quinta-feira, 1 de julho de 2010

Quarto prelúdio - Capítulo IX

CAPÍTULO IX
É através das indicações que a Filosofia lhe [ao espírito; ndt] dá que ele chega a esse ponto. É ela [a Filosofia; ndt] que faz com que os homens sejam como deuses. Aqueles que têm posse de um tão alto e nobre estudo, são nomeados por um sábio da antiguidade Deuses mortais [no original latino, aparece a referência a Hierócles, o Estóico (c. 120 d.C.), que se dedicou especialmente à moral, em sua filosofia na qual se podem encontrar elementos de Aristóteles, Platão e dos estóicos; ndt]. Ele os chama Deuses por causa da conformidade que eles têm com a natureza divina; mas ele acrescenta a isso a condição mortal; ainda que eles pareçam não ter mais ligações com a matéria e viver como quem não está sob a jurisdição da morte, eles estão sujeitos às enfermidades da vida, eles não estão protegidos das injúrias da Fortuna – que, se deixando levar por suas impetuosidades e caprichos, e não sendo capaz de se controlar sozinha, atinge frequentemente os bons sem pensar a respeito e, às vezes mesmo, sem querer, e lhes faz mal muito mais por precipitação do que por desígnio. Digamos, sem nada deixar de fora, uma verdade que só foi dita pela metade: a mesma prerrogativa que dá aos Filósofos o nome de divinos lhes atribui, em seguida, o nome de imortais, visto que, elevando-se, através de um generoso desprezo pelas coisas da terra, eles não têm necessidade de nada, eles se bastam a si mesmos perfeitamente, eles se tornam soberanamente independentes, eles possuem, sem nenhuma desordem, uma tão alta e tão pura alegria que não pode haver nada de mais próximo da suprema felicidade. Não há nada de mais razoável do que acreditar que uma tão rara vantagem, como a de se assemelhar a Deus por causa desta absoluta independência, não deixe nada a desejar à imortalidade que é a consequência necessária, assim como acreditar que, na imortalidade, como no resto, a cópia goza do privilégio do original. Apliquemos aqui o pensamento de um Filósofo tal como nos chegou a partir de dois excelentes homens [no original latino, Nieremberg escreve: “Usurpo hoc dictum Procli a divino Epiphanio, & Methodio traditum: quemadmodum Phidias, cum Pisaeum simulacrum frabricasset, oleum circum pedes effundi iussit coram ipsa statua, ex ebore enim erat; ut ipsam immortalem conservaret”. Refere-se, portanto, ao filósofo Proclo Lício (412-485), que viveu em Constantinopla e era adepto da escola neoplatônica. Quanto aos dois homens a que se refere Nieremberg, tudo indica que um seja Santo Epifânio (315-403) e São Metódio (826-885). No entanto, parece haver um erro na referência proposta pelo autor, visto que Santo Epifânio viveu antes do filósofo Proclo a que se refere. O que nos faz acreditar que estamos, talvez, falando de São Cirilo (827-869), irmão de São Metódio; ndt]. Segundo se conta, quando Fídias [Fídias (c. 490 a.C.- c. 430 a.C.) foi um importante escultor grego; ndt] quis terminar a estátua de mármore que ele estava fazendo em Pisa [antiga cidade da Grécia, na região de Elis; ndt], na qual ele quis estabelecer a segurança da imortalidade de seu nome, ele a coroou, ele a ungiu com óleo e acreditou, assim, garantir soberanamente a eternidade de sua duração. Assim também, o grande Artesão do mundo quis tornar eterna a mais excelente de suas obras – aquele que ele formou com suas próprias mãos e que podemos dizer que seja sua obra-prima: ele derramou dentro dele e sobre a mais nobre das duas partes que o compõem um óleo puro e celeste que o conserva e o guarda da corrupção; ele derramou sua graça; ele o marcou com um caráter que a injúria dos tempos respeita, que o torna inviolável e sobre o qual eles [os tempos; ndt] não seriam capazes de ter poder, mesmo sendo a causa e o princípio de sua ruína. Consideremos ainda os traços da semelhança que estes imortais Gênios têm com Deus: eles não temem nada da maldade da Fortuna – não mais do que temem a Ele –, eles estão protegidos de suas [da Fortuna; ndt] injúrias, eles são felizes, eles são ricos da posse exclusiva de si mesmos. Mesmo participando de uma constituição tão elevada e mesmo vendo abaixo de si os tronos dos Monarcas mais poderosos, ele estão tão firmemente estabelecidos que não sofrem nem a queda nem o abalo; eles gozam de uma paz que nada pode atrapalhar – uma paz que não está sujeita à ordem do destino, que não pode ser interrompida pela mudança ou pela vicissitude das coisas, pela presença mesma da morte. Que maravilha! Um homem frágil e enfermo, que pertence quase completamente à terra, que a calamidade persegue sem cessar, que está sobrecarregado, que está oprimido pela miséria de sua condição; esse mesmo homem pode não somente se separar disso tudo, como também pode alcançar sem nenhum desgaste aquilo que há de mais eminente. E para tudo dizer em poucas palavras, esse homem pode se fazer Deus por seu próprio destino e sem outra ajuda que a de sua Vontade apenas. Se há uma arte para chegar à Realeza, se o poder obedecesse a uma capacidade, e a força à indústria; se o espírito pudesse ser adquirido a preço de ouro ou por preceitos; com que cuidados, eu vos pergunto, nós nos dedicaríamos? Haverá alguém tão preguiçoso e relaxado para quem a aquisição de um bem tão precioso não o torne diligente e atrevido? Onde estará o avaro que não se torna liberal? Não há arte para isso. Não se trata de um segredo que não possuímos e que seja infalível para nos fazer Reis. Incomparavelmente maior é sermos Reis de nossas paixões e de nós mesmos, porque está em nosso poder nos tornarmos mestres do mundo e da Fortuna; está em nós a capacidade de nos tornarmos Deuses. Nós é que não queremos: não temos nem paixão nem sentimento por um tão grande bem. Onde estará o antigo ardor do primeiro homem que queria se tornar semelhante a Deus? Seu crime foi pretender sê-lo desejando uma inteligência igual à sua [de Deus; ndt]. Mas, o verdadeiro mérito é aspirar pelo amor e pela vontade. Adão pecou na maneira de desejar e não no desejo. Nós carregamos a pena de seu pecado, nós temos este desgosto pelo castigo de uma ambição desregrada. Deus dotou o homem de sua semelhança, como se ele fosse sua última e mais excelente produção, como seu bem amado Benjamim, como seu caro Benoni, como o filho de sua direita e de sua dor [Benjamim, em hebraico, significa “filho da direita”, no sentido de filho da força ou da virtude. Benoni, por sua vez, significa “filho da dor”. Segundo a narrativa bíblica (Gn 35, 18), Jacó mudou deliberadamente o nome dado por Raquel ao último filho que lhe nascera: “E, estando prestes a render a alma – porque estava já agonizante – ela chamou o filho Benoni; o seu pai, porém, chamou-o Benjamim”; ndt], para dizer junto com Santo Hilário [Santo Hilário (?-468) foi o 46º Papa da Igreja católica; ndt] que, ao dizer isso, eleva ao mais alto ponto a felicidade do homem, ou seja, ser filho da mão do Todo-Poderoso. O que, de fato, é muito mais feliz do que ser filho de sua paixão. Deus fez o homem com suas próprias mãos, mas ele o refez através de suas dores, ele [Deus; ndt] quis morrer para que ele [o homem; ndt] pudesse viver. Portanto, não apenas ele [Deus; ndt] não o abandonou, como, através da maior prova de seu amor, ele lhe deu o meio de se fazer semelhante a ele. E esse meio não tem nada que ver com a presunção de Adão, mas trata-se de uma maneira inocente e rara: pela moderação da Vontade. Certamente, a vantagem de ser conformes à Divindade, pela glória que temos de sermos sua imagem, e pela graça que ela [a imagem de Deus; ndt] nos concedeu ao nos imprimir seu caráter, ser-nos-ia bastante inútil se nós, em seguida, não tivéssemos o poder de a desejar e de a adquirir.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 110-118[116].
Obs.: há um erro na paginação da obra em francês: da página 112, passa-se à 114, de forma que toda a numeração, a partir desse ponto, está dois algarismos à frente.

Quarto prelúdio - Capítulo VIII

CAPÍTULO VIII
Não teria sido seriamente e segundo a dignidade de seu ministério que o Grande Apóstolo [refere-se ao apóstolo São Paulo (10 a.C.-67 d.C.); ndt] exortava os habitantes de Tessalônica a se alegrarem sempre? Estaria ele os obrigando a algo de tão difícil que eles não seriam capazes de realizar? Estaria ele lhes dando um conselho cuja prática seria impossível? Estaria ele imaginando que eles eram deuses para terem esse raro privilégio de nunca sentir dor, nunca ser incomodado por nenhum mal, de possuir uma alegria que não tivesse interrupção ou desordem? Esse não era, de forma alguma, seu pensamento; ele sabia que eles eram homens e, consequentemente, sabia que eram incapazes, por si mesmos, de uma tão alta prerrogativa; homens enfermos e mortais, incessantemente expostos às malícias da inveja, aos enganos de seus inimigos, ao furor das perseguições, a todas as injúrias da Fortuna, que não apenas é especializada em gastar todas as suas energias contra eles, como também acrescenta vaidade, malícia e ostentação ao que faz. Teria ele acreditado, então, estar fazendo Epicuristas, ou para bem dizer, criando Cirineus que se protegem da tristeza através do prazer e que buscam na Volúpia os remédios para a dor? Ele sabia bem que estava falando aos discípulos de Jesus Cristo, àqueles contra quem, além dos males ordinários da vida, se elevavam poderosíssimos e perigosíssimos inimigos, seus próprios parentes, o mundo e o inferno. Ele sabia que, segundo a regra que haviam recebido de seu mestre, e segundo o fervor com o qual eles tinham abraçado sua doutrina, eles deviam renunciar absolutamente à Volúpia, estavam obrigados de se desfazer da posse de todos os seus bens. Ele sabia que estava falando a um povo que estava numa violenta e geral opressão, entre aqueles cujos suplícios contínuos não seriam capazes de satisfazer a crueldade dos Tiranos, e onde a perda de uma parte não causava a saúde da outra. Ele acreditou que, em meio a tantas misérias nas quais eram acolhidos e ameaçados, não poderia aconselhar nada de mais necessário e mais razoável do que não se abandonarem à tristeza e se alegrarem incessantemente. Isso, certamente, é obra apenas do espírito; somente ele pode nos dar esta contínua alegria. Como ele poderia não nos dar essa alegria se ele só tem necessidade de si mesmo para formá-la? Se ele não somente está acima dos mais violentos esforços da Fortuna e fora do alcance de seus mais duros golpes, como também de sua visada? Seja lá o que ela [a Fortuna; ndt] possa fazer, ela não tem nenhum Governo sobre nós. Por um raro privilégio do qual ele [o espírito; ndt] não poderia se desfazer, ele conserva uma alegria imortal. Por meio dele, o homem, antes frágil e mortal, adquire a vantagem de se elevar à condição dos imortais.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 108-110.

Quarto prelúdio - Capítulo VII

CAPÍTULO VII
Vale mais, portanto e sem dúvida, que a Fortuna seja livre na disposição de seus bens, e que ela nos conceda aquilo que mais lhe agrada, do que ela nos conceder bens segundo a nossa fantasia. É infinitamente mais vantajoso para nós que ela nos distribua seus bens segundo a sua discrição, do que ela nos deixar eternamente gozando de seus favores, fazendo-nos solene promessa de nunca os pedir de volta. Certamente seremos indignos de seus favores se não reconhecermos que se ocupa abundantemente de nós. É preciso admitir que ela nos dá muito; mas, por mais liberal que ela nos seja, a Vontade é muito mais vantajosa para nós, visto que esta última nos dá tudo aquilo que nos é necessário, e faz com que não sintamos necessidade de nada. Ora, há muito o que dizer entre ter muito e ter o suficiente. Aqui estão os limites da cobiça, que são, para esta última, apenas o primeiro prato. Ela [a cobiça; ndt] se irrita incessantemente consigo mesma; ela está numa constante busca e numa avidez perpétua; o último bem que ela obtém sempre a excita a buscar um novo. Todas as partes de um corpo infinito se encontram igualmente distantes do fim; e como as extremidades não estão em lugar algum, o meio está em todos os lugares, cada pedaço, cada ponto é o centro. A extensão de nossos desejos é tão vasto que podemos dizer, seguramente, que é infinito. Todo o progredir da cobiça não a leva a parte alguma, ela sempre está no primeiro degrau, ela sempre começa. Depois de ter tido muitas coisas, ela ainda exige; depois de uma parte, ela quer a outra; ela não é contente; ela quer tudo. Ela pode estar toda preenchida, e ainda assim não está saciada. Quando parece que ela tem o bastante, ela acha que não tem nada. Nossa vontade é feita de uma forma muito perfeita: quanto mais ela é restrita e apertada, mais ela abraça coisas; menos ela é capaz, mais ela recebe. Não há nada que mais mostre a capacidade de um pintor do que reduzir uma grande figura sem lhe fazer perder nada de sua aparência, e nada eliminar de suas justas proporções. É a excelência da Vontade que torna pequenas todas as coisas; reduz nossa alegria sem nada diminuir de sua grandeza. Ela tem uma virtude infinitamente mais maravilhosa do que a daquele famoso anel por meio do qual um Pastor se tornou Rei da Lídia [o “Anel de Gyges” é um mito descrito n’A República de Platão. Segundo a lenda, esse anel tinha o poder de tornar seu usuário invisível. Gyges, um pastor da Lídia, valendo-se desse poder, seduziu a mulher do rei e, junto com ela, matou-o e assumiu o poder; ndt]. Todas as vezes que ele girava o engaste do anel para dentro de sua mão, ele se tornava invisível e protegia-se de seus inimigos; mas quando ele girava no sentido contrário [para fora; ndt], ele perdia esse excelente privilégio. Sem dúvida, se nós nos mantivermos em nossa cobiça, escaparemos da vista da má sorte [no original, o autor usa a palavra fortuna; ndt]: não só não nos acontecerá mal algum, como também conseguiremos adquirir toda sorte de bens; e nos elevaremos a uma condição mais eminente do que a dos Reis. Mas, se nós deixamos a cobiça ir para fora, nós nos entregaremos como presas da miséria; nos tornaremos infelizes. Certamente, aquele que reprime seus desejos recolhe disso esta rara vantagem: conservar inteira a sua felicidade, possui-la sem temor e sem desordem, em meio às mais violentas agitações, em meio às mais fortes tempestades, que a maldade da Fortuna sabe nos suscitar.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 106-108.