, da Macedônia (337 a.C. - 283 a.C.), citado anteriormente; ndt] – descobriram que era um grande alívio para seus males pensar que eles os deviam necessariamente sofrer; se eles tomaram a resolução pela paciência, a partir da consideração da ordem imutável do destino; que vantagem teremos nós e que meio maior do que esse para acalmar nossas penas e problemas? Sabendo, como sabemos, que não é puramente por necessidade que os sofremos, mas porque agrada a Deus, cuja única vontade nos determina àquilo que melhor que parecer, nos governa soberanamente e realiza todo o nosso destino. O que poderia haver de desagradável naquilo que vem dele? Que acidez ou amargura poderíamos temer encontrar nessa bebida que ele nos apresenta? Sejamos sérios: não é o destino que nos força e que nos leva, mas é Deus que nos atrai e nos conduz. Se queremos saber para onde [Ele nos leva; ndt], fiquemos certos de que é direto para ele; mas que nossa curiosidade não passe disso e não se coloque a pergunta sobre a via pela qual ele nos levará. Trata-lo-emos com mais indiscrição do que tratamos um guia ou um Cocheiro a quem deixamos que siga o caminho que quiser? Quereremos prescrever-lhe uma rota, quando não prescrevemos ao Piloto sob a conduta de quem embarcamos? O que importa o caminho que ele quer que sigamos, visto que chegaremos onde queremos? Mas, nos lamentamos de que Deus nos conduz por um caminho rude e acidentado, por um caminho coberto de pedregulhos e cheio de espinhos. Não duvidemos que este seja o mais curto e o mais seguro. E não o tenhamos por sem beleza, considerando que ele é de sua escolha, e lembrando-nos da suficiência e da bondade de um tal guia. Será que somos mais esclarecidos e mais sábios do que ele, para querermos lhe ensinar aquilo que ele deve fazer? Certamente, é um raro alívio, para nós, repousarmos sob seus cuidados e sob sua providência. O que fazem, ordinariamente, as grandes almas é se colocarem entre os braços de sua suprema sabedoria. Mas, este discurso, exigindo maior extensão do que podemos aqui, será deixado de lado, para que o retomemos em outro ponto.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 465-467.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

V Tópico sobre o uso da opinião - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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TÓPICO PRECEITUAL SOBRE O USO DA OPINIÃO
QUINTO LUGAR
DO exemplo

CAPÍTULO PRIMEIRO
Praticaremos em seguida outro remédio que não é menos soberano que os precedentes. Ele consiste em nos propormos o exemplo daqueles que estiveram, como nós, na dor e no sofrimento. Nisso, no entanto, é preciso que evitemos imitar o vulgo que, por uma boba e cruel maneira, se consola com a multidão de miseráveis e retira da pena dos outros o alívio e o prazer. Coloquemos, portanto, diante de nossos olhos aqueles que sofreram seu mal com constância; aqueles que o suportaram com alegria; aqueles cuja paciência foi além dos termos ordinários. Pensemos naquele nobre Cidadão de Reggio [assim se lê no original latino: “Composuit Python Rheginus mortem cum gloria virtutis, & animose provocavit concives”, que poderia ser traduzido assim: “Pitão de Reggio viveu a morte com a glória da virtude; e animadamente provocou seus concidadãos”. O nobre cidadão a que se refere o traduto é o filósofo pitagórico Pitão de Reggio (séc. IV a.C.), que viveu em Reggio, na Sicília, durante a tirania de Dionísio I; ndt] que Dionísio, o Tirano, que havia cercado a cidade, o amarrou a uma máquina destinada a derrubar as muralhas; a fim de que aqueles de dentro se detivessem pelo temor de causar algum mal àquele que tanto bem havia feito à pátria, de forma que sua vida, certamente, lhes devia ser muito cara. Pensemos nele solicitando e gritando-lhes para virarem suas armas para aquele lado; para não o pouparem, a fim de não caírem no inconveniente de pouparem seus inimigos; e, por uma ruinosa consideração por sua salvação, se tornassem autores de sua própria perda. Seguramente, sentiremos vergonha de ver que se tenha matado um homem que tenha desejado a morte, que a tenha pedido insistentemente e com as mãos juntas; e que não sejamos capazes de suportar os menores males que nos façam sofrer minimamente. Se não tivermos perdido completamente a razão, enrubesceremos diante de nossa impaciência, ao considerar sua invariável firmeza. Com isso, nos lembraremos da fragilidade de nossa condição, e de que não há nada que diminua tão potentemente o peso dos fardos que ela nos impõe do que pensar que é absolutamente necessário que nós os carreguemos e que não seremos capazes de nos defender deles. Nós diremos: “não somos Deuses, mas homens frágeis e mortais; é inevitável que soframos. Todas as coisas de que nos lamentamos são necessariamente causadas pela enfermidade de nossa Natureza”.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 464-465.

IV Tópico sobre o uso da opinião - Capítulo II

CAPÍTULO II
Experimentaremos também o quanto este remédio é excelente contra as diversas infelicidades de que formos acolhidos. Transportemo-nos em espírito um pouco para além do tempo em que elas nos tiverem chegado; imaginemos aquilo que, ordinariamente, acontece nesses encontros, que, por mais pesado que seja o flagelo que caia sobre nós, dois meses se passarão apenas para que nem mesmo nos lembremos mais, para que nossas chagas cicatrizem, para que nos acomodemos outra vez com a Fortuna e para que nos regozijemos como se nada nos tivesse acontecido. Quem nos impede, eu vos pergunto, de antecipar este tempo? E por que, já no presente, não nos colocamos nesses termos?  Se é certo que o tempo traz doenças desta natureza tão obstinada, indubitavelmente a Razão é ainda mais capaz de vencer, e devemos esperar ainda mais a nossa cura da firmeza e da constância desta última do que da desigualdade e das mudanças da outra. Assim como é nossa Opinião nos faz sofrer mais do que nosso próprio mal, certamente não há nada de mais fácil do que a corrigir. Arranquemos de nosso espírito esta causa fatal de nossas dores; os males que recebemos da Fortuna serão apenas muito pouco sensíveis. Um dos mais Sábios homens da Lacedemônia, estando num Templo, ocupado com a cerimônia dos Sacrifícios que, segundo a superstição do Paganismo, honravam suas falsas Divindades, foi informado da morte de seu filho [no original latino, Nieremberg escreve: “Pulvillus perinde contempsit recens nuntium defuncti filii...”. Trata-se de Marco Horácio Pulvilo (séc. IV a.C.), que foi um dos primeiros cônsules romanos do primeiro ano da República (509 a.C.). As fontes clássicas também mencionam Pulvilo como o cônsul que consagrou o templo de Júpiter, construído pelos últimos reis de Roma, no Capitólio; ndt]. Como ele sabia muito bem da importância da precaução que recomendamos – de antecipar o tempo em que nosso espírito, retornado da desordem na qual algum acidente sinistro o lançou, se recoloca na sua primeira posição, e volta à serenidade e à tranquilidade –, ele não se deixou tocar por esta novidade, como se ela lhe fosse indiferente ou como se ele já soubesse dela há muito tempo. Mas, como se esperavam dele as ordens sobre o que lhe fazer, tendo continuado as suas orações sem as interromper por um suspiro que fosse, nem dar qualquer sinal de tristeza, ele disse: enterrem-no onde julgardes mais a propósito; e não se emocionou nem um pouco. Sem dúvida, ele não ignorava que seu filho não era imortal; ele sabia o suficiente que ele não era feito de uma matéria mais forte do que a do resto dos homens. Ele o considerava como um vaso de barro que não causa preocupação a ninguém quando se quebra. E, da mesma forma que, quando o cerne se separa da concha, nós a jogamos fora, nós a desprezamos; assim também ele pensou que a alma, estando separada do corpo; que este estojo, por assim dizer, não tendo mais esta rica peça de onde ele tira todo o seu valor, importava muito pouco o que seria dele; ele não merecia que se dedicasse muito cuidado para com ele.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 462-464.

IV Tópico sobre o uso da opinião - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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TÓPICO PRECEITUAL SOBRE O USO DA OPINIÃO
QUARTO LUGAR
DA comparação dos tempos

CAPÍTULO PRIMEIRO
Encontraremos ainda muito alívio no levar nosso espírito para além do acontecimento das coisas; imaginando o estado onde estaríamos quando elas não existirem mais; e o que nos acontecerá quando elas tiverem passado. Como aquele que encontra um atoleiro no meio de seu caminho, o cruza com um salto para não se sujar; nós também cruzaremos com o pensamento aquilo que suja a pureza de nossa alma – as delícias e as volúpias – e refletiremos em seguida que, após a sua extinção, quando nossos ardores forem apagados, quando a violência de nossas paixões relaxarem, só nos restará, em meio a tantas satisfações que nos haviam proposto, desgosto e arrependimento. Não tendo encontrado o sólido contentamento que nos haviam prometido, não as desejaremos mais; nós as consideraremos, se não com desprezo, pelo menos com indiferença e frieza. Não seremos tocados por elas e, se não tivermos horror a elas, pelo menos não as desejaremos. Nesse meio tempo, a Razão nos dirá que, quando elas tiverem passado, não restará mais àqueles que se satisfizeram do que àqueles que se abstiveram, que estes e aqueles, nisso, são iguais; e que é um engano acreditar que os primeiros sejam mais satisfeitos e felizes que os outros. Pelo contrário, é certo que, por causa do remorso que elas deixam, eles estão em pior condição; e se há desvantagem, ela é menor do lado daqueles que não as conheceram, do que daqueles que as possuíram. Quantos problemas têm aqueles, enquanto estes saboreiam um repouso grande! A alegria destes é verdadeira e tranquila; e a daqueles, se eles a têm em alguma medida, é inquieta e falsa. Para bem dizer, eles são menos felizes e menos satisfeitos, por mais que o pareçam ser muito.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 460-462.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

III Tópico sobre o uso da opinião - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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TÓPICO PRECEITUAL SOBRE O USO DA OPINIÃO
TERCEIRO LUGAR
DOS fins

CAPÍTULO PRIMEIRO
Outro meio de que podemos nos servir de forma muito útil da Opinião é considerando o fim e o desenrolar das coisas; estando certo que é nisso que seu disfarce vai embora, que elas não terão mais maquiagem ou máscara, e que elas nos farão conhecer verdadeiramente quem elas são. A Vara que Moisés recebeu da mão de Deus, e que pode ser chamada a missão para com o povo de Israel, tendo sido transformada numa horrível serpente, causou medo no povo e ele fugiu; mas quando Moisés a pegou pela cauda, ela perdeu sua estranha forma e voltou a ser aquilo que era, e voltou a ser uma Vara como antes. Muitas coisas que nos são salutares nos assustam sob uma aparência terrível; e outras coisas que não são perniciosas nos atraem sob uma aparência agradável. Ora, para não encontrarmos nisso motivo de descontentamento, não devemos parar naquilo que se nos aparece de imediato; elas são outras, sem dúvida, no seu advento e quando acontecem; e não seremos capazes de formar um julgamento seguro se não as considerarmos o final. Ouvimos, muito frequentemente, dizer que, no mundo, tudo o que há e que é tido como mais precioso, e sobre o que os homens estabelecem seu soberano bem, com tanto mais infelicidade quanto mais cegueira têm, as honras, as riquezas, as volúpias, não têm nem duração nem firmeza, elas passam como a sombra e se desvanecem com a fumaça. De onde é que pensamos que se pode tirar este conhecimento? Das provas que vemos em todo momento, da experiência ordinária que mostra que elas se reduzem ao nada. Disso, temos motivo para crer que elas não são nada e, mais verdadeiramente ainda, que elas não são nada de bom; visto sempre nos causarem o mal, visto que, por uma ligeira doçura com a qual nos adulam no início, e por um pouco de prazer que nos dão no começo, elas depois nos enchem de dor e de amargura; semelhantes que são àquele inseto que carrega seu veneno na cauda [no original latino, Nieremberg escreve: “Scorpium venenantem non timebimus ex adulanti ore; sed a praepostero morfu”. Trata-se, portanto, do escorpião; ndt] que, primeiro, nos faz cócegas, mas depois nos pica e nos faz morrer. Na verdade, se examinarmos seriamente aquilo que elas nos fazem, se ao invés de deixarmos que elas nos violentem e, para dizer mais claramente, se ao invés de nos deixarmos enganar por seu brilho e sua aparência, considerássemos o quanto o interior é perigoso, tiraríamos disso a grande vantagem de não ter feito, por nós mesmos, esta miserável experiência, evitaríamos o arrependimento que permaneceria em nós. Porque, o que mais uma Volúpia de alguns momentos nos pode deixar além de um longo remorso e um dor pungente? Isso não é suficiente para nos excitar a nos defendermos delas e desprezá-las? E, ao invés, nos recusaremos a buscar a Virtude só porque suas abordagens são austeras e difíceis? Saibamos que, ao contrário das Volúpias, ela esconde uma extrema doçura sob uma aparência de severidade; saibamos que ela nos enche de contentamento e que somente ela é capaz de compor nossa felicidade. Se ainda nos resta algum raio de razão, prefiramos, sem dúvida, mais o ganho infalível que ela nos apresenta, do que o mal evidente que recebemos das outras [no texto latino, Nieremberg se extende um pouco mais do que seu tradutor, apresentado argumentos que têm como personagens o já citado Faláris (?-554 a.C.). tirano que instaurou o Touro de Perilo como instrumento de tortura e Pitágoras de Samos (c. 570 a.C. – c. 497 a.C.), o matemático e filósofo: “Prudenter itaque Phalaris scribit. Sapientis viri officium est, ante verba, rem ipsam; ante rem, diligentius quoque exitum considerare. Exitum voluptatum considera, poenitentiam, aut praecipitium. Quid? Exitum considera omnium secundam mundi ianuam, mortem. Audi, & hauri Samium monitum: Ne imprudenter teipsum habere circa aliquid assuescas; sed cognosce, quod mori fato constitutum est omnibus”; ndt].

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 458-460.

II Tópico sobre o uso da opinião - Capítulo II

CAPÍTULO II
Fomos demitidos de uma honra pública? Não creiamos que isso seja uma infelicidade como o fazem os homens do vulgo; e guardemo-nos de nos afligirmos; discorramos assim dentro de nós: “Quem pode me assegurar que, se eu tivesse ficado mais tempo nesse cargo, a Inveja e o Ódio que se ligam àquilo que há de eminente e, ordinariamente, perseguem aqueles que estão acima dos outros, não me teriam arruinado? Sabendo, como sei, das desordens que elas causam no mundo e aprendendo, pelos grandes exemplos que se vê, sem cessar, de sua crueldade, que elas não perdoam a ninguém e nunca fazem o mal pela metade, eu não deveria entender que, não estando contentes por destruir minha fortuna, elas não teriam tomado também a minha pessoa, elas não teriam envolvido na mesma ruína geral a minha honra, as minhas riquezas e a minha vida? Se houvesse alguém que, prevendo a minha derrota, me tivesse assistido com seus conselhos, cuidados e próprios bens para previni-la, e me tivesse dada o meio de conseguir uma honrosa aposentadoria, ele não me teria, com isso, obrigado extremamente? Há algum tipo de reconhecimento que eu não deveria a ele? Eis-me, presentemente, no estado no qual estarei então. Tenho tudo aquilo que poderia desejar, tendo minha reputação inteira, meus amigos, meus bens e minha vida. E mesmo a Fortuna, que por uma graça particular e que ela faz raramente àqueles que ela elevou aos grandes cargos, não me deixou descer de onde ela poderia me ter precipitado. E não me tendo sido cruel, não me foi também liberal; e não me tirando coisa alguma daquelas que ela costuma arrancar dos outros”. Caímos doentes? Mesmo isso não é sem consolação; muitas vezes, inclusive, se pode encontrar nisso motivo para alegria. É possível, com isso, evitar alguns violentos ultrajes da Fortuna; estamos protegidos de muitos males que poderiam nos chegar. Se nossa indisposição não nos mantivesse no leito, nós iríamos aos lugares de dissolução e de devassidão, aos lugares onde o vício é aprendido e exercitado. Não teríamos os movimentos que nos vêm e que nos impelem à reforma de nossa vida, à conversão a Deus, a ser gente de bem. Seríamos cúmplices de qualquer desordem que se poderia cometer enquanto isso e que causaria possivelmente nossa morte ou nossa infâmia. Estaríamos na cidade ou no campo e, por isso, facilitaríamos o efeito dos desígnios de um inimigo, que nos prepara emboscadas e nos procura para exercer sobre nossa sua vingança. Estaríamos, talvez, em algum perigo iminente de vida; e, então, gostaríamos de estar onde estamos agora. Compraríamos com o preço de nosso sangue a felicidade de estar de volta ao nosso leito. Desejaríamos a febre que nos faz sofrer; ficaríamos felizes de poder ter a cólica ou a gota. O que mais posso dizer? Daríamos uma de nossas mãos para nos livrarmos do perigo. Ora, nós o evitamos, ficamos isentos dele, sem que ele nos custasse nada. Gozamos da Vida, e logo retomamos a saúde. Não teremos nisso mais motivo para a alegria do que para a tristeza?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 456-458.

II Tópico sobre o uso da opinião - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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TÓPICO PRECEITUAL SOBRE O USO DA OPINIÃO
SEGUNDO LUGAR
DA contingência

CAPÍTULO PRIMEIRO
Estes dois meios infalíveis de conseguir nosso repouso, pelo legítimo uso da Opinião, já estando bem estabelecidos, nos abrem o caminho para a prática de um terceiro; que nos virá de uma reflexão que faremos em nós mesmos: que um mal maior do que aquele de que nos lamentamos pode nos chegar. Esta casa que construimos com tantas despesas e cuidados pegou fogo? Vimo-la caindo em ruínas? Consolemo-nos desta maneira ou, para mais bem dizer, testemunhemos assim a nossa alegria: “Eis a minha casa por terra, mas eu não cai com ela; estou vivo e inteiro; encontro-me são e de pé. Se ela incomodou minha fortuna, ela não fez mal algum à minha pessoa; não fui soterrado por suas ruínas; posso esperar por uma tumba mais nobre. Perdi minha prataria, afundaram-se meus mais belos móveis; mas me deixaram a vida. Aqueles que me roubaram poderiam ter feito pior. Tendo contentado sua avareza ao levar minhas riquezas, eles poderiam satisfazer também sua crueldade pela efusão do meu sangue. Isto não me tendo acontecido, não seria motivo suficiente para que eu louve minha fortuna? Não tenho, por isso, motivo de me crer feliz, não tendo caído numa tão grande infelicidade? Será que o que me levaram tem tanto valor que mereça se comparar ao que me resta? Que bem pode ser tão mais precioso que a vida? E, visto que eu ainda a tenho, será que deverei me lembrar de minhas perdas, sendo que tenho com o que as reparar? Quantos homens se perderam apenas porque eram ricos? Quantos se viu cujos empregados e familiares derramaram o sangue a fim de obter os bens? Isto ainda pode me acontecer. E se eu fosse reduzido a esta miserável eleição entre morrer e abadonar minhas riquezas, será que eu não tomaria este último partido? Será que isso seria difícil para mim? O viajante que cai nas mãos de ladrões dá livremente a sua bolsa, para salvar a sua vida. Aqueles que estão perto do naufrágio jogam no mar tudo o que têm, eles ficam contentes de perder tudo para não afundarem. Para que uso mais digno e necessário se poderiam empregar os bens do que para a conservação do mais caro e nobre de todos os bens? Com o contentamento de ainda poder gozar deles, tenho a vantagem de não os dever a ninguém; não me vi ainda numa tão deplorável situação extrema de ter que esperar a vida da mercê de um ladrão, de um mal parente ou de um empregado. Minha condição pode, portanto, ser pior do que é. Não terei, por isso, mais motivo de me regozijar do que de me afligir?”.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 454-456.

I Tópico sobre uso da opinião - Capítulo II

CAPÍTULO II
Isso, no entanto, não é suficiente para nos curar e nos arrancar o lamento pela perda. Certamente, se ela é ligeira, por isso mesmo será pouco sensível, não podemos considerá-la com o mesmo preço daquilo que nos resta. E, se ela é grande, há muito mais motivo para nos regozijarmos do que para nos afligirmos. Este sentimento poderá parecer possivelmente pouco razoável no início; mas só o será para aqueles que não sabem ainda de que inquietudes e apreensões as riquezas vêm acompanhadas; que não sabem que sua posse, assim como sua perda, nos deixa em perpétua inquietude; não sabem que elas nos fazem sofrer incessantemente e são incompatíveis com a paz e o repouso do espírito. Se perdemos muito, teremos, daí por diante, menos motivo para temer; ficamos livres dos muitos cuidados; e, então, teremos menos problemas. Que loucura a nossa de nos crermos, no entanto, miseráveis! É uma loucura visto que, se nos contentarmos com o que nos resta, e se reprimirmos nossa cobiça, tornaremos melhor a nossa condição e seremos mais felizes do que fomos. Certamente, há muita injustiça em não querer apenas aquela que nos fez muito bem; que, nos tendo dado tudo, poderia, sem dúvida, nos tirar tudo, e teria o direito, pelo menos, de retomar para si parte do que nos deu. Não sejas injusto acreditando ser um dano teres restituído a ela o que é dela, mas crê ser um ganho teres recebido dela o que recebeste. Pensemos que estava em seu poder retirá-los de nós; que nós os havíamos possuído por muito tempo; que, pelo tratado que tínhamos com ela, não nos era permitido mantê-los por mais tempo. Mas, sobre todas as coisas, tenhámos muito cuidado com, comparando nossa condição com a de outros, não prestemos a devida atenção a nós mesmos. Assim como não há fortuna tão grande que seja contente de si mesma – tanto que ela sempre encontra uma que a ultrapassa ou que a iguala –, também não há nenhuma fortuna tão pequena que não seja satisfeita ou, pelo menos, consolada tão logo se dá conta de que não estão no mais baixo grau e que há uma abaixo dela. Esta máxima, no entanto, só é aplicável aos bens do mundo. E é somente nisso que é necessária uma grande precaução de não tirar os olhos de nós. Mas, é preciso usar, pelo contrário, naqueles bens do espírito e, sobretudo, nos bens que vêm da Virtude. Porque, como os primeiros só merecem desprezo, só nos restam os outros que sejam dignos de nossa estima e que possam, legitimamente, ser objeto de nossa ambição. Assim como devemos olhar para as riquezas temporais como olhamos para aqueles que nos são inferiores, é preciso, quanto às riquezas do Céu, nos propormos como superiores a nós, imitando-as a todo custo e, por uma inveja nobre e generosa, não sofrermos com o fato de que elas tenham vantagem sobre nós. No entanto, para além do fato de nos compararmos como os outros, é preciso também compararmo-nos conosco mesmos; pela inferioridade e desvantagem de nossa fortuna, comparada com o nosso mérito; e recompensando pela satisfação que nos dá este, os problemas que nos vêm daquela. Este remédio foi muito felizmente praticado por Ágis, um dos maiores homens de Esparta [não está claro a qual dos Ágis se refere Nieremberg. Seja como for, ao que tudo indica, trata-se de Ágis I (c. 930 a.C. – c. 900 a.C.), um lendário rei espartano, que fundou a dinastia Ágida; ndt]. Vendo que ia ser morto sem razão, ele não se divertiu exagerando sua infelicidade com lamentos inúteis, como fazem os homens do vulgo. Ele se fortaleceu de tão maneira com a consideração de sua inocência contra os rigores da Fortuna, que chegou mesmo ao ponto de desafiá-la, além de desafiar também seu mau destino. E como ele percebeu que o Executor, tocado pela compaixão, chorava e não conseguia colocar as mãos nele, ele lhe disse: Cumpre corajosamente o teu dever, e saiba que, morrendo injustamente, serei mais um homem de bem, valho mais do que aqueles que me condenaram. Pronunciando estas palavras, ele se apresentou com alegria à corda; e apagando a ignomínia de seu suplício pela glória de sua virtude, ele fez para si um colar de honra com uma corda infâme.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 451-454.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

I Tópico sobre uso da opinião - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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TÓPICO PRECEITUAL SOBRE O USO DA OPINIÃO
PRIMEIRO LUGAR
DA comparação com a Fortuna

CAPÍTULO PRIMEIRO
No entanto, a fim de nos desenganar mais felizmente e nos tornar mais útil e salutar o uso da Opinião, apresentaremos algumas Máximas, e esta será a primeira: compararmo-nos, nos desprazeres e nas desgraças que nos acontecem, com a Fortuna dos outros [é interessante notar que, na tradução francesa, Louys Videl não respeitou a divisão utilizada por Nieremberg no original latino: na versão francesa – diferentemente da versão italiana –, o tradutor optou por continuar a sequenciação dos capítulos como parte do mesmo segundo preceito, enquanto que o original dá início a uma nova parte do mesmo livro terceiro intitulada “Praecepta topica in usu opinionis. Locus I. Ex comparatione fortunae”. Na continuidade, Nieremberg faz uso da mesma estratégia usada por Videl, em sua tradução: começa explicando, tal como o fez o tradutor, dizendo que “Atqui, ut possis te solerter fallere salutati opinionis usu, aliqua memoranda sunt praecepta. Primum sit comparatio fortunae”. Sendo assim, em respeito ao original latino, optarei por seguir a numeração e a capitulação propostas por Nieremberg; ndt]. Nisso, sem dúvida, estará motivo suficiente para que não nos ressintamos desses desprazeres e desgraças: por mais malvado que seja o tratamento que recebamos da Fortuna, não nos acreditaremos infelizes; às vezes, inclusive, encontraremos nisso – naquilo que pensamos ter motivo para a tristeza – motivo para alegria. Consideremos seriamente, em seguida, esta importante verdade, pronunciada por um grande homem: que não é necessário acreditar um mal aquilo que outro crer ser um bem [no original latino, Nieremberg escreve: "Sapienter Barbarus sapiens ait: Non est malm, quod cum alio comparatum bonum est", não se referindo, portanto, a um personagem específico. Será necessária uma pesquisa com a finalidade de identificar, entre os autores comumente citados por Nieremberg, aquele que melhor represente a ideia apresentada; ndt]. Caimos na pobreza? Por que nos abandonamos à dor, se outras pessoas, em situações semelhantes, consolam-se mais facilmente? Não é verdade que antes que tívessemos tido o bem, ficamos sabendo que ele coincidia com a alegria? Ei-nos, de novo, nos mesmos termos, de volta àquele estado capaz de contentamento; nos regozijamos, qual a razão que temos para nos afligir? Acontece de sermos frustrados em nossa expectativa? Teremos menos do que esperamos? Teremos menos do que o que nos é necessário? Teremos motivo para nos maravilharmos com o fato de nos encontrarmos acima de nossas esperanças, tendo as levado para além do dever e da razão? E haverá motivo para se espantar com o fato que, sendo ilegítimas e sem fundamentos, elas se arruinem? Sem dúvida, esperando mais do que deveríamos, é justo que tenhámos menos do que esperamos. Avalio que perdemos muito, mas ainda nos resta algo. Eis o erro ordinário de todos os homens, que é considerar eternamente aquilo que lhes falta, e nunca pensar naquilo que têm. Esquecendo aquilo que permanece, nós nos arrancamos tudo o que temos, e tratamos a nós mesmos com mais rigor do que tratamos a Fortuna que se entregou por nós. Aqui, somos como crianças: se alguém lhes tira seus brinquedos, eles jogam, por despeito, todos os demais; e, porque não lhes dão aquilo que querem, elas não querem nada. Será que não ouvimos falar daquilo que aconteceu a Sócrates quando conversava com alguns de seus amigos? Como eles estavam indo se colocar à mesa e Alcibíades veio e levou metade da carne. E como Sócrates, ao invés de se ofender, assumiu um sentimento contrário, testemunhando obrigação para com Alcibíades, na medida em que este, podendo levar toda a carne, deixou uma parte [Alcibíades Clínias Escambônidas (c. 450 a.C. - c. 404 a.C.) foi um general e político ateniense, amigo e entusiasta do filósofo Sócrates que, em 432 a.C., lhe salvou a vida; ndt]. Devemos agir igualmente com a Fortuna, agradecendo-a por aquilo que ela nos deixa, e não nos incomodando em nada com aquilo que ela nos tira. Ela nos tira menos do que nos dá; os bens que dela recebemos merecem que soframos com seus maltratos, sem que murmuremos. Ela reparou, talvez, com alguma outra coisa o mal que nos fez. Se é uma falta que ela cometeu, pode ser que, mais tarde, ela a corrija. Depois de tudo, não é mais razoável regozijarmo-nos com as coisas que nos ficam, do que nos afligirmos com aquelas que perdemos? Da mesma forma como elas estão fora do nosso poder, que elas estejam fora da nossa memória. Não pensemos nelas mais, sobretudo se elas não foram nossas; não pensemos que nossa condição é pior só porque não as possuímos. Sintamos prazer pelas coisas presentes, e deixemos perder o lamento pela perda da posse. Por que nos cremos infelizes se, comparando-nos aos outros, justifica-se não apenas que não o somos, como também que temos motivo suficiente para louvar nossa fortuna? Regozijemo-nos muito mais com o fato de que ela poderia ser pior e com o fato de um mal maior poderia nos chegar. Não levantemos os olhos para olhar de onde caímos; mas os abaixemos, para ver onde ainda podemos cair; e reconheçamos a graça que nos garantiu ir até ao fundo do precipício. Que nos aconteça que muitas pessoas queiram seram infelizes como nós o somos; e que aquilo que chamamos nossa miséria seja sua felicidade. Aristipo, tendo perdido um fundo que lhe trazia muita felicidade, não apenas não ficou chateado, como também consolou aqueles que se afligiam; e como um adulador parecia sentir mais dor do que os demais, ele lhe disse: Meu amigo, tens apenas um pequeno fundo, e eu ainda tenho três; tens muito mais motivo para te lamentares do que eu. Acredito que tua condição seja ainda mais infeliz do que a minha. Ele soube, através disso, acalmar sabiamente o mal-estar que ele poderia ter por sua perda; ele nos deu o exemplo daquilo que devemos fazer quando nos encontramos acolhidos por uma semelhante ou maior infelicidade.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 448-451.

Segundo preceito - Capítulo V

CAPÍTULO V
Mas, esta habilidade de tomar as coisas pelo lado onde elas não machucam, por onde elas não são rudes e maldosas, é-nos sobretudo necessária nas armadilhas e nas perseguições que a Fortuna prepara para nós. É nisso que ela tem seu uso mais justo e natural; e, sem dúvida, é justamente nisso que devemos mais praticar. Aquele, entre todos os males, de que os homens mais são presas na vida, contra o qual é preciso os maiores poderes e os mais frequentes remédios – a Pobreza – vem até a nós? Nâo consideremos as riquezas a partir do lado que as mostra como aquilo que serve às delícias; não as representemos como ministras da Volúpia, mas como Tiranos da Virtude; que é o lado pelo qual elas nos causam pena, e são motivo de depravação e devassidão. Pensemos que não há razão alguma de nos afligirmos por sua perda, ou que nos lamentaremos de nos termos curado de uma doença que, nos matendo em perpétua inquietude, nos arrancaria o gosto dos verdadeiros e legítimos prazeres, e perverteria nosso espírito, até ao ponto de torná-lo incapaz do sentimento de sua felicidade própria. Lembremo-nos de que não há nada que tenha menos capacidade de se manter do que as Riquezas; que, por mais maciço e pesado que seja o metal que as componha, elas são extremamente ligeiras; elas mudam constantemente de lugar; elas não têm nem postura nem firmeza. Caçoemos da inconstância da Fortuna, ao invés de nos deixarmos ferir por ela; e nos desenganemos do erro no qual caímos ao crer que ela nos dá bens verdadeiros; recorramos à Virtude, de quem podemos, de fato, esperar os bens verdadeiros, e cujas liberalidades são incomparavelmente maiores e constantes; nos dão abundantemente aquilo de que precisamos e nunca nos arranca aquilo que, uma vez, nos deu. Ela não deixa faltar nada a nós, daquilo que ela acredita que podemos tirar algum proveito. Se há algo que ela nos recusa, é tão somente aquilo que ela acredita que será causa de ruína para nós, e aquilo que só poderia ser fruto de sua liberalidade se ela fosse nossa inimiga. Por que nos incomodamos com as perdas, se podemos adquirir de volta aquilo que perdemos com muito mais vantagem? Se está apenas em nós retomá-los com nossos próprios fundos? Certo: estamos errados de nos lamentarmos da Pobreza, tendo, como temos em nós, um pronto, um infalível meio de nos garantirmos contra ela; sendo suficiente para nós, nisso, tão somente reprimir nossos desejos e corrigir nossa cobiça. Aprendamos que não há via mais segura para se tornar rico do que não desejar nada. Sem dúvida, tornaremos nosso tudo aquilo que não quisermos; adquiriremos, possuiremos todas as coisas, ao não ter paixão por nenhuma. Não nos é possível viver magnificamente? Não temos motivo para nos animarmos? Não olhemos para aquilo que nos agrada, mas para aquilo que nos é suficiente. Não acreditemos no gosto, que só busca a abundância e o luxo; mas acreditemos na Natureza, que pede a mediocridade [trata-se do conceito de meio-termo ou de indiferença; ndt] e que é inimiga do excesso. Tendo pouco para comer, não nos deixamos levar pela Volúpia. Somos mais sãos e menos malvados, fechamos as portas para os vícios que a acompanham e não deixamos entrar em nós nada além dela, evitamos as enfermidades e as doenças que ela atrai em seguida. Regozijemo-nos do fato de que a Pobreza nos obrigue à sobriedade, nos faz ser, por necessidade, aquilo que que deveríamos ser voluntariamente. Pensemos que uma comida leve produz, ordinariamente, uma saúde firme e vigorosa; e – o que não é menos importante – nos dá uma disposição grande para a prática do bem; nos torna mais hábeis e mais preparados para o exercício da Virtude. Mas, nos incomoda ainda sermos privados dos prazeres de comer? Temos dificuldades para renunciar às delícias da boca? Pensemos em Epicuro e nos encontraremos, como ele, numa vida mais simples e austera do que aquela a que nos reduzimos. Nós o encontraremos na abstinência, e experimetaremos que é verdadeiramente nisso que consiste a Volúpia, que pensamos estar na opulência e das superfluidades. Falharam nossas esperanças? Descobrimo-nos decepcionados em nossas pretensões e expectativas? Não pensemos nas vantagens que não obtivemos, mas para os inconvenientes que evitamos. Não olhemos para a eminência do lugar onde queremos chegar, mas para a profundidade do precipício onde podemos cair; e pensemos que nossa elevação pode ser a causa de nossa ruína. Lembremo-nos de que o orgulho das Torres é abatido pelas tempestades e pelo relâmpago; e que a baixeza das cabanas está protegida; e de que a mediocridade [no texto latino, Nieremberg usa o termo mediocritas, que significa meio-termo, ou indiferença; ndt] é, ordinariamente, acompanhada da segurança. Pois bem, somos excluídos do emprego no qual gostaríamos de estar; a dignidade que pedíamos foi-nos recusada; não pensemos que, por isso, ficaremos ofendidos e que seja preciso tomar esta recusa como uma injúria. Nisso, só se fez aquilo que deveríamos ter feito nós mesmos. Imprimiu-se nossa ambição? Devemos, sem dúvida, corrigi-la. Imitemos a Sabedoria da Natureza na união maravilhosa das partes que compõem o Universo. Toda inimizade que reine entre elas, por causa de suas qualidades contrárias e opostas, vemos como são colocadas juntas numa paz comum e vivem em amizade. Assim, por mais que o fogo não esteja de acordo com o ar, visto que aquele é seco e este úmido, eles se unem porque ambos são quentes, e nisso está o vínculo de amizade que os une. O ar e a água são verdadeiramente inimigos, por causa do calor do primeiro e do frio da outra; mas, para além disso, eles se dão as mãos, eles se ajustam na sua umidade comum. Da mesma forma a Terra árida e seca que não é compatível com a água, na medida em que esta última é úmida, mas elas se aliam, visto que ambas são frias. E assim, chocando-se por um lado, se abraçam por outro, e formam entre si uma estreita amizade. Saberíamos ser melhor instruídos que por isso, por esta importante verdade, segundo a qual não é preciso, de forma alguma, tomar as coisas a partir do lado que evidencia o mal que elas nos fazem, mas a partir daquele que mostra como elas são capazes de trazer algum proveito?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 444-448.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Segundo preceito - Capítulo IV

CAPÍTULO IV
Assim, as coisas têm, portanto, para nosso olhar, duas faces. Não há dúvidas de que tenham duas alças [como dissemos antes; ndt]; mas é preciso segurá-las pela alça boa, através da qual elas são capazes de nos dar algum alívio. Um Lacedemônio vendo-se ridicularizado por ser manco e aparentemente inadequado para as penosas funções da guerra, não tendo deixado, porém, de ir, virou a coisa de outro lado e tornou vantagem aquilo que parecia ser algo para a sua confusão, dizendo que queria combater e não fugir, como que querendo dizer que, lá, na guerra, ele agiria não com suas pernas, mas com seus braços [no original latino, Nieremberg escreve: "Visus est Androcidas ineptus miles, quod claudus descend eret in aciem, & propterea increpatus...". Não encontramos, porém, referências acerca desse personagem – Andrócida; ndt]. Esta habilidade foi anda felizmente praticada por outro da mesma nação que, estando condenado à morte, não somente não se zangou e se abandonou, como é comum aos homens em ocasiões semelhantes, à dor e às lágrimas, mas testemunhou alegria, respondendo àqueles que chamavam sua atenção e que o acusavam de desprezo pelas leis que ele estava contente de poder pagar uma dívida, que ele não havia exigido nada de ninguém e que, portanto, ninguém tinha o direito de exigir nada dele [no original latino, aparece: "Theramenes, opinor, sive alius alitus Lacedaemone animus, innocenti capulo prehendit fatum...". Trata-se, portanto, de Terâmenes, político ateniense, que viveu no século IV a.C.; foi um dos principais idealizadores do golpe de Estado que instaurou o governo dos Trinta Tiranos; foi morto, após se opor aos excessos do tirano Crítias; ndt]. Um e outro olhava as coisas a partir do ponto de vista que lhes permitia aproveitar algo delas; não ignorando que não há nenhuma que seja tão dura e tão incômoda que não tenha algum lado agradável e ao qual não se possa dar uma interpretação favorável. Para apoiar esta verdade sobre outro exemplo vindo desse mesmo povo, valho-me daqueles trezentos soldados que, das muitas tropas que os Gregos opuseram aos esforços Persas, tiveram a segurança de permanecerem sozinho no famoso estreito de Termópilas e que, por uma gloriosa morte, adquiriram uma reputação imortal e não encontraram razões para justificar sua fuga, nem mesmo para torná-la honrosa [assim escreve Nieremberg no original latino: "Lacones, sive trecenti, sive sexcenti fuissent, qui aliis ex omini Graecia effugientibus Xerxem, relicti sunt, suam quoque satis honorare fugam possent". É conhecida a história da tropa de Leônidas - formada por trezentos homens - que ofereceu resistência aos exércitos de Xerxes I, também conhecido como Assuero, no estreito de Termópilas; ndt]. E, para bem dizer, quanta aparência pode haver no fato de tão pouca gente pudesse se opor a uma tão grande armada e não se tenha comportado como presa? Será que eles pretendiam trazer a Vitória justamente num lugar onde era inevitável que deixassem a vida? Onde toda a sua resistência era incapaz de impedir sua perda, e só era capaz de retardá-la? Se, certamente, para eles, isso era uma loucura – pensar em vencer um inimigo tão poderoso e numeroso, que transportou montanhas, cobriu vales, aplainou precipícios, secou rios, fez o mar gemer sob a grandeza e a quantidade de seus navios, enfim que venceu a Natureza em todas as partes por onde esteve –, eles sabiam que deveriam, por assim dizer, agir corajosamente e com conhecimento do perigo, ou se precipitarem cegamente e por desespero. Eles não ignoraram que havia uma diferença entre temeridade e coragem. Como sempre, eles sabiam da estima de valor que os Gregos têm de si; eles temiam a censura de ter exposto imprudentemente ao furor dos Bárbaros uma vida que eles deveriam empregar para a salvação de sua pátria; e não tendo nisso outra testemunha de sua virtude além dos inimigos, para quem ela [a virtude; ndt] era odiosa – visto ser ela, para eles, fatal –, eles poderiam muito bem ser acusados de ter entregue sua reputação nas mãos daqueles que a apagariam e enterrariam seus nomes num eterno silêncio. Por que, portanto, eles não fugiram, visto que eles poderiam fazer isso não somente sem vergonha, como também com honra? Porque eles olharam para a coisa a partir de outro lado; e, para usar dos termos que vimos empregando, eles a tomaram por outra alça. Que razão eles teriam para temer estarem abandonados e sós? Sem dúvida eles creram não estarem nem abandonados nem sós. Os Rochedos que os cercavam eram tropas que haviam vindo em seu socorro, e serviam como amparo, e agiam, ao mesmo tempo, como defesa e como companhia. Pois bem, eles teriam que combater num estreito incômodo e com tão pouco espaço? Tanto mais lhes foi vantajosa esta situação, visto que, estando juntos, a união de suas forças tornava sua resistência mais poderosa; e além do mais, a grandeza e a extensão de sua coragem reparava os inconvenientes que poderiam lhes ser causados pela pequenez e por outros defeitos do lugar. Eles eram apenas trezentos; a bem dizer, eles eram apenas um punhado de gente; mas cada um se contava como vários e cria valer o mesmo que uma multidão, sustentando-se sobre esta verdade universalmente reconhecida, segundo a qual os Lacedemônios se estimavam por seu valor e não por seu número. Eles se consideravam uma tropa escolhida, segundo o consentimento comum daqueles que voluntariamente cederam toda a honra desta ação e não quiseram fugir. Nós, aqui, não somos muitos, eles diziam, para defender nossa pátria, apenas o suficiente para mostrar nossa virtude; nunca haverá ocasião melhor para isso. Podemos dizer corajosamente: eis o dia de nosso triunfo. A fuga não seria desonesta para outros; mas o simples pensamento da fuga nos seria eternamente censurável; seria suficiente para que nos considerassem infames se simplesmente tivéssemos colocado isto como opção para uma deliberação. Aqui, a honra não é menos eminente que o perigo; se aqui a vitória é duvidosa, a glória é infalível. Os Atenienses não teriam ido embora se houvesse alguma certeza de vitória; os Lacedemônios permanecem onde eles estão certos que morrerão. Xerxes revirou as montanhas, secou os rios, mudou a aparência da Natureza. Tudo isso foi mais fácil, para ele, do que abalar nossa firmeza e nos fazer mudar a decisão. Que ele saiba que esta prodigiosa potência com a qual ele nos quer maravilhar, e que ele acha não ter limites, se encontrará, hoje, na impossibilidade de nos arrancar o coração. É nisso que seremos superiores a todos os seus esforços; e nisso a Vitória permanecerá conosco, mesmo depois de havermos perdido. Não haveria nisso, sem dúvida, motivos suficientemente poderosos para fazê-los assumir o partido contrário àquele que as razões lhe davam? E não parece que, se eles poderiam fugir honrosamente, também poderiam permanecer gloriosamente? 

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 440-444.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Segundo preceito - Capítulo III

CAPÍTULO III
Esta é uma verdade da qual nós podemos razoavelmente duvidar; sabendo, como sabemos, que a mais agradável de todas as coisas, aquela cuja propriedade mais sua é agradar, que só possui características amáveis e encantadoras – a Beleza mesma – pode ser olhada a partir de um ponto de vista desagradável. Pensemos nela a partir do lado que é estranho aos bens do espírito e que, consequentemente, a partir daquele lado que não a tem entre o número daqueles bens que compõem a felicidade perfeita. Consideremos, eu vos peço, o poder absoluto que o tempo tem sobre ela; os ultrajes que ela recebe por causa de sua inconstância; as visíveis e cruéis marcas que ela carrega dos castigos recebidos. Que alegria nós seríamos capazes de estabelecer, que segurança poderíamos ter nas coisas mais frágeis e inseguras do mundo? Certamente que, por mais frágil que seja o vidro, é possível dizer que ela é incomparavelmente mais frágil. Ele só se quebra se algo bater nele com força; se se evita o choque ou a queda, se evita a sua ruína; mas ela cai sem que nada a toque; ela se destrói, na medida mesma em que subsiste; é uma flor que murcha e desvanece tão logo desabrocha; ela perde seu lustro enquanto brilha; ela decai na medida em que se mantém; ela dura apenas para perecer. Se aquilo que, em nós, há de mais firme e consistente vai embora, que aparência, o que de mais vão e ligeiro, pode permanecer? Se a substância passa, que acidente permaneceria? Vós que vos gloriais de vossa beleza, quereis saber o que ela é? Tende apenas um pouco de paciência, e vereis que ela não existe mais; esperai um momento, e experimentareis que ela já acabou quase antes que a tenhamos definido. Que cegueira é essa a vossa que vos leva a vos estimar felizes por possuirdes uma coisa tão passageira? Pensai que não somente ela não faz nada pelo vosso soberano bem, como também ela pode mesmo encher-vos de tristeza, sobretudo se e ela não estiver acompanhada de uma alma inocente e direita; por si mesma, ela não vale nada e não é digna de nenhuma estima, e não pode ser considerada justa, a não ser se a justiça vier da virtude. Certamente, sem ela [a virtude; ndt], não há nada mais do que nos possamos gloriar. Não há bem algum, senão este. Fora disso, não seríamos capazes de pretender legítima satisfação de todas as liberalidades da Natureza e da Fortuna.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 438-440.

Segundo preceito - Capítulo II

CAPÍTULO II
Nós acusamos erradamente as coisas, lhes fazemos injustiça quando pensamos que elas se opõem à realização de nossos desejos; visto que elas não têm poder sobre nós, a não ser aquele que nossa Opinião lhes dá. Elas são incapazes de nos fazer o mal, a não ser aquele mal que nós lhes cremos capazes de nos fazer. Nisso, certamente, nossa condição é muito feliz; e devemos sustentar como sendo uma das mais nobres vantagens que nos vem da Razão – não vindo delas a nossa potência, nós as submetemos através de nossos sentimentos; nós as fazemos depender de nós, formando em nós a impressão de que elas nos agradam; e lhes dando a aparência e o rosto que melhor nos parecer. Ora, como, para bem dizer, elas só são aquilo que nossa estima a fazer ser, e como é absolutamente ela que as determina como bem ou mal, nós reinamos o suficiente sobre elas, através disso, sem dúvida; adquirimos o pleno direito de dizer se são boas ou más; não precisamos de nenhum outro título para admiti-las ou rejeitá-las. Como se nós nos encontrássemos cercados por diversos animais venenosos: não estaríamos em mais segurança se eles pudessem chegar até nós, do que se eles, estando próximos, não nos pudessem fazer mal algum; não devemos sofrer com o fato de não termos nenhuma jurisdição sobre as coisas, ou com o fato de elas estarem fora de nosso poder; visto que elas nos são submetidas exatamente naquilo que elas têm que nos pode fazer mal; e visto também que nós temos sua força e seu aguilhão em nossas mãos, por assim dizer. Nós a temos tão seguramente que, certamente, sem nós, elas não têm nem movimento nem vida. É somente a nossa Opinião que as faz contrárias ou favoráveis; que lhes dá armas ou as tira de suas mãos; que faz delas antídotos ou venenos. Sendo assim, qual é a razão, eu vos pergunto, para que nós temos para apreendê-las? Certamente que o mais tímido dos homens não temeria em nada um Leão que não tivesse nem dentes nem garras. Um Basilisco cego não é capaz de nos fazer mal algum; um Tigre desarmado de suas garras também não. Por que, então, caluniamos as coisas? Elas, por si mesmas, são inocentes e puras; elas não têm veneno, a não ser aquele que nossa imaginação derrama nelas. Elas não têm nem tintura nem cor; elas não têm nem sabor nem gosto. Segundo nossa Opinião as pinta e tempera, elas se tornam agradáveis ou desagradáveis, elas ficam doces ou amargas. Nesse sentido, admitimos o pensamento de Epícteto que lhes dá duas alças – uma das quais, as torna pesadas e difíceis de carregar; enquanto que a outra as torna leves e manejáveis; por aquela, nós só encontramos pena nas coisas; por essa, porém, nós encontramos facilidade. Nada nos chega da Fortuna que não tenha dois aspectos e que nossa Opinião não nos faça imaginar diversamente; a essas pinturas engenhosas que, vistas de viés, têm um aspecto diferente daquele que têm quando vistas de frente; que de um lado representam um esqueleto assustador, e do outro, uma escultura ridícula, e vistas de frente representam um belo rosto. Estes dois Filósofos da Antiguidade – Demócrito e Heráclito –, um dos quais tinha na vida humana um perpétuo motivo de riso, e outro que a entendia como motivo de lágrimas, tinham um mesmo objeto em vista e duas ações tão contrárias resultavam disso; eles não estavam vendo coisas diferentes, mas eles as viam diferentemente e em situações diversas. O mesmo ouro que Crasso adorava [certamente, trata-se de Marco Licínio Crasso (c. 115 a.C. - c. 53 a.C.), que foi um patrício, general e político romando do fim da Antiga república; conhecido por haver derrotado a revolta dos escravos liderada por Espártaco, e por sua proverbial riqueza; ndt], Cúrio desprezou [trata-se do mesmo Mânio Cúrio Dentato, sobre o qual já se fez referência; ndt]. Todas as coisas têm, assim, duas faces a partir das quais elas podem ser consideradas; elas têm dois vieses e duas direções – um agradável e outro não.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 436-438.

Segundo preceito - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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SEGUNDO PRECEITO
CONCERNENTE ao bom uso da Opinião e do Intelecto

CAPÍTULO PRIMEIRO
Até aqui, vimos as desordens da Opinião; conhecemos seus enganos. Vejamos, de agora em diante, o seu bom uso. Assim como ela é maléfica e perigosa, ela pode ser útil e proveitosa. Assim como ela causa mal, sem dúvida ela pode causar o bem. Ela, verdadeiramente, atrapalha nossa alegria; mas também ela alivia e encanta nossos problemas; ela nos fere, mas ela pode nos curar; semelhante a esses insetos que trazem em si o remédio para curar a picada que eles dão, que são, ao mesmo tempo, antídoto e veneno, e que nos socorrem contra eles mesmos. Há muita arte no tornar inocentes as coisas nocivas; mas há ainda mais arte no torná-las salutares; e trata-se de excelente ciência conseguir converter o mal em bem. Uma mesma coisa serve ou prejudica, segundo seus diversos usos; tornamo-la boa ou má segundo o uso no qual a aplicamos. Assim como um hábil Escudeiro não diminui a força e a coragem de um jovem cavalo, nem condena sua vivacidade e suas asperezas, mas as regra e as ajusta para que sejam úteis, da mesma forma esta potência que forma em nós as imagens das coisas, e através das quais nós as apreendemos, estando desordenada e errada, destrói inteiramente nossa alegria [Nieremberg está falando da Fantasia ou da potência Imaginativa; ndt]; é certo que ela pode nos ajudar bastante no estabelecimento da alegria, desde que seja instruída e treinada; ela pode produzir a paz e a tranquilidade do espírito. Aqueles que não acreditaram naqueles que a acusaram do contrário, e imaginaram que ela pudesse fazer crescer nossa miséria por suas invenções, tornando mais difíceis e duras nossas dores e calamidades, não consideraram que ela é capaz também de os diminuir; e que, estando pura e inocente – como nós queremos deixá-la – ela pode reparar os maiores ultrajes que recebermos da Fortuna. Aqui, é preciso que nos lembremos de que há duas ordens de coisas: uma que é aquela das coisas que são mutáveis e passageiras e não dependem em nada de nós; outra que é aquela das coisas que são firmes e permanentes, e que estão em nosso poder. Ora, visto que é puramente das primeiras que procedem nossas dificuldades, que são elas que causam nossos sofrimentos e penas, seja porque desejamos umas ou tomamos outras nas mãos, elas nos tornam incessantemente infelizes, elas nos causam sofrimento sem parar, seja pelo desejo, que pelo temor. Não seremos capazes de resistir a elas por nós mesmos; falta-nos coragem e força para nos defendermos de seus ataques. É preciso que sejamos prevenidos de toda e qualquer impressão favorável que nos assegure e nos fortifique no combate que devemos ter contra elas; que nós as fantasiemos e escondamos sob uma máscara que não seja semelhante a elas mesmas, desfigurando-as até ao ponto de não encontrarmos mais nada nelas que nos atraia; e que seja capaz, pelo contrário, de maquiar as outras, escondendo aquilo que nos assusta. É preciso que a Razão nos conceda esse bom ofício, e que ela nos dê esta impressão. E seguramente ela no-lo fará, desde que a escutemos falando-nos assim: “Guardai-vos de julgar aquilo que sofreis, porque são os vossos sentidos que vos dizem as palavras para o julgamento, e eles são enganadores e errados; é nisso que seu testemunho é menos admissível. Por que vos lamentais e vos atormentais tanto como fazeis? Aprendei que por mais forte que seja a dor, a Paciência é ainda mais forte; e que não há mal algum que possa ser maior do que a glória de o sofrer com constância. Se o mal passa rápido, a glória dura bastante; se o mal durar muito, a glória é eterna. Sofre-se com facilidade e sem maiores dificuldades quando se sofre voluntariamente. É nisso que há menos sofrimento e muita honra; a pena é leve, mas a glória não. É preciso aceitar os pequenos males, porque eles vos instruirão para a paciência; é preciso aceitar os grandes, porque eles vos serão gloriosos. E o que sabeis vós se eles ainda não são a causa e o instrumento de algum bem que deve vos chegar? O que sabeis vós se a infelicidade que vos atingiu não vos está preservando de uma infelicidade ainda maior? Se não é apenas um refúgio que a má sorte vos está abrindo contra ela mesma? O quê? Vós não vos lembrais de que sois? Não vos lembrais de vossa condição enferma? Pensai nisso seriamente, oponde bem ao vosso mal; oponde a lembrança de vossa fragilidade natural ao rigor das obrigações que ela vos impôs. Pensai no fato de que não sois Deuses, mas que sois homens; que não vos é menos próprio sofrer que viver; e servi-vos deste pensamento como quem se serve de um remédio soberano contra toda sorte de dores. Temperai a amargura de vossos males com a satisfação que tirais do conhecimento de vós mesmos. Mas, tudo isso é incapaz de fazer cessar vossas lamentações. Vós somente sois capazes de colocar em vosso espírito que aquilo que vos aflige é um mal. Será que vos esqueceis de que todas as coisas procedem de Deus? Que sendo, como Ele é, soberanamente bom, dEle nada pode vir que seja mau; que os efeitos não podem ser de outra natureza que suas causas; e que ordinariamente os riachos têm a mesma qualidade de sua fonte? Aprouve a Deus que este acidente vos tenha atingido; foi Ele que o ordenou, Ele o quis; será que vos deveis preferir vossa vontade à Sua?  Será que vós deveis estimar mais vosso simples sentido à Sua suprema sabedoria? Não obstante isso, vós ainda murmurais e permaneceis em vosso endurecimento. Pois bem, atormentai-vos o tanto que quiserdes; abandonai-vos à cólera; segui a impetuosidade de vossa paixão; numa palavra, fazei tudo aquilo que vós imaginais ser capaz de levar para longe a vossa dor; tudo o que conseguireis é provar esta verdade: a impaciência azeda os males e os aumenta; pensar em curá-los através disso é cair na extravagância daquele que quis apagar o fogo com óleo, com algo que o acende ainda mais. Mas, meu mal é tão inconveniente, vós dizeis, que eu não consigo sofrê-lo; se ele fosse menor, eu conseguiria me consolar de alguma forma; se ele me fizesse sofrer apenas mediocremente, eu seria capaz de ter paciência. Quem já ouviu dizer que onde o inimigo faz mais esforços é onde ele falha menos na resistência? E não é verdade que quando a dor vos pressiona mais é que vós deveis testemunhar maior resolução? Mais uma vez, saibais que é apenas através disso que vós deveis esperar o fim de vossos males; que somente a paciência é capaz de vos fazer vencer vossas penas”. Certamente, se deixarmos a Razão nos falar assim, de formar tais pensamentos em nosso espírito, e de corrigir desta maneira os sentimentos que temos pelas coisas, nós as experimentaremos como sendo inocentes; elas não nos causarão problemas; e não encontraremos nada que seja duro ou difícil.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 431-435.