segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo XXV

CAPÍTULO VIGÉSIMO QUINTO
É, portanto, sofrendo que se adquire a glória da verdadeira constância, visto que é onde ela age mais nobremente e onde ela realiza mais esforços. Jó e Tobias [Tobit, como dissemos no capítulo precedente; ndt] nos foram dados como os dois mais excelentes exemplos dessa virtude. E é tanto mais razoável nos propormos imitá-los do que ser, como eles foram, tão somente feridos constantemente pela Fortuna; ou tanto mais é razoável imitá-los do que a pessoas que devem o máximo de consolação a suas desgraças, já que eles fizeram brilhar sua paciência em sua miséria, eles não a macularam em nada pela covardia de buscar um remédio [para o sofrimento e para a miséria; ndt] na morte. Há também o tipo de constância cujo exemplo nos foi suficientemente representado na pessoa de Abel, em quem Deus, por um raro e maravilhoso segredo seja de sua bondade que de sua sabedoria, quis  que a Morte, que ainda tinha todas as suas armas, provasse pela primeira vez o inocente, a fim de que, encontrando nisso a paciência, como um duro e poderoso adversário, e realizando contra ela os mais grandes esforços, ela acabasse por amortecer a ponta de sua lança fatal com a qual ela luta contra os homens; e fosse, depois disso, tanto menos perigosa como se estivesse desarmada e tivesse menos com o que ferir. Assim, o inocente Abel a tendo sofrido num momento em que a sua juventude a tornava ainda mais naturalmente assustadora, nos foi proposto para que pudéssemos aprender a sofrer e para que pudéssemos encontrar, na imitação de sua paciência, o soberano temperamento daquilo que ainda permaneceu de amargura. Mas como a experiência nos fez conhecer, em seguida, há dois males piores do que a morte: a vida viciosa, para aqueles que fazem profissão da Virtude; e a vida infeliz, para aqueles a quem a Fortuna persegue. Como os primeiros creem que vale mais a pena morrer que viver na imundície do vício; e os outros desejam a morte por imaginá-la menos dura do que sua miséria; o mundo teve necessidade de dois exemplos para se instruir no sofrimento da Vida. E Jó e Tobias [Tobit; ndt] nos foram tanto mais justamente dados por causa disso, porque eles preferiram  sofrer uma miséria pior do que a morte a cometer a covardia de se livrarem à morte mesma. Eles se conservaram puros e sem mancha sofrendo-a com constância; e nos ensinaram, pela prática da Paciência, qual é o soberano remédio para todas as enfermidades; eles convenceram o vulgo do erro e, com ele, o Poeta Trágico que escreveu esse louvor à morte, não se lembrando de nomeá-la o maior de todos os males [no original latino, Nieremberg se refere a Eurípedes (c. 485 a.C. – 406 a.C.), que é considerado o último dos três grandes poetas trágicos da antiquidade, junto com Ésquilo e Sófocles; ndt]. Mas, como ela pode ser o remédio se ela não pode ser contra ela mesma? E não seria muito estranho que seu único remédio fosse o pior de todos os males? Ésquilo [(c. 525 a.C. – 455 a.C.); ndt], depois de Eurípedes, não teve nenhum constrangimento em nomeá-la o Médico dos males incuráveis; e Sófocles [(c. 497 a.C. – c. 406 a.C.); ndt] não caiu num erro menor ao nomeá-la o último Médico das doenças, visto ser ela mesma uma doença da qual não se pode escapar. Mas, um e outro acreditou que, segundo o método ordinário dos Médicos, a cura de nossos males se devia fazer com remédios mais amargos e mais violentos do que os males mesmos. Certamente seria comprar a um preço muito alto a cura, pagando com a própria vida. A morte carrega muito mais frequentemente os males do que qualquer outro remédio; mas ela é sempre cheia de amargura. E um Cômico, a quem Eurípedes subscreveu sem dificuldade [no original latino, não há referência ao nome desse “Cômico”; ndt], disse que por mais miserável que seja a vida, ela vale mais do que uma boa morte. Será que não seremos capazes de avaliar, depois disso, que nossa condição seria extremamente infeliz se não tivéssemos antídotos para todos os males, ou se vivêssemos apenas essa cruel necessidade de só conseguir nos curar através de um mal tão grande quanto a doença, de forma a deixar sempre algum mal para o qual não há remédio, tornando a vida assim matéria para dor e desespero?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 257-260.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo XXIV

CAPÍTULO VIGÉSIMO QUARTO
Tivemos razão em dizer, portanto, que não se encontrará nele [em Catão; ndt] nada que não se possa encontrar no mais covarde dos homens, visto que, suicidando-se, ele não fez mais do que fez o último dos Reis dos Assírios que, por um ato autêntico de sua moleza, parecida com a das mulheres, não apenas se declarou indigno de todas as vantagens de seu nascimento, como também de todas as prerrogativas de seu sexo. Ele certamente não fez mais do que qualquer mulher faria, mesmo aquelas para quem o hábito e a profissão do vício fizeram se apagar todos os sentimentos de honra, queimaram todas as sementes da virtude. Que glória ele poderia ter pretendido de uma ação na qual ele se acomunou às pessoas mais frágeis do mundo, junto com as crianças, os velhos, os doentes e os insensatos? Verdadeiramente, por mais favorável que seja a interpretação que seus aduladores façam de sua morte, e mesmo que ele tenha desejado ganhar a imortalidade ou se subtrair à tirania, eles [seus aduladores; ndt] não poderiam negar que ele testemunhou impaciência, seja pelo desejo que pelo temor. É preciso que eles [os aduladores de Assurbanípal; ndt] se dobrem ao fato deque em um e outro [desejo ou temor; ndt] ele se mostrou incapaz de sofrer a vida. Na verdade, ele a achava tão insuportável que não foi capaz nem mesmo de procurar a glória de suportá-la o mais pacientemente possível, como suportou, por exemplo, uma vez, a sede nos desertos da Líbia, quando um dos soldados de sua armada, tendo lhe apresentado água, a recusou tão corajosamente e muito longe de tê-lo feito do seu agrado. Ele o expulsou com essas belas palavras: Tu és um covarde. Acreditas, por acaso, que sou o único em meio a essas tropas que seja sem virtude? Como é que eu posso parecer para ti tão dessemelhante àquilo que realmente sou a ponto de creres que eu tenha necessidade do injurioso serviço que tu me prestas? Tu estas certamente bem convencido da fraqueza, tu és certamente bem digno de ser olhado, de ser desprezado por todos os teus companheiros, como aquele que lhes tira a parte de honra que ainda lhes resta no sofrimento dos incômodos pelos quais são pressionados. Depois disso, que desculpa poderá haver para ele? Não teremos razão em dizer que, no final, ele se tornou dessemelhante a si mesmo? E que suas generosas mãos, com as quais distribuiu esta água, saciou a sede de sua armada, perderam sua antiga dignidade ao se empregarem em uma ação tão vil e covarde como a de produzir a própria morte? Digamos francamente, ele esqueceu sua virtude ao querer se eximir de sofrer, vendo sua pátria no sofrimento, e ao aspirar à liberdade sozinho, enquanto sua pátria estava sob o ferro inimigo. Foi uma ingratidão, para não dizer que foi muito desumano, privá-la voluntariamente da consolação que ela pretendia ao partilhar com ele suas dores, partilhando-as com Catão. Fê-lo, estando certo de que os males que nos acomunam às pessoas de bem parecem não nos ser incômodos, que não quase não sentimos os flagelos da Fortuna, vendo-os cair igualmente sobre aqueles que cremos valer mais do que nós, e que é uma espécie de felicidade ser miserável com aqueles que não merecem, de forma alguma, sê-lo. Verdadeiramente, se como antes ele foi coberto de honra ao recusar o remédio para sua sede, rejeitando o remédio que a Fortuna apresentou para a sua dor – e que, sem dúvida, ofendia muito mais sua constância – sua Virtude, que sempre foi grande, conservando-se pura, mereceria ainda hoje todos os nossos louvores e toda a nossa estima.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 255-257.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo XXIII

CAPÍTULO VIGÉSIMO TERCEIRO
São esses excelentes homens, esses Heróis, a quem é justo e necessário imitar; e não seus exemplos imperfeitos que o Paganismo nos deixou, de uma constância falsa ou certamente limitada, de quem pode sofrer muito, mas não por si mesmos. Em verdade, por mais razões que tenhamos para estimar tão altamente esse Filósofo [no original latino, Nieremberg escreve: “Reiicio omnino, quod proposuit Seneca, alioqui saepe verus, interdum Christianus, Catonis exemplum”. Trata-se, portanto, de Sêneca; ndt] cujos sentimentos são, às vezes, tão conformes às máximas e à pureza da doutrina Cristã que parece que ele os tirou da mesma fonte de onde ela [a doutrina cristã; ndt] veio, não há desculpas que justifiquem a morte de Catão como sendo devida ao mais alto efeito da verdadeira constância e de ter sido tão injurioso contra a virtude a ponto de ser honrado tão religiosamente por todos, por tê-la feito partícipe de uma ação tão cheia de fragilidade e de desespero [Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), em Sobre a tranquilidade da alma (XVI, 1-4), escreve: “Vem em seguida uma consideração que muitas vezes, e não sem motivo, entristece nosso espírito e o mergulha na maior inquietude: quando vemos pessoas de bem acabarem mal – Sócrates constrangido a morrer prisioneiro; Rutílio a viver no exílio; Pompeu e Cícero a se entregarem aos seus clientes; e Catão, este Catão, enfim, viva imagem da virtude, reduzido a testemunhar publicamente, atirando-se contra sua espada, que a República perecia ao mesmo tempo que ele. Como não se afligir com a idéia de que a fortuna paga tão injustamente os méritos dos homens? E que esperar para si mesmo, quando os melhores dentre eles são os mais maltratados?”. Trata-se de Marco Pórcio Catão (95 a.C. – 46 a.C.), que foi um político romano e filósofo adepto da escola estoicista. Segundo se conta, Catão, negando-se a viver em um mundo governado por César, suicidou-se, segundo a crônica de Plutarco, jogando-se contra sua própria espada; ndt]. A que título, eu vos pergunto, pode-se ter como constante aquele que foi abatido com o mesmo golpe que derrubou a República? Aquele que não tinha mais coração, tão logo ela [a República; ndt] não tinha mais liberdade? Certamente, isso é apenas uma glória ilegítima, uma reputação vã e sem fundamento, acerca de uma constância que só foi sustentada sobre a prosperidade da Pátria, de uma grandeza de coragem que não conseguiu suportar o objeto presente de suas calamidades. Eu confesso com ele que o combate de um homem magnânimo contra a má sorte é uma ocasião que merece atrair os olhos de Deus mesmo; é um espetáculo digno de que Ele se distraisse um pouco de suas obras para olhar. Mas, o que se pode pretender de semelhante num caso como este? O que encontramos em Catão que não possa ser encontrado em Sardanápalo [em português é mais conhecido como Assurbanípal (c. 690 a.C. - 627 a.C.), que é considerado o último grande rei dos assírios; ndt], ou entre os mais frágeis, entre os mais covardes dos homens? Se nós os considerarmos após a desolação de seu país, quando só um casebre restou em meio às ruínas públicas, compreende-se como ele mesmo é o motivo de sua queda; ele caiu sem ser empurrado por ninguém; aquele de quem admiramos tanto a coragem, testemunhou menos do que as crianças e as mulheres – que normalmente caem de medo quando, por exemplo, alguma coisa faz barulho e não lhe causa mal algum. Mas, não credes, poder-se-á dizer, que, estando de tal maneira encurralado pelo inimigo, os meios de escapar lhe tenham igualmente sido tirados – pelo mar ou pela terra – a ponto tal que ele tenha tido o coração de abrir para si um caminho tão difícil para se subtrair da tirania e se salvar de uma prisão tão estreita? É uma bajulação através da qual pretende-se desculpá-lo; mas, exatamente por causa disso, ele é sobrecarregado, se torna ainda mais culpado; é como querer dar a uma fuga as cores de uma justa retirada; é como revestir uma covardia com as aparências de uma boa ação. Ele fugiu das mãos, não tendo conseguido fugir dos pés. O que importa da forma como foi, visto que sempre vai se tratar de uma fuga? A diferença não é fazer ou não fazer a coisa, ela está na maneira de fazê-la. A indústria de sua fuga não o desculpa em nada, não apaga a censura. Isso foi a invenção de sua fraqueza, que sugeriu isso a ele em meio à absoluta impossibilidade de fugir de outra maneira. Mas, o que pode temer aquele que tão frequentemente teve alguma coisa contra a Fortuna? Foi ela mesma quem deu motivo para que ele ficasse apreensivo. Será possível que ele não a conhecia, tendo estado tantas vezes em suas mãos? Seguramente, ele a conhecia, mas ele abusou dessa falsa persuasão, que ela mudaria como é seu costume. Ele fundou sobre sua ligeireza a esperança de sua salvação. Mas, vendo que contra sua expectativa, ela se ligava firmemente a ele, ela não o largava de forma alguma, ela se obstinava por sua ruína, ele entendeu que este era o derradeiro golpe, vindo muito mais de uma deliberação do que de um capricho, e necessariamente interessado em sua perdição; assim, ele quis se reservar pelo menos esta miserável vantagem de se tornar o instrumento de sua própria perdição, a fim de receber um tratamento menos rude do que aquele que ele podia esperar dela; e por um conselho de sua delicadeza elegeu a morte como o menor dos males que ele cria lhe poder atingir. Mas, essa é uma constância muito fácil de suportar: a constância que escolhe e que faz dela mesma a matéria de seu exercício. Houve suficiente resolução para sustentar as ligeirezas da Fortuna e para não se deixar vencer pelos repentinos movimentos de sua cólera. Mas, ele não pôde se defender contra o seu ódio. É ser mediocremente corajoso rejeitar os arrebatamentos e as impetuosidades de seu adversário. Mas, é ser valente até o mais alto grau sustentar os mais grandes esforços e os sustentar por bastante tempo. Catão, como um covarde e um Atleta vil, fugiu da luta não somente sem ter vencido a Fortuna, mas sem nem mesmo a ter tirado do jogo; e sua infâmia cresceu ainda mais por causa da vaidade que seu inimigo teve de mostrar suas armas e suas forças todas e não ter recebido o menor ferimento. Que razão poderá haver aí para nomear como constante um homem que foi muito menos constante do que aquela que podemos chamar a inconstância mesma? Que razão poderá haver aí para estimar um Filósofo que desonrou tão fortemente este nome? Um Filósofo que ultrapassou, pela prontidão de sua fuga, a ligeireza de todos os movimentos da Fortuna [fala ainda de Sêneca; ndt]. Há ainda menos mérito o nome de justo, tendo feito uma tão grande injustiça contra a virtude, ao acreditar que haja alguma coisa pela qual o sábio deva renunciar à vida. Se, em lugar de ler o livro que Platão escreveu sobre a morte de Sócrates, ele tivesse visto aquilo que foi escrito por um outro Filósofo, que buscou em fontes melhores e tirou esta instrução, segundo a qual não há nada de tão digno que possa obrigar o Sábio a tirar a própria vida. Como é que, disse este Filósofo, aquele que se elevou por um generoso desprezo acima da Fortuna e dos acidentes humanos, renunciando à vida por causa deles, e, por causa disso, sustentando-os como males, estará de acordo consigo mesmo a ponto de não reconhecer como mal aquilo que não é honesto? [no original latino, Nieremberg escreve: "Utinam praelegisset conclusionem Theodori, non dissertationem Socraticam. Nullam satis magnam causam verissime affirmavit Theodorus Cytheraeus sapienti esse ad vitam siniendam". Com este nome, porém, não encontramos referência a nenhum filósofo. Há um nome que se aproxima e que está ligado à vida tanto de Platão como de Sócrates, que é o do matemático e filósofo grego Teodoro de Cirene (séc. V a.C.), que foi professor de Platão e, segundo consta, manteve constantes contatos também com Sócrates; ndt]. Se Catão tivesse aproveitado bem da comunicação que seus estudos lhe haviam permitido ter com Sócrates, ele teria aprendido dele que é uma extrema covardia se desfazer por sua próprias mãos, e que o soldado é um criminoso quando deixa seu posto sem a ordem daquele que o colocou ali. Louvar sua constância, depois disso, não seria prostituir ao vício os elogios da virtude? Não seria pecar com uma extremada ignorância tomar por generoso, por um valente Capitão, como o fez o seu Panegirista, aquele que teve menos coração e bravura do que um franzino e infeliz soldado que deixou seu posto sem ordem e, se é permitido falar assim, que deixou a vida sem ordem de ninguém; e, por uma mesma ação, se tornou culpado duplamente, tendo acrescentado à desobediência a fraqueza? Além do mais, não é nenhuma vantagem alegar que, na noite de sua morte, ele estudava ainda, ele se dedicava à instrução sobre o estado e a duração da outra vida. Há nisso muito mais motivo para dizer que seu estudo foi muito mais inútil para isso do que para dizer que ele tenha aprendido mal acerca da extensão da eternidade. Parece mais que ele teve medo de que ela não fosse suficientemente longa para ele e que se ele não se apressasse em morrer ele poderia não chegar suficientemente a tempo. Ele a mediu comparando-a com sua virtude que acabou tão cedo; mas ele podia muito bem tê-la esperado, como até então ele havia esperado pela Fortuna; e sem dúvida ele teria feito muito melhor colocando sua constância à prova do que se precipitando em fazer a tentativa da imortalidade.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 250-254.

Primeiro meio - Capítulo XXII

CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDO
Depois de Jó – e num outro espaço de tempo – veio Tobias, que acreditou não ter nada de mais soberano para praticar do que a paciência na tristeza da cegueira que as andorinhas lhe causaram [o autor se refere, na verdade, a Tobit, pai de Tobias. Segundo o relato bíblico (Livro de Tobias), Tobit fica cego depois que lhe caem fezes de andorinhas nos olhos (Tob 2, 11); ndt]. Não seria esse um remédio muito mais excelente do que aquele que a Natureza faz com que esse tipo de pássaros busque quando uma enfermidade parecida lhes aflige? Por maior que tenha sido o mérito de sua caridade ao levar os mortos para a tumba, a glória de sua constância foi ainda maior por suportar a perseguição dos vivos [segundo o relato bíblico, Tobit, ao saber por Tobias que "um dos filhos de Israel jazia degolado na praça", levantou-se para dar sepultura ao defunto, como já havia feito antes, tendo sido objeto de críticas e, por pouco, tendo escapado da sentença de morte. Sabe-se que, na ocasião em que se passa o relato, Tobit era exilado em Nínive: "Quando o rei Senaquerib, fugindo da Judéia ao castigo com que Deus o ferira por suas blasfêmias, mandou assassinar, na sua ira, um grande número de israelitas, Tobit sepultou os seus cadáveres. Denunciaram-no ao rei, que o mandou matar e confiscou todos os seus bens. Tobit, porém, despojado de tudo, fugiu com seu filho e sua mulher e, como tinha muitos amigos, conseguiu permanecer oculto" (Tob 1, 21-23); ndt]. Por um necessário efeito de sua inocência, ele foi o digno emulador da paciência de Jó. Ele instruiu o mundo através de suas penas e de seus sofrimentos, até a vinda daquele que, querendo nos conceder a graça de sofrer por nós, se revestiu de nossa Natureza, a fim de realizar seu desígnio, tomando nossa carne para se tornar passível [trata-se de Jesus Cristo; ndt]. Certamente, não nos seria necessário um motivo menor de imitação, para que formemos nossa paciência; e precisaríamos ser excitados pelos sofrimentos voluntários do Salvador do mundo, a não ter repugnância por aqueles sofrimentos que a fraqueza de nossa natureza nos impôs necessariamente. Ele quis nos ensinar, por meio de seu próprio exemplo, que a Paciência é o antídoto raro e geral contra nossos males, o lenitivo de todas as dores do espírito e, como ele disse de si mesmo, o bálsamo salutar e divino que dá inteira cura a todas as chagas. Não era para este mistério que a antiquidade visava, nas trevas de sua ignorância, quando, buscando um perfeito modelo de virtude, por meio de quem a natureza humana pudesse se instruir no sofrimento, e não encontrando nada sobre a face da Terra que não fosse tão inferior à ideia que ela havia concebido, ela fez descer do Céu o filho de um Deus, sob o nome de Hércules, em que se encontrasse uma constância invencível; tendo estendido a liberdade que ela se deu de o fingir até ao ponto de cumprir todos os dons e todas as vantagens que ela pudesse desejar? Ela acreditou que, ainda que os sofrimentos sejam contraditórios e repugnantes para a perfeição da Natureza divina, eles não são, no entanto, indignos. Ela acreditou que era mais necessário nos propor os sofrimentos de um Deus, que nos imporiam uma dupla obrigação de suportar com constância os nossos – seja pelo mérito que há de sofrer, seja pela dignidade da pessoa que nos será proposta para nos mostrar o exemplo. Graças à soberana causa de todos os nossos bens, esse fingimento deu lugar à Verdade. Nós tivemos essa real e perfeita virtude na sagrada pessoa de JESUS CRISTO, que nos tendo deixado o exemplo de sua paciência, nos deu o Soberano remédio para todas as nossas enfermidades. E o que mais poderemos esperar daquele cujos ensinamentos, como todas as suas outras ações, só respiraram doçura? Daquele que, para o dizer em uma palavra, foi a doçura e a benevolência mesmas?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 247-249.

Primeiro meio - Capítulo XXI

CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRO
Ao exemplo de Abel se segue, num intervalo justo, o de Jó, que, por inocente e feliz que fosse, nunca acreditou que sua felicidade fosse perfeita se não vivesse alguma paciência, se ela não fosse revestida e decorada por um tão precioso ornamento. Certamente que ela só se encontra com maior satisfação e alegria entre os bons e os inocentes; é muito raro encontrar a justiça e a probidade entre as riquezas, entre as pompas e no luxo. Foi necessário que a constância desse homem excelente brilhasse mais pela sua adversidade; foi necessário que a perda de todos os seus bens, colocando sua paciência diante de uma última provação, a trouxesse à luz do mais belo dia, a fizesse aparecer no seu mais belo lustre. Assim como a virtude não saberia subsistir, não saberia viver sem o sofrimento – que é seu alimento natural –, sem dúvida alguma ela [a paciência; ndt] é tão mais obrigada e incomodada pelas delícias do que pela falta de alimento, por estar fora do seu elemento. É por isso que ela é a partilha das pessoas de bem. Um dos amigos de Jó certamente teve razão em lhe dizer que as aflições não vêm da Terra. Não é menos justo acreditar que, às vezes, elas vêm do Céu, elas partem de onde procedem os dons e as graças. Isso pode ser mais bem justificado pelos sacrifícios e sofrimentos dos bons e dos inocentes, daqueles que, estando ainda encerrados num corpo mortal, vivem como se já estivesse separados dele e livres, não se apegam quase nada à Terra e não se ressentem das enfermidades dessa vida.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 246-247.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo XX

CAPÍTULO VIGÉSIMO
De resto, os sofrimentos são também necessários, se não for para o bem daquele que sofre, pelo menos que seja para a instrução daqueles que ainda vão sofrer. E, assim como um bom Cidadão se expõe voluntariamente à morte pelo bem do Estado, sem dúvida, podemos dizer que, por essa via – não desculpando nosso sofrimento –, ensinamos aos outros a maneira como se deve sofrer: nosso exemplo é de utilidade pública, excita a coragem e a emulação nos outros, faz de nós objetos de imitação quanto a este fundamento infalível, que é saber que aquilo que se sofreu uma vez pode ainda ser sofrido, mas sofrido com mais paciência do que antes. Assim como a sabedoria da Natureza que fez o bambu com nós que se espaçam uns dos outros regularmente para que, assim, sua durabilidade seja maior e sua fraqueza reparada, também a Providência  e a sabedoria eterna tornaram firme e fortaleceram nossa enfermidade natural, suscitando-nos, de tempos em tempos, excelentes modelos de paciência, de quem pudéssemos aprender a suportar com constância a miséria de nossa condição; até a vinda daquele que sozinho foi capaz de reparar e plenamente sustentar essa mesma condição, pelo mérito infinito de sua morte e de seus sofrimentos [trata-se de Jesus Cristo; ndt]. No entanto, a fim de que nunca faltasse no mundo exemplos de paciência, ele deu ordem de que a sua fosse sempre soberanamente representada no mundo através daqueles que ele honrou com o nome de seus enviados e de seus Precursores; ele quis que Abel carregasse o mais eminente dos títulos. Ele o consagrou à inocência desse primeiro justo, por direito de origem, como princípio, e o transmitiu aos outros por privilégio, como se fosse uma rica herança da qual cada um deles teve uma parte igual; tendo querido que, por uma graça particular ligada a esta sucessão, ele tivessem que sofrer menos, pela consolação, que eles sofressem injustamente e que o rigor de seus sofrimento fosse moderado e atenuado pela alegria que lhes daria sua inocência. As calamidades dessa vida começam com a vida mesma. Elas se produziram no primeiro homem como se numa terra ingrata e infeliz; foram os frutos de seu pecado; mas, para que o remédio não estivesse distante do mal, a rebelião de Adão é que inventou os sofrimentos, mas a inocência de Abel deu início ao uso da paciência. Certamente, ela é a mais preciosa riqueza dos justos; eles não têm nada de mais caro, de mais agradável, do que sofrer com constância. Mas, não sejamos injustos com aquele que nos parece ser, aqui, o primeiro e o mais nobre exemplo dessa verdade, pensando que o mérito de sua paciência recebeu alguma diminuição pelo clamor de seu sangue, que subiu até ao Céu e se derramou no tribunal de Deus mesmo. Por que sua aparência teria sido favoravelmente recebida, e ela teria encontrado suporte e proteção se ela estava cheia de agruras e de impaciência? Não podemos dizer, de forma alguma, que Abel, sendo o primeiro dos homens a morrer injustamente, tenha sido aquele a mostrar, por isso, os fundamentos do Império da morte como infelizes e frágeis, já que, apesar dela, ele ainda vive e fala por seu sangue que não cessa de gritar por vingança. E como não poderiam ser frágeis sendo que estão estabelecidos sobre a injustiça e nada mais, sendo que a morte adquiriu poder sobre o mundo exatamente por esse motivo, entrando e reinando no mundo só por causa do pecado? Ela poderia muito bem se lamentar de ter dado seu golpe de forma muito inhábil, tendo podido mais felizmente tê-lo deixado cair sobre Caim, justificando dessa forma o primeiro ato de seu rigor, exercendo-o sobre aquele cuja malícia tornava o golpe bastante digno, cujos pensamentos e premeditações do crime o declaravam suficientemente culpável. Mas, não foi sem mistério que ela errou dessa forma, visto que, por uma feliz necessidade de nossa salvação, é preciso que, para dar lugar ao efeito da condenação que lhe foi pronunciada, ele tenha feito morrer um justo; dessa forma, ela se tornou criminosa, para que ela mesma pudesse morrer pela mesma morte daquele em quem reside a soberana justiça. Ela gritou também, no início, por um secreto presságio de sua derrota segura, o mesmo que Heron gritou vendo partir da mão do caçador a ave de que ele seria a presa [no original latino, Nieremberg não menciona nenhum Heron, mas coloca esse mesmo argumento na boca de Santo Efrém (306-373), como se ele o tivesse contado, mas não refere o nome do personagem; ndt]. Portanto, ela morreu naquele contra quem ela não tinha nenhum poder, já que seu poder vem do pecado, do que ele, porém, era soberanamente isento.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 243-246.

Primeiro meio - Capítulo XIX

CAPÍTULO DÉCIMO NONO
Certamente, quando penso nas desordens que a impaciência causa em nosso espírito, quando faço uma imagem ingênua disso, não consigo pensar numa maneira mais adequada de atingir meu objetivo do que a comparando a Efialtes [trata-se do nome de diversos personagens da mitologia grega. Porém, nesse caso, Nieremberg está tratando do daimon, ou espírito dos pesadelos; ndt]; àquela obstrução do estômago que nos atinge quando dormimos, por causa dos vapores que a indigestão faz se elevar dentro dele loucamente e que, enchendo-o com violência, fazem com que nos parece estar carregando um fardo pesado e dão a uma imaginação a força de uma verdade. Não há homem que nunca tenha sentido, alguma vez pelo menos, a pena que causa esta curta doença. Porque, a fim de que, no estudo que estamos fazendo de nossa miséria, aprendamos bem até onde se estende seu alcance e, dessa forma, saibamos que nosso repouso mesmo tem seus incômodos; tanto que é indubitável que devemos praticar todo um outro meio para nos garantir contra os males; outro meio que não seja a resistência ou a fuga, visto que só de pensar nos males que nos alcançam quando estamos dormindo já nos damos conta de que é quase infinito. Para falar a verdade, é mesmo no sono que isso nos acontece; e nosso sofrimento é tamanho que nos faz lamentar tão alto e nos atormentarmos tanto como se estivéssemos sempre diante de um perigo iminente, como se estivéssemos sempre a ponto de nos tornarmos presa de uma besta selvagem. Às vezes, parece que estamos caindo em um precipício. Às vezes, parece que estamos sendo engolidos por abismos no mar. E a agitação que nos causa o medo desse perigo imaginário é tão grande que, mesmo quando despertamos, e descobrimos que era um erro, continuamos tremendo, sentimos dificuldade em nos assegurarmos outra vez. Mas o pior é que nos atormentamos inutilmente e nossos esforços para nos desfazermos desse fardo são tão vãos como os fardos mesmos. É preciso dizer mais? Há momentos em que parece que vamos correr sem parar; há momentos em que gritamos com toda força que temos; mas, de repente, as pernas se cansam e a voz nos falta. Quem poderia dar uma imagem mais ingênua dos efeitos da impaciência? Principalmente quando ela age num espírito adormecido nas delícias e na preguiça. Sem ter outro fardo que aquele de sua própria fraqueza, ele [o espírito adormecido; ndt] tenta se desfazer desse fardo, chora, grita, atormenta-se; e fazendo isso, sobrecarrega-se ainda mais, ao invés de se aliviar. Todas as dificuldades que sofrem os impacientes vêm do fato de não quererem sofrer; mas se eles acordassem de vez em quando e voltassem a si, e se resolvessem a querer aquilo que é preciso necessariamente querer, aquilo que nos é impossível evitar, se dúvida o fardo que os incomodava se desfaria e eles se encontrariam, a partir de então, curados de sua doença. Trata-se de conhecer mal a Fortuna pensar que a podemos vencer com a força. Só conseguimos vencê-la, seguramente, através da paciência. Através dela, tornamo-nos tão poderosos e, por assim dizer, tão robustos, que podemos muito bem dizer que nos é muito fácil suportar todas as coisas, valendo-nos apenas de nossa vontade. Sansão [segundo o livro de Juízes (capítulos 13 a 16), Sansão foi o décimo terceiro juiz de Israel, tendo assumido esse posto aproximadamente entre 1177 a.C. e 1157 a.C. Segundo o relato bíblico, Sansão era portador de uma força sobre-humana, cuja fonte eram seus cabelos; ndt] derrubou as portas da cidade onde os Filisteus acreditavam que o manteriam preso. Sua força consistia em seus cabelos, da mesma forma que a força de Ptérela e Niso [sabemos que ambos são personagens da mitologia grega: segundo o relato da vida de Hércules, Ptérela era o Rei de Tafos; enquanto que Niso era o Rei de Mégara, traído por sua filha Sila apaixonada por seu maior inimigo, o Rei Minos. Não encontramos, porém, nos relatos acerca desses dois personagens, nenhuma menção à força deles e sua origem nos cabelos; ndt]. Para falar a verdade, ela [a força; ndt] era muito grande, no entanto, não era uma força da qual pudessem se assegurar plenamente. Aquele que sabe sofrer com constância tem, dentro de si, o título e a prova de uma força bem maior; ele carrega tudo o que quer e, para falar mais razoavelmente, para ele é como se a paciência fosse seu ombro. Assim, nosso espírito não precisa nem de máquinas ou de outros artifícios para suportar algum sofrimento, alguma calamidade que lhe chegue. Sua força está toda nele mesmo e ele não precisa procurá-la em outro lugar.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 241-243.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo XVIII

CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO
Se, para nós, é difícil praticar um tão duro meio de nos instruir à paciência, eis um do qual poderemos nos servir com facilidade. Esperemos constantemente e de pés firmes os males, por maiores que sejam, por estranhos que nos pareçam, sem medo algum: a segurança com a qual nos os veremos vir assustará a metade deles; corrigirá o sabor e amassará a ponta. Mas se nós nos fixarmos nas vãs promessas da Fortuna, a que sempre nos deixamos levar, por mais que continuemos a nos lamentar e a maldizer, por mais que, para falar a verdade, ela nos construa torres perigosas, as tristezas sempre nos tomarão de improviso e nos destruíram pela sua vinda repentina. Não pensemos que seja preciso sofrer muito a fim de evitá-las; sem nos colocarmos diante delas, acabaremos as esperando, as vendo vir e, para uma segurança maior do que dissemos, acabaremos sempre esperando os eventos que são contrários à nossa expectativa, porque o que vemos mais ordinariamente, eu vos pergunto, do que os sucessos que não respondem às nossas esperanças e a nossos desejos? Certamente não há dia que não nos traga penas, ou nos quais não tenhamos que, no mínimo, combater os desígnios que a Fortuna tem de nos causar mal. Sendo assim, não é estranho que a fraqueza de nosso corpo, querendo todos os dias ser reparada e sustentada pelo alimento, seja regularmente atendida por horas de dedicação, e no entanto não dedicamos nem um minuto sequer às limitações de nosso espírito, contra as dores que ele sofre e contra as quais não temos que nos defender por apenas um dia, mas por toda a nossa vida? Consideremos um pouco de quantos diferentes um homem sozinho faz a sua mesa, e como apenas uma de suas refeições tem e consume mais coisas do que a superstição do Paganismo empregava no mais solene de seus sacrifícios. Que loucura é essa a nossa que nos leva a preparar com tanto cuidado aquilo que as Volúpias possuirão, de buscar com tanta curiosidade o uso de delícias que sabemos bem não nos chegarão todas as vezes que quisermos; e sermos tão negligentes no nos fortalecermos contra os males, mantendo-nos seguros, como devemos ser, de que é necessário que soframos os males frequentemente e quando menos pensamos neles, pois podemos sofrer de repente? Quem não se assusta com a repentina aproximação de um poderoso e cruel inimigo, de quem já sentiu várias vezes a ira? Quem, pelo contrário, ao inopinado encontro com um amigo fiel e generoso sente desgosto e confusão? Certamente que nossa cegueira é extrema, quando sofremos dia e noite procurando novas delícias e nunca nos ordenando na preservação dos males. Como não há nada de mais ordinário para nós do que comer e dormir, sempre temos muita atenção nessas tarefas para que sejam agradáveis de se realizar; porém, não cuidamos do fato de que nos é ainda mais ordinário sofrer. Trabalhamos sem cessar para o sustento de nosso corpo e não pensamos nunca em suportar a enfermidade de nossa própria natureza. Por que não sofremos para que não tenhamos motivo para sofrimento? Sem dúvida a moleza e a ociosidade nos tornam mais sensíveis à dor; e não há dor mais doida do que aquela que não foi experimentada antes. Um homem sentado pode ser tanto mais abatido que é como se estivesse meio caído; e aquele que seu inimigo surpreende caído por terra perde, por essa desvantagem, todos os meios de se defender. Assim, não duvidemos que se a Fortuna nos encontra repousando, nos encontra sentados, ela terá muito mais facilidade de nos causar algum mal. Que ela nos encontre, portanto, de pé e acostumados a sofrer. Além do mais, é preciso lembrar que dessa forma estaremos melhor preparados para resistir a ela, evitaremos o inconveniente que a ociosidade causa depois dela, de nos atormentar pela nossa própria impaciência, e de nos paralisar de dor em meio às delícias e às Volúpias.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 238-240.

Primeiro meio - Capítulo XVII

CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO
Façamos, portanto, através de um verdadeiro movimento de virtude, aquilo que pessoas de nada, almas servis, que não têm os sentimentos de honra tais como os que temos, só fazem por maus princípios. Aquilo que a falsa paciência pôde fazer com eles, a boa, a legítima certamente fará melhor por nós. Aquilo que um Gladiador fez apenas com sua força do hábito, façamos o mesmo com a luz da razão; e aquilo que ela produziu num Estoico, esperemos o mesmo plenamente da Graça [no original latino, Nieremberg se refere a Posidônio (c. 135 a.C. – 50 a.C.), político, astrônomo, geógrafo, historiador e filósofo adepto do Estoicismo; ndt]. Não duvidemos que dela recebemos uma tão grande assistência, nem mesmo que tantos excelentes homens também a receberam, ou tão corajosos Atletas a quem ela se comunica tão abundantemente. Nossa miséria é a matéria mais comum onde ela encontra prazer em se derramar; onde ela faz suas mais abundantes efusões; que foi, se pode dizer, seu objeto de estudo, aquilo no que ela mais se exercitou; e que, por frequentes tentativas dela, ela chegou à perfeição, ela produziu, finalmente, sua obra-prima. Para vocês, tratar-se-á do fato de ela nos arrancar nossos males ou de ela nos ter dado força para suportá-los? Foi dessa segunda maneira. De outra forma, que honra, que vantagem teria ela de empregar sua potência contra nossa enfermidade? Experimentar sua força contra nossa fraqueza? Ela age em nosso espírito, da mesma forma que agiria em um sujeito livre e, consequentemente, mais nobre e mais digno da excelência de suas funções; ela o assegura contra os esforços e as falhas da má sorte; ela o fortifica contra as dores e, sem dúvida, obtém muito mais glória agindo sobre ele do que contra ela. 

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 237-238.

Primeiro meio - Capítulo XVI

CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO
Assim, portanto, devemos estar bastante atentos aos sofrimentos ordinários e contínuos, visto que é indubitável que os sofremos; pois isto é instruir suficientemente a paciência; e justifica que eles formam e produzem em nós esta excelente virtude. Os Gladiadores, e outros tipos de gente perdida, que a desumanidade dos Príncipes Romanos sacrificava para o divertimento do povo, quando ainda estavam apenas mediocremente empregados na sua profissão infame, achavam que a constância e a firmeza eram coisas muito boas, de forma que preferiam morrer sob golpes a ter a vergonha de se retirar do combate e deixar aparecer a menor demonstração de dor e de impaciência, até ao ponto de, caídos por terra, todos cobertos de chagas, todos manchados de sangue, esperarem de seus mestres aquilo que desejavam deles. Se eles recebessem a ordem de morrer, obedeceriam sem replicar; apresentavam corajosamente sua garganta ao ferro do inimigo. Não é verdade que não admiramos em nada uma obediência tão exata, uma fidelidade tão inteira em uma coisa tão pouco séria?  Não é preciso que, por imaginar que a Fortuna brinca conosco, que ela oportuna e voluntariamente nos causa algum mal, estejamos menos prontos a sofrer, que ela nos encontre menos firmes e menos resolutos até para a enfrentar a morte, se for o caso. O Sábio deve estar pronto, como um corajoso Atleta, a executar as ordens que lhe vêm do Céu. Depois de ter combatido por muito tempo, ele deve perguntar a Deus o que ainda pode fazer por Ele; apresentar-se mesmo à espada ao invés de se afastar covardemente dela; e empregar o resto de seu sangue para testemunhar sua obediência. É um combate sagrado que ele trava contra a Fortuna; ele é dedicado a Deus; ele tem os homens e os Anjos como expectadores. Que ele sofra, portanto, pacientemente, visto ser infalível meio de conseguir uma vantagem sobre esta inimiga. Nos combates de espada, aquele que feriu a mão do seu adversário sendo obrigado a se deixar tocar e não estando, por isso, cansado de receber golpes, foi muito mais glorioso do que aquele que levou a coroa nos jogos Olímpicos. O Sábio deve, assim, vencer todos os esforços da Fortuna; ele a deve deixar por sua paciência. Dessa maneira, não se poderá dizer que a desvantagem  do combate seja dele; pois nem o que é ferido é vencido, tanto menos o que é tocado é vitorioso. Foi esse o louvor que mereceu o Famoso Gladiador Melancome [não encontramos nenhuma referência a este personagem; ndt], combatendo todos os dias, durante os mais violentos calores do verão, contra dois adversários muito poderosos, um dos quais era o Sol, que parecia estender ainda mais mãos contra ele do que raios, por assim dizer. Tudo o que ele fez foi enfrentar os golpes, sustentando seu esforço, conseguiu vencer um e outro. Podendo vencer pela força,  ele preferiu vencer pela paciência; ele acreditou que o mais valente dos homens pode tombar sob os golpes do mais covarde; e não acreditando ser verdadeira vitória aquela onde o inimigo é obrigado a se render sem ser ferido, ele encontrou ainda maior honra na sua vitória, na qual o adversário não foi vencido por suas chagas, mas por si mesmo.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 234-236.

Primeiro meio - Capítulo XV

CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO
Acostumemo-nos, portanto, com os sofrimentos, tornemo-los familiares a nós, visto que este é o meio infalível para que eles se tornem fáceis para nós. Imitemos o soldado para quem as constantes escaramuças formam a coragem e conferem a segurança para os grandes combates. Experimentemo-nos através dos sofrimentos suaves, para sermos mais audazes e resolutos quando cairmos nas mãos da Fortuna; quando ela nos atacar mais fortemente e ela empregar todo o seu poder contra nós. A história menciona um homem que, para se tornar sábio na arte de sofrer, colocava um carvão em brasa em seu braço nu, soprando-o sempre para que ele se acendesse, experimentando sua paciência através da dor e querendo saber até que ponto ela poderia ir [no original latino, Nieremberg menciona um certo Salústio que viveu na época de Simplício. Não encontramos, porém, referências a este personagem; ndt]. Certamente esse pequeno fogo foi capaz de impedir que ele fosse queimado pela ira da Fortuna; esse pequeno fogo o garantiu contra todos os ultrajes que ela lhe poderia causar, no maior ardor de sua ira. Como nossa previdência enfraquece e diminui os males, a tentativa que fazemos corrige e tempera sua amargura; dessa forma, eles se tornam para nós, sem dúvida, menos formidáveis. O conhecimento  e os hábitos que parece que formamos com eles, arranca de nós o terror e o temor e, consequentemente, nos arranca aquilo que nos faz acreditar muito mais sensível e incômodo o que, de fato, não o é. Foi uma má razão aquela que um Sibarita usou para falar da audácia com a qual os Lacedemônios [os espartanos; ndt] se portavam nos perigos da guerra; quando considerou sua penosa forma de viver e a austeridade dos exercícios a que se dedicavam desde sua infância, ele atribuiu seu valor a uma impaciência de morrer, para se livrar de uma vida que era considerada por eles como uma suplício contínuo; ele deu o nome de covardia ao maior efeito da Virtude. Foi muito injusto ter esse pensamento, foi sinal de muita ignorância não saber que nada nos fortifica mais contra os sofrimentos do que os sofrimentos mesmos, e que a Paciência é o soberano remédio contra a dor. A constância dos Espartanos não era, portanto, um desespero, como esse Sibarita pensava, mas era uma virtude confirmada por contínuos sofrimentos, com a qual não apenas eles suportavam sem dificuldades os sofrimentos necessários, como também ultrapassavam a dureza do destino; e, por uma morte voluntária, eles triunfavam sobre a violência da morte mesma. O famoso Príncipe [no original latino, Nieremberg se refere a Mitrídates e, certamente, trata-se de Mitrídates VI do Ponto (132 a.C. – 63 a.C.), que foi rei do Ponto e um dos mais bem sucedidos inimigos do Império Romano; ndt] que tomando veneno o tornou inocente na medida em que o tornou familiar para si; que evitou o perigo se expondo a ele, se abandonando a ele; e por um milagre do hábito fez com que servisse para o sustento de sua vida aquilo que só poderia destrui-la. Cheguemos a ter um habilidade como essa,  a fim de nos garantirmos contra a malignidade de nossa própria Natureza; endureçamo-nos contra os sofrimentos pelos sofrimentos mesmos. Aquilo que achamos que vai nos perder será o que nos salvará; e faremos a experiência desta importante verdade: que a Paciência é um antídoto que se torna ainda mais excelente e mais salutar pela prática. 

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 232-234.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo XIV

CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO
Sem dúvida um excelente meio de nos instruir na paciência é causar em nós mesmos sofrimentos voluntários; ou, se nossa coragem não nos permite chegar até a este ponto, pelo menos esperar constantemente aquilo que nos é necessário sofrer. Mas, trata-se de algo maravilhoso que as tristezas sendo, como são, tão frequentes na vida, que se possa quase contá-las por horas e momentos, sejamos acolhidos por elas antes que nos imaginemos capazes de chegar a elas. Nós só acreditamos que somos miseráveis quando a presença mesma de nossa miséria não nos permite ter nenhuma dúvida disso. É preciso, pois, nos prepararmos para o sofrimento dos males necessários, impondo-nos a sofrê-los de bom grado. Mas prestemos atenção de, nesse ponto, no aviso de Demócrito, que acreditava ser inútil aprender a sofrer, visto ser também preciso, ele dizia, necessariamente, que soframos e que, por meio disso, não aprendemos a nos proteger dos males. Certamente ele foi sábio e não encontrou nada que tenha sido motivo para o seu riso, tendo motivo justamente nisso. Ele deveria considerar que, ainda que essa aprendizagem não afaste de nós os males, é ela que nos concede, que nos traz este bem tão grande que é fazer com que evitemos as desordens onde a impaciência nos faria cair. Além do mais, é preciso lembrar que se alguém viesse a se formar na constância, a partir do exemplo de nossa fraqueza, aprenderia a se defender dos males da Natureza e da Fortuna; e nós, vendo isso, sentiríamos vergonha de nos vermos incapazes de tirar vantagem para nós mesmos de algo que foi usado por outros. Porque, falando mais claramente, os únicos verdadeiros males são aqueles que a impaciência nos suscita. Todo o resto é inocente para nós e também é incapaz de nos ferir, como se fosse uma espada em sua bainha. Portanto, somente a nossa opinião e a nossa impaciência é que nos fazem mal. Uma e outra atiram esta espada contra nós. E um Filósofo teve razão em dizer [no original latino não há referência a nenhum outro autor além de Demócrito; ndt] que o maior dos males é não poder sofrer o mal. Assim, sem uma tão necessária ciência, ser-nos-á impossível encontrar o repouso na vida; ela é apenas uma contínua matéria de dor e de problemas para quem não tomou o cuidado de se formar o hábito de sofrer.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 231-232.

Primeiro meio - Capítulo XIII

CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO
Mas, apesar de a necessidade de sofrer nos ter sido soberanamente imposta pela Natureza, apesar de esta ser a mais rigorosa condição e a lei mais absoluta a que ela nos submeteu, é de extrema importância para nós, segundo o pensamento de um Filósofo [no original latino, Nieremberg escreve: “Elegans Philosophus in hoc Eusebius ait: voluntarii labore, necesarii sunt laboribus in posterum eventuris, quos facilius tolerabit ille, qui sponte sua praexercitatus in ipsis fuerit”. Trata-se, portanto, de Eusébio da Cesareia (c. 265 - 339); ndt], que nos acostumemos a sofrer voluntariamente, a fim de formar em nós o hábito de sofrer sem pena aquilo que sofremos por necessidade. Assim, vemos o bastante que o remédio infalível contra os sofrimentos depende puramente de nós; por mais difíceis e duros que seja, a prática os torna fáceis de serem suportados, graças ao costume. E verdadeiramente, como as mordidas dos animais venenosos só são curadas pela aplicação mesma de seu veneno, assim também nós encontraremos um tão salutar antídoto. Os sacrifícios sofridos voluntariamente e de nosso bom grado adoçam e temperam aqueles que devemos suportar necessariamente. Mas esta lei natural não nos seria difícil e não sentiríamos repugnância por ela, se guardássemos algumas regras e medidas no sofrimento, se não nos fizéssemos mais infelizes do que realmente somos. Porque é certo que nossa miséria cresce bastante por nossa própria falta. Outro Filósofo teve muita razão em dizer que sofremos, em parte, porque ignoramos a verdadeira maneira de sofrer [no original latino, não encontramos nenhuma referência a este autor. Ao que tudo indica, esse “Filósofo” foi incluído pelo tradutor; ndt]. Aqueles que são os mais felizes devem curiosamente se instruir das misérias desta vida, para terem a vantagem de as conhecer e sofrê-las com menos dificuldade caso aconteça de serem acolhidos por elas e se lhes for impossível evitá-las. E, para falar seriamente, o que poderíamos fazer de mais razoável do que nos tornarmos sabedores do estado e das condições de nossa natureza? O que mais poderíamos fazer do que aprender que somos sujeitos à morte? Do que mais poderíamos tirar uma vantagem tão grande do que desta meditação tão salutar? Trabalhemos, portanto, para adquirir uma ciência tão útil e tão necessária, desacostumando-nos da reverência que temos pela Fortuna, aprendendo a suportar seus flagelos de tão bom coração como se os tivéssemos desejado.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 229-230.

Primeiro meio - Capítulo XII

CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO
Disso tiraremos, talvez, motivo para nos espantar: por que o homem, o único dos animais destinado à beatitude, nasce para a pena e para a dor? Por que ele se devota à alegria chorando? Por que, sendo o único capaz de felicidade, é o único capaz de lágrimas? Isso não nos parecerá estranho quando entendermos que ele nasceu para a virtude, a única via para se chegar à felicidade; consequentemente, ele nasceu para o sacrifício, que é a matéria de que é composta a virtude; quando entendermos também que o caminho para chegar a ela é todo coberto de espinhos, é cheio de dificuldades e impedimentos. E quantas e quão grandes ocasiões não faltam à Natureza, eu vos pergunto, de agir? Onde haveria ocasião se não houvesse miséria? De que serviria a constância? Qual a glória que ela nos daria se não sofrêssemos mal algum, se a vida não fosse cheia de calamidades e desgraças? Quem seria liberal e caritativo se não houvesse pobres? Enfim, para mostrar a força dessa verdade a apoiaremos sobre a mais potente das provas: se os homens não fossem mortais, como adquiririam a imortalidade desprezando a morte? Eis onde se ajusta mais precisamente a relação entre o homem e o pássaro. Este, deixando a terra, se eleva o mais alto que pode no ar, de forma que parece que seu voo tem por único objetivo o Céu mesmo, e vivendo nas regiões que são mais próximas do Céu, como se estivesse na sua verdadeira morada, não desdenha de lançar os olhos sobre aquilo que está por baixo dele; o pássaro também vendo, às vezes, que sua força está acabando e que seu voo se estendeu por demais, desce e se aproxima de nós, sem jamais se esquecer do instinto que tem de se elevar, não buscando, com isso, lugares mais eminentes ou se esquecendo que seu elemento não é a terra. O homem, como o pássaro, nasceu para o Céu, olhando o mundo como um objeto bem abaixo de sua ambição, e considerando a dignidade do tempo para o qual anseia a partir de seus sacrifícios, como o pássaro a partir de suas asas. Sem mentir, a Providência se mostrou maravilhosa ao nos impor a necessidade de uma coisa cuja excelência sozinha seria suficiente para nos solicitar os desejos e que é tão vantajosa para nossa natureza quanto inseparável dela. Isso não deveria ser o bastante para nos fazer amar a paciência? Um Doutor Árabe [no original latino, Nieremberg também fala genericamente de um árabe, mas não menciona nome; ndt] teve razão ao dizer que ela se mensura pelo bem e utilidade que dela recebemos. E a experiência justifica suficientemente que o sacrifício nos foi necessário para que a vantagem que o acompanha nos fosse infalível. Assim, quando a Fortuna se debruçar em favor de alguém, tornando-o mestre de tudo o que ela possui de bens e sem temor de empobrecer, tornando-o rico; quando ela passar para ele até a última gota de prodigalidade, não duvidemos de que essa pessoa tão feliz não tenha visto nem uma vez sequer sua vida reduzida ao sofrimento; e que na abundância e na plenitude de todas as coisas ela não tenha encontrado algum sofrimento. Haverá uma prova mais evidente do que a extremidade na qual caíram, um dia, dois dos mais poderosos Príncipes do mundo, Dário e Pompeu, o extremo de não possuírem nem mesmo uma gota de água para matar a sede, de se verem, então, inutilmente donos de tantos rios? O Grande Alexandre não pode nem mesmo, algumas vezes, se proteger do frio, mesmo sendo possuidor absoluto do Oriente e estando sempre como se na casa do Sol; ele teve em seu poder o princípio e a fonte do calor; e sua dominação foi tamanha que a única coisa que lhe era possível era impedir que este Astro trouxesse o dia para o Universo, todo o resto lhe parecia possível.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 226-229.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo XI

CAPÍTULO UNDÉCIMO
O homem nasce chorando; as primeiras produções da sua Primavera são as lágrimas; julguemos disso quais serão as outras estações de sua vida, e que frutos poderão nascer dessas flores. Não passa tempo algum, para ele, entre nascer e sofrer; no mesmo instante, as duas coisas acontecem; e tão logo ele chega ao mundo, já se aflige de ter vindo a ele. A dor é o primeiro reconhecimento ao preço do qual ele paga a visão do dia; e ele o paga, em seguida, até ao fim da vida, outros tributos à miséria. Aquele que resiste a um dever tão necessário e natural comete injúria contra a dignidade de sua própria condição, ofende a natureza ao acreditar que ela não o fez capaz de sofrer; e por isso ele decai, ele se torna indigno de todas as vantagens que recebeu dela. Que ele sofra, portanto, na maturidade o que sofreu na infância, e que não tenha vergonha do seu destino, já que ele não abriu sua boca mais para respirar do que para se lamentar. Que ele pense que esteja nisso o verdadeiro emprego de sua vida, e que se possa dizer que ele é menos inocente por viver do que por sofrer. Esta é a primeira lição que nos é dada, e a última que aprendemos. Todos os animais conhecem, desde o princípio, suas forças e, sem qualquer outro estudo que seu instinto, sabem e procuram aquilo que lhes é próprio. Só o homem nasce ignorante, nasce inábil para tudo menos para as lágrimas, que é um bem que ele recebeu da liberalidade da Natureza. Ela lhe deu as lágrimas gratuitamente; e ele deve saber lhe ser grato por isso, mas também deve saber a causa. E é para moderar, de alguma maneira, os rigores que ela lhe impôs e para temperar sua amargura com alguma doçura; por isso, ela quis lhe dar essa atenuação comum de seus males, ela quis lhe dar esse instrumento e lhe preparar esse primeiro remédio contra os golpes que ele receberá da Fortuna. A experiência nos ensinou que esse remédio é de uma virtude singular para que ele [o homem; ndt] ache menos rude os golpes da Fortuna, e para que as chagas mais dolorosas sejam aquelas que não sangrem à vista dos olhos. Aprendamos disso o quão natural é para o homem sofrer, pois somente ele tem o dom de chorar. A felicidade dessa vida – falo daquela que procuramos fora de nós – é tanto menos curta quanto é violenta. O brilho das coisas do mundo é apenas uma luz falsa que a Fortuna lhes empresta contra sua vontade para que, por essa mesma razão, ela possa retirar esse mesmo brilho e ele desaparece em um piscar de olhos. Desta instabilidade procede tudo o que nos faz mal. Assim, portanto, nos é extremamente natural sofrer. Alguém poderia pensar que nisso é que se encontra nossa infelicidade. Até posso dizer que sim, desde que soframos impacientemente. Mas, saibamos que a Natureza não nos faltou em nada daquelas coisas que ela julgou como necessárias para nós; e saibamos ainda mais que recebemos também uma particular assistência do Céu. Houve muitos homens que nunca quiseram rir, mas nunca se viu um homem que não tenha chorado. Mesmo aquele para quem a vida sempre foi motivo de risos, Demócrito [cf. tag ao lado; ndt], chorou quanto nasceu. Certamente não existe a pessoa que possa se gloriar de nunca ter sofrido; está por nascer essa pessoa que possua a vantagem de ser isenta de dor e de pena.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 224-226.

Primeiro meio - Capítulo X

CAPÍTULO DÉCIMO
Imprimamos bem fundo no nosso coração as palavras do Temanita [trata-se de um dos três companheiros de Jó, Elifaz o Temanita. Conforme o relato do segundo capítulo de Jó, Elifaz é o consolador cujo discurso é o mais extenso. Os outros “consoladores” são Bildade e Zofar; ndt], que tendo estudado seriamente esta vida, disse que o homem nasceu para sofrer, como o pássaro para voar. Pode essa verdade ser representada por uma comparação mais justa e própria do que essa? O que falta ao pássaro de tudo aquilo que serve para a sua leveza e que fazer parte de sua natureza? Consideremos como ele tem o bico como se fosse uma proa, para fender o ar; como sua cauda lhe serve de timão para manter firme sua rota e modificá-la quando lhe parecer necessário; como suas asas são composta de uma dupla camada de penas de diferentes tamanhos, como se tivesse uma fila dupla de remos; como, ao voar, ele recolhe seus pés dentro de si mesmo, e como ele os lança para fora como se fossem duas âncoras que ele quer pousar sobre um galho, a que podemos dar o nome de porto. Será preciso refletir mais sobre isso? Não foi sobre esse modelo que os homens construíram tantos navios que, atravessando em tão pouco tempo um tão grande espaço de mares, imitam tão bem esses navios do ar em sua velocidade e em sua estrutura? Assim, o homem é votado ao sofrimento pela condição de seu nascimento. A natureza parece ter se explicado suficientemente sobre o desígnio que ela teve de colocá-lo para isso no mundo; tendo-o deixado nu, pobre, sem armas; desprovido de tudo aquilo que lhe poderia servir de defesa; abandonado frequentemente a si mesmo; e, para dizer em uma palavra, tendo lhe dado a miséria por elemento, como deu o ar ao pássaro. Assim, mesmo que algumas vezes ele não tenha aquilo que lhe é necessário para passar a vida, ele tem tudo o que lhe é necessário para suportar a dor. Como o pássaro tem suficientemente tudo o que é necessário para voar. No entanto, há, entre eles [pássaros e homens; ndt] essa diferença: aos pássaros, as asas, que são o instrumento de sua leveza, podem faltar; enquanto que aos homens não poderia faltar aquilo que lhes confere o meio de sofrer. A Natureza lhe foi bastante favorável ao não colocá-lo longe de um bem tão importante. E, verdadeiramente, pode acontecer muito mais ao Cervo de não conseguir correr, pode acontecer ao lobo e aos outros animais carniceiros de não viver de suas vítimas, ao Leão de não assustar, do que ao homem de não poder sofrer. Eis aqui, sem dúvida, a mais alta marca do cuidado que a Natureza teve para com ele. Ela não permitiu que ele pudesse ser privado de uma vantagem que lhe confere outras tantas.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 222-224.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo IX

CAPÍTULO NONO
Como não há nada de mais próprio ao homem do que sofrer, nada lhe é mais necessário do que a Paciência. É um raro e maravilhoso remédio que recebemos da natureza, para nos servirmos contra nossos males; que tem a virtude de nos curar de nossos mais agudos problemas e que, por uma propriedade maravilhosa, acaba com a ponta de todas as flechas da má sorte. Nossa condição não é mais infeliz do que a dos animais; cada um deles tem seus próprios ditames. O Javali ferido corre para as ervas. O Dragão, para o alface selvagem. A Cobra, para a erva-doce. A Tartaruga, para o tomilho. Há também os que têm seu remédio mais pronto e mais próximo: o cão, por um privilégio particular, encontra sua cura em si mesmo e não tem precisão de outro balsamo do que de sua língua. Nosso universal e soberano ditame é suportar pacientemente, sem desgosto e sem murmúrios, nossas calamidades. Não é suficiente para nos explicar dizer que não há nada de mais próprio a nós do que sofrer. Digamos que nos seja absolutamente necessário. Consequentemente, não há nada de que tenhamos mais necessidade do que de paciência. E podemos dizer com ainda maior razão que, por uma graça antecipada, o hábito que temos de sofrer faz com que não soframos com nada. Tornamo-nos impassíveis sofrendo pacientemente; por esse meio, nosso espírito se torna invulnerável às mais poderosas flechas da Fortuna; e é apenas por causa do vício contrário, pela impaciência, que ele pode ser ferido, como Aquiles no calcanhar. Se a vantagem que esse hábito excelente nos traz não chega ao ponto de nos impedir de buscar os males, ele nos faz, pelo menos, sofrer sem coerção e sem pena quando eles nos chegam. Através desse meio, escapamos  aos mais duros problemas desta vida, criamos uma muralha segura contra toda sorte de infelicidade. Portanto, soframos agradavelmente aquilo que precisamos sofrer por necessidade. Assim, tornaremos nossa paciência ainda mais gloriosa do que se nós adquiríssimos o mérito a partir de uma ação voluntária e livre. Nossas mãos, nossos pés e as outras partes de nosso corpo se tornaram ainda mais inhábeis em suas próprias funções do que incapazes de sofrer. Seja como for que elas estejam  [todas partes de nosso corpo; ndt], eles poderão servir de matéria para nossa virtude, elas estarão sempre em bom estado para isso, mesmo depois da mais cruel violência do fer e das doenças. Um Sofista afligido pela gota dizia, eu não tenho pés nem mãos quando é preciso que eu coma ou que eu caminhe, mas eu os tenho quando é preciso que eu sofra [no original latino, Nieremberg escreve: “Egregie Herodes Sophista, dum podagra & chiragra laborabat. Cum, inquit, edere oporter, manus non habeo; oportet progredi, non sunt mihi pedes; oportet dolere, tunc & pedes mihi sunt, & manus”. Trata-se, portanto, de Herodes Ático (101-176), também conhecido como Lúcio Vibúlio Hiparco Tibério Cláudio Ático Herodes, que foi um retórico greto e político a serviço do Império Romano, famoso pela fortuna que possuia. Sua vida é conhecida a partir das obras de Filóstrato (170-250), sobretudo no texto Vida dos Sofistas; ndt]. Isto justifica que, por mais impotente e mutilado que seja nosso corpo, podemos nos gloriar de ser inteiramente capazes de sofrer; é nisso que consiste nossa perfeição; e o sofrimento é tão conforme à nossa natureza que podemos sofrer nas mãos e nos pés, quando não temos quase nem mãos nem pés. Não pensemos que há contradição nisso, mas saibamos que quem não pode sofrer neles, não pode verdadeiramente crer possui-los. Não nos faltará nunca suficientes motivos para exercermos nossa paciência. Podemos mesmo estar certos de que nós é que faltaremos aos motivos, quando nosso corpo mesmo vier a nos faltar.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 220-222.

Primeiro meio - Capítulo VIII

CAPÍTULO OITAVO
Além do mais, não entendemos apenas pela Paciência, esta excelente virtude que nos concede a vantagem de não sermos nunca vencidos pelos males, a nunca sucumbirmos à dor, mas também ela nos ensina a sofrer constantemente a má sorte. Escutamos também aquela que nos ensina de que maneira se deve suportar a boa sorte; e acreditamos que esta é a mais frequentemente difícil de se praticar. Aquela é puramente passiva e esta consiste toda em ação; como não é nosso objetivo tratar sobre isso, nós a reservaremos para outro momento. Ela se divide em vários empregos, e este caula se divide em vários ramos. Um grande Doutor da Igreja [no original latino, Nieremberg anota: "Aliis distribuitur modis patientia: a divino Ephrem trifariam: aliam dixit patientiam erga Deum; aliam erga Daemonem; aliam erga homines". Trata-se, portanto, de Santo Efrém (306-373) que foi teólogo, monge, poeta e é considerado Doutor da Igreja; ndt] lhe dá três principais usos, um para Deus, outro para os homens e um terceiro para o seu inimigo comum. Poderíamos acrescentar um novo, muito mais difícil, como também mais importante que os outros e que tem por objeto cada um de nós em particular, e que pode ser reduzido ao exercício desses dois princípios: agir para outros e agir para nós. Esta que nos diz respeito é mais nobre e mais excelente, já que sabemos que há mais dificuldade em carregar o que está sobre nós do que o que simplesmente sustentar o qeu está perto de nós. É muito mais fácil para os animais de carga puxar um fardo do que carregá-lo; e para um só homem que ordinariamente os sobrecarrega, eles [os animais de carga; ndt] puxariam uma família inteira. A Paciência é a base e o fundamento da tranquilidade do espírito; é o título soberano de nossa paz e de nossa alegria. Eu vos pergunto, do que nos serve estar de mal com os outros, mantendo, como fazemos, uma guerra contínua conosco? Dediquemo-nos, primeiramente, a acalmar as tempestades que a cobiça levantou em nosso coração; tenhamos cuidado em estabelecer nele um firme repouso, e não teremos nenhuma dificuldade em sofrer tudo aquilo que nos vier de bem ou de mal, ser-nos-á muito fácil suportar a nós mesmos.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 219-220.

Primeiro meio - Capítulo VII

CAPÍTULO SÉTIMO
Aqui, me dou conta de que o Filósofo que quis nos tornar fácil o estudo da sabedoria, reduzindo-a toda ao exercícios da Paciência e da Moderação [no original latino, Nieremberg cita Epícteto, sobre o qual já falamos em nota anterior : filósofo grego, que viveu entre c. 55 a.C. e c. 135 a.C. Era seguidor da escola estóica e viveu parte de sua vida como escravo em Roma; ndt], se afastou bastante de seu objetivo; e não apenas não a resumiu, como também a reduziu a metade, visto que a restringiu apenas à prática da Moderação. E, em verdade, quem pode dizer razoavelmente que não deseja nada, porque tem algo que não deseja? Porque tem algo que não é de seu agrado e que não desejou? Para dizer mais corretamente, é um sofrimento não estender nossos desejos para além daquilo que temos, não os levar para mais longe do que a nossa posse presente. É saber esta arte tão necessária de se acomodar aos movimentos, aos caprichos da Fortuna; e não duvidemos de que aquele que conserva sua vontade clara e pura suporta muito melhor o que lhe acontece de ruim, visto que ele sabe por experiência que a adversidade é leve e que ela só nos pesa porque nos encontra já carregados de nossa cobiça. Assim, é o arreio que nos incomoda e não a carga. Entretanto, porque não a conhecemos, achamos que nos aliviamos, mas nos sobrecarregamos de novo; tudo o que fazemos é aumentar bastante o peso de nossa miséria. Nisso, não somos menos ridículos do que o Aldeão que, voltando do trabalho no campo, acoplou seu arado a um dos animais da lavoura e foi tão pouco razoável de montar sobre ele; mas vendo que, por causa de um tão grande fardo o animal não conseguia se mover, ele pos os pés nos chão, tomou sobre si o arado e montou no animal, imaginando que assim o aliviaria do peso. Temos imensos cuidados em descarregar nosso espírito do fardo dos desejos que pesam sobre ele; mas, pelo contrário, nós o aumentamos sempre e sem que a Fortuna se meta nisso, sem que ela acrescente coisa alguma; somos nós que nos colocamos na situação de não poder suportar-nos a nós mesmos. Tiremos, portanto, nossa cobiça e sofreremos sem nenhuma dificuldade qualquer problema que possa chegar a nós; não há nada de insuportável, nada de duro e de incômodo para quem não sobrecarrega seu espírito com os tristes pensamentos sobre o futuro. São grandes fardos que têm a maravilhosa habilidade de se tornarem pequenos e se fazerem tão pouco volumosos a ponto de entrarem facilmente em nosso coração e torná-lo suscetível ao temor por acontecimentos que frequentemente o tempo sozinho não produziria. Mas nossa tristeza é tal que a espera pelos bens não nos causa maior mal do que o medo pelos males. Não seríamos capazes de ter, ao mesmo tempo, tudo o que podemos apreender; é muito pouco tudo aquilo que a Fortuna nos pode suscitar de uma única vez; e se ela não tomasse de empréstimo de nós mesmos, se ela não se valesse de nossos desejos, ela seria desarmada já na primeira ocasião, ela seria esvaziada de sua astúcia bem cedo. Tiremos desta verdade que, reprimindo nossa cobiça e praticando a moderação, não apenas tiraremos todas as vantagens que a acompanham [à Moderação; ndt], como também conseguiremos as vantagens que vêm da paciência. Abstendo-nos do desejo pelos bens, sofreremos muito facilmente os males, iremos rumo à felicidade pela via melhor e mais curta.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 216-218.

domingo, 5 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo VI

CAPÍTULO SEXTO
Mas, se não podemos sofrer sua [da Fortuna; ndt] selvageria e violência naturais, se nos é impossível competir com ela, pelo menos não deveríamos, razoavelmente, nos lamentar disso; fazemos-lhe injustiça ao lhe imputar a causa dos problemas que nos chegam, visto ser indubitável que eles procedem puramente de nós, que ela não tem nenhum meio de nos afligir que lhe seja próprio ou, pelo menos, não tenha sido instruída nele por nós mesmos, e que ela faz a guerra com nossas próprias armas. Verdadeiramente, se queremos estar protegidos de suas ações, é preciso renunciar inteiramente a nossas esperanças e a nossos desejo; é preciso nos desfazer totalmente deles. Nós lhe arrancaremos as coisas que a favorecem  e lhe dão poder sobre nós; enfraqueceremos extremamente a sua potência ou, pelo menos, diminuiremos sua capacidade de nos prender. Quando nos dermos conta de que ela nos quer reduzir à pobreza, previnamo-nos contra esse seu desígnio, reduzindo-nos nós mesmos à pobreza; coloquemo-nos onde vemos que ela está mirando e, certamente, estaremos no lugar mais seguro possível. Um homem galante, entre os antigos, vendo um mal Arqueiro que sempre errava o alvo, alojou-se exatamente ali, onde cria ter menos motivos para temer [no original latino, Nieremberg se refere ao certo Stratonicus. Ao que tudo indica, trata-se de Estratônico de Atenas, músico famosos que viveu no século IV a.C., em Atenas, na Grécia; ndt]. A Fortuna é cega, consequentemente ela é muito desajeitada e inábil; alojemo-nos exatamente onde é o seu alvo, pois ali ela não nos atingirá; e quando suas flechas vierem a cair sobre nós e vejamos que estamos ao seu alcance, estejamos certos de que, se estivermos sem cobiça, elas não terão força, não terão pontas. Nossa moderação é quem tira a força e a ponta de suas flechas e as coloca em um estado tal que não precisamos temer, de forma alguma, que eles possam nos ferir.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 215-216.

Primeiro meio - Capítulo V

CAPÍTULO QUINTO
Eis como a moderação  produz bens infinitos. A Paciência não produz menos, e sua prática é mais fácil para nós, visto que, sem dúvida, um mesmo estudo pode nos servir par uma e para outra, e nos é suficiente instruirmo-nos naquela para sabermos usar esta. Encontraremos esta mesma conformidade nos vícios que são seus opostos. A impaciência se excita e cresce pela cobiça; e começamos a temer tão logo começamos a esperar. Cortemos esta raiz fatal de todos os nossos males; entricheiremos nossas esperanças e nossos desejos, experimentaremos que a má sorte pode não apenas ser sofrida com paciência, mas também com alegria. Não sei quem foi aquele, pelo exemplo de quem, pretendo justificar esta verdade; mas só pode ser um homem excelente que, estando em risco de naufrágio, jogou todos os seus bens no mar e rendeu graças à Fortuna pelo fato de ela, por uma feliz infelicidade, lhe ter obrigado a descarregar ao mesmo tempo seu navio e seu espírito daquilo que poderia igualmente fazer afundar um e outro [no original latino, Nieremberg anota: "Crates, sive Zeno, magnus quidem, quicumque sit, aspero Neptuno exoneraturus mercibus navem libens, laetus opes suas in mare iecit, & gratias fortunae agens, inquit: Bene, o Fortuna, bonorum mihi magistra". Trata-se, portanto, do filósofo Crates de Tebas (c. 368 a.C. - c. 288 a.C.), grego pertencente à escola cínica de filosofia. Foi professor de Zenão de Cítio e discípulo de Diógenes de Sínope; ndt]. Que cada um de nós faça o mesmo num encontro semelhante e mantenha, nesse momento, uma conversação como essa. Fortuna, eu te agradeço pelo cuidado que tu testemunhas ter com minha salvação. Tu me obrigas bastante, vindo buscar, pessoalmente, aquilo que, há bastante, eu tinha que te devolver. Tu me fizeste um grande favor ao me permitires usar daquilo que não é meu; mas tu me fizeste um favor ainda maior ao retirá-lo de mim, evitando, por esse meio, que eu me enganasse. Tu me advertiste docemente de meu dever. Foi a melhor coisa que tu me poderias ter feito. Compreendo suficientemente tua intenção. Tu queres minha emenda, tu queres que eu retorne a mim mesmo, que eu trabalhe no sentido de me tornar um homem de bem, que eu obedeça a Deus, que eu me submete inteiramente às Suas vontades, que eu tenha uma perfeita resignação. Tu te serves de teu direito, vindo retomar aquilo que te pertence, e por uma agradável severidade, que vale, sem dúvida alguma, muito mais do que tua doçura, tu me exortas não apenas a abraçar a virtude, como também a me dirigir para ela, tu me obrigas a ela. Eu bendigo a tempestade que tu me suscitas, pois ela me lança no porto; eu te rendo graças por me encontrar inteiro e são depois do naufrágio. Restaram-me ainda muitas coisas que tu poderias ter levado; reconheço francamente que elas te pertencem todas. Tu me fizestes tantos bens, dos quais tu nem sequer te lembras mais, mas eu conservo a memória de todos eles. Retoma tudo o que tenho fora de minha pessoa, sobre a qual tu não tens nenhum direito; da mesma forma que eu não tenho nenhum direito sobre aquelas que tu me deixas, porque tu mostras suficientemente o quanto desprezas o que não te pertence. Queira Deus que sejamos capazes de resolver fazer com ela aquilo que um certo homem fez com aqueles que o assaltavam; como ele os ouviu entrando em sua casa, ele lhes disse peguem tudo aquilo que quiserem, e não se colocou em posição de os impedir. Os ladrões, levando tudo o que lhes pareceu mais precioso e lhe deixando a bolsa, contra a sua expectativa, foram seguidos por ele que lha apresentou a eles, acrescentando, eis algo de que vocês se esqueceram. Essa frieza e essa ingenuidade, certamente, lhes agradou tanto que não somente eles lha deixaram, como também lhe devolveram todo o resto. Que sabemos nós do que a Fortuna poderá fazer, se usarmos dos mesmos modos com ela? Quem sabe ela não ficaria de tal forma tocada com um procedimento tão franco a ponto de fazer o mesmo conosco? [no original latino, Nieremberg se refere a "cristão" como sendo o personagem desse relato; ndt].

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 213-215.

sábado, 4 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo IV

CAPÍTULO QUARTO
Consideremos seriamente o quão rara é a vantagem que a moderação nos concede, já que é certo que, reprimindo nossa cobiça, arrancamos da Fortuna o mais seguro meio que ela possui de nos causar mal. Mas, não pensemos, no entanto, que nisso precisamos de nossa vontade inteira, seguramente a metade já será suficiente. E saibamos que é como um arco, cuja força aumenta quanto mais curvado for, e que não tem força nenhuma se estiver extendido. Pensemos em nossa liberdade natural como se ela tivesse duas mãos; pois é assim que, muito propriamente, se pode nomear seus dois privilégios – querer e não querer. Somos frágeis e impotentes no caso da primeira [das mãos; ndt]; mas, pelo contrário, somos muito mais fortes quanto a outra, já que está absolutamente em nosso poder não querer aquilo que não temos. Através daquela, nós nos abandonamos, nós nos entregamos a todas as coisas que estão fora de nós, tornamo-nos escravos da Fortuna; mas através desta, nós nos tornamos seus senhores, nós a submetemos absolutamente a nosso poder. Aquele que obstaculiza sua cobiça pode muito bem se gloriar de estar protegido e como que intrincheirado contra os esforços desta inimiga. Que fraqueza é essa nossa que chega a temê-la, se somos mais fortes do que ela somente usando metade de nossa vontade, como o somos seguramente? Basta-nos uma mão para resistir a ela. Basta-nos uma perna para correr atrás de nossa felicidade. Mas, não é apenas nisso que se encontra toda vantagem que a moderação nos traz. Como ela nos permite apreender as injúrias da Fortuna, ela nos dá muito abundantemente o suficiente para não desejar seus favores; ela nos enche de bens; e sua magnificência se dirige a nós de forma tão favorável que, comparados a nós, os mais opulentos Monarcas parecem pobres. E o que é ainda mais raro é que nossa riqueza não é menos inesperada que grande, visto que para adquiri-la seja necessário apenas não querer. Toda a prudência humana seria capaz de nos conferir um meio mais adequado e seguro para nos enriquecer? O que poderíamos desejar mais do que ver pobre, em comparação conosco mesmos, aquela que dispensa os próprios tesouros? Assim, ela não terá nada que nos atraia e nos chame a atenção. Não haverá nada em nós que aja segundo sua inteligência e que conspire a favor dos desígnios que ela tem de nos agradar, para nos enganar. Por uma vantagem muito mais excelente que a do famoso Rei cujo toque criava ouro [trata-se do Rei Midas, personagem da mitologia grega agraciado por Baco com o dom de transformar em ouro tudo o que tocava; ndt], nós possuímos tudo, simplesmente não querendo nada; nós possuímos tudo não apenas não tendo o trabalho de tocar as coisas, como também sequer tendo o trabalho de lançar um olhar; imagine-se o quão mais fácil é ter sem desejar? Assim, por um maravilhoso efeito de nossa moderação, seremos ricos de nossa pobreza mesma. Escutemos, a esse respeito, um grande homem [no original latino, Nieremberg escreve: "Egregie Eusebius philosophatur: Πλάσιον χεή νομίζειν τί ήγεάμά ον έχειν τά άρκέοντα. (...)". A citação em grego continua, mas apresenta inúmeras manchas que dificultam a transcrição. De qualquer forma, fica claro que o "filósofo" a que se refere é Eusébio de Cesareia (c. 265 - 339), que é considerado o "pai da história da Igreja", visto ser o primeiro a se dedicar à história do cristianismo primitivo; ndt] que nos ensina que é preciso estimar rico e feliz aquele que limitando suas esperanças e seus desejos, persuade-se de ter o suficiente, mesmo que, com efeito, ele tenha pouco. Que, pelo contrário, aquele que lhe dá livre e plena extensão e que se dedica sem cessar a adquirir novos bens, seria incapaz de se defender de ser pobre, não conseguiria evitar ser infeliz; visto que ele se considera como tal; que mesmo parecendo rico, ele, na verdade, não o é; e que a cobiça é um abismo que, contra a natureza dos outros, se enche muito mais de pequenas coisas do que de grandes. Assim, somos muito mais ricos quanto mais possuimos tudo através da Vontade que nada quer. Temos tudo, certamente, desde que creiamos ter o suficiente. O que eu poderia dizer a mais? Temos muito mais do que poderíamos ter; todas as coisas do mundo são supérfluas para nós; e se nós não as temos realmente, imaginemos possuir infinitamente mais, já que temos o meio para isso.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 210-212.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Primeiro meio - Capítulo III

CAPÍTULO TERCEIRO
Portanto, temos tanto interesse em praticar a Paciência e a Moderação que é certo que sem elas nossas pretensões de fazer progresso na virtude são inúteis, e todos os desígnios que concebemos para o estabelecimento de nossa felicidade são como crianças desafortunadas que nunca nascem. Esta infelicidade procede do fato de ignorarmos como é necessário querer e não querer as coisas; e como nos tornamos igualmente ridículos através de nossos desgostos e nossos desejos. Desejamos fora da época certa, quando somos reduzidos a uma necessária pobreza que, na verdade, deve ser desejada; a propósito, desejamos de forma errada, quando queremos que a Fortuna se obstine a nos apresentar suas recusas, ou quando aquilo que desejamos dela não se encontra em seu poder. Procuramos no inverno aquilo que só pode ser encontrado na primavera, e que a Natureza só nos poderia dar por uma desordem sua pior do que a nossa. Assim, nossos próprios desejos se punem a si mesmos; a impossibilidade de cumpri-lo na qual nos encontramos é o castigo de sua indiscrição. Não sabemos que a Fortuna tem seu inverno assim como o ano o tem; e que suas recusas procedem, às vezes, tanto de sua impotência quanto de seu rigor. Por que queremos as coisas que pertencem a outros? Não vale mais a pena ceder voluntariamente ao tempo, que é obrigado a depender dela, com uma sujeição de escravo? Nossa cobiça nós dá este gosto depravado, esses apetites extravagantes e monstruosos, que chegam às mulheres quando elas estão para se tornarem Mães; e não apenas preferimos, como elas, o gesso e o carvão às boas carnes, como também, por uma doença muito mais estranha e mais monstruosa, sentimos aversão por aquelas que satisfazem mais agradavelmente o nosso gosto.  Eu vos pergunto, o que é isso de se abster das coisas prazerosas e suportar as desagradáveis? É saber a Arte de se acomodar a todos os movimentos da Fortuna; é compreender a maneira de querer e de não querer; em uma palavra, é nada desejar. Arranquemos portanto nossa cobiça, visto que se a mantivermos, a bem dizer, estaremos confirmando e mantendo a Fortuna no poder que ela usurpou de nós; estenderemos para cada vez mais longe os limites de seu Império, nos descobriremos e nos exporemos ainda mais ao seu ódio. Não confiemos no fato de ela ser cega; não por isso ela é menos segura e deixa de nos açoitar e de nos alcançar em todos os lugares mesmo quando ela não tinha nenhum interesse em nos alcançar. Será que devemos nos surpreender com um homem que, não vendo nada, nunca erra o golpe? Que, virando-se para qualquer lado, sempre chega ao seu objetivo? E que tem necessidade de visar sempre, visto que nossa cobiça nos dirige sempre para todas as coisas? É impossível atirar em falso, dando um tiro no meio de um multidão. Somos o alvo eterno  onde recaem todas as flechas da Fortuna; ela as atira tanto mais certeiramente quanto mais estivermos em meio à multidão de nossos desejos.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 208-210.

Primeiro meio - Capítulo II

CAPÍTULO SEGUNDO
Como é muito fácil bem viver, também é muito fácil, sem dúvida, aprender o meio para isso. A Arte que nos ensina isso se dedica apenas à prática dessas duas virtudes, a Paciência e a Moderação. Ela consiste única e exclusivamente nisso. Elas [essas duas virtudes; ndt] produzem a felicidade da mesma maneira que compõem a sabedoria. Não pensemos que estejam nisso os mistérios eleusinos [os Mistérios de Elêusis – ou Mistérios Eleusinos – eram ritos de iniciação ao culto das deusas da agricultura Deméter e Perséfone, que eram celebrados em Elêusis, cidade grega próxima de Atenas. Esses ritos eram guardados em segredo e só podiam ser transmitidos aos novos iniciados; ndt], onde os profanos não eram admitidos; pois nesse caso, ele está aberto indiferentemente a todos; cada um de nós pode ter em sua casa essas Divindades tutelares de sua alegria. Certamente, quem sabe se abster de coisas prazerosas e sabe suportar as desagradáveis, possui uma perfeita tranquilidade, pode ter certeza de ser soberanamente  feliz. São as duas coluns que sustentam o trono da Virtude; é o fundamento onde todo nossa felicidade repousa. Ser paciente e moderado; recusar os bens da Fortuna e, para dizer de forma mais justa, seus brinquedos; sofrer constantemente suas perseguições; tudo isso é estar no cúmulo da felicidade e da sabedoria. Diógenes [refere-se, no original latino, a Diógenes de Sínope (c. 404 a.C. – c. 323 a.C.), filósofo cínico que viveu na Grécia; ndt] tendo feito uma coroa de pinho para si mesmo, da mesma forma como fazem aqueles que ganham o prêmio de combates sagrados, ao ver como o Magistrado quis lhe defender as marcas de uma honra que acreditava ser maior do que realmente era, visto que ninguém nunca o havia visto no liceu com os Atletas, lhe respondeu dizendo que ele trazia essa coroa muito justamente quando conseguira vencer dois poderosos adversários, a Dor e a Volúpia. Não teria sido porque ele sabia a Arte de sofrer e se abster?  Só depende de nós ter a mesma vantagem que este Filósofo; podemos chegar a uma vitória tão grande quanto esta; tendo, como temos, para isso, dois dos melhores e mais fortes ajudantes que nos podem ser úteis no combate que temos que empreender contra a Fortuna, a Moderação e a Paciência. Através desta conseguimos parar, de início, os avanços e a celeridade desta inimiga; e através daquela evitamos suas intrigas; tornamos inúteis as práticas que ela, por muito tempo, empreendeu contra nós. Os primeiros movimentos de sua coléra são ingênuos e sem artifício porque são sem premeditação; e como, então, ela emprega tudo o que lhe vem nas mãos, como ela emprega como armas tudo aquilo que ela encontra pela frente, ela acaba por fazer uso de coisas frágeis e leves que não nos feririam ou nos feririam apenas levemente. Mas, como os efeitos de seu ódio são lentos e tardios, são eles a quem devemos temer, visto que, muito frequentemente, eles ajustam a malícia à força; eles partem de conselho e de deliberação. O meio mais ordinário que ela emprega para nos suscitar o mal, a máquina mais forte de que ela se serve para guerrear contra nós, é nos dando coisas que não queremos e nos recusando aquelas que desejamos. Abstenhamo-nos destas e suportemos constantemente as outras. Dessa forma, nós a desarmaremos inteiramente, venceremos todos os seus empreendimentos e todos os seus esforços.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 205-207.

Primeiro meio - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO SEGUNDO
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MEIOS infalíveis para adquirir a felicidade.
PRIMEIRO MEIO
PELA prática da Paciência e da moderação

CAPÍTULO PRIMEIRO
Mas, chegou o momento de retornar ao nosso tema principal; é preciso que nos recoloquemos inteiramente na obra. Aqueles que batem a marreta na bigorna sabem que nem todos os golpes são justos e firmes; há muitos que caem fora, muitos que batem em falso; e para dar alguns bons golpes muitos são golpeados inutilmente. Voltemos, então, aos meios para estabelecer solidamente o repouso de nossa Vontade; dediquemo-nos a torná-la firme e constante e, consequentemente, feliz. Importa, para esse fim, retornar sobre as coisas que foram simplesmente esboçadas, nos apoiar sobre aquelas coisas sobre as quais tocamos ligeiramente, terminar nosso rascunho e nosso esboço. Verdadeiramente é nossa intenção corrigir os defeitos do homem; nosso objetivo principal é instrui-lo; mas gostaríamos mesmo é de refazê-lo inteiramente; teríamos mais satisfação no formá-lo outra vez. A Arte que mostra como se vive bem não é nem complicada nem longa; o difícil é menos aprendê-la do que se aplicar a ela, e a afeição é mais necessária do que a memória. Não há nada que seja menos difícil de adquirir do que a ciência de fazer o bem, desde que se estude aquela que ensina a esquecer o mal; aquela é, sem dúvida, a mais difícil, bem como a mais necessária de todas. Passaremos, em seguida, a dois preceitos cujo conhecimento e prática nos colocarão seguramente no caminho que leva para onde desejamos ir; arranjaremos dois meios infalíveis para estabelecer com firmeza nosso repouso, a Moderação e a Paciência. Na medida em que as deixarmos presidirem  nossa conduta e as admitamos no governo de nosso espírito, não deixaremos mais de ser felizes; seremos instruídos pela primeira a nos conter na prosperidade, e aprenderemos da outra a sofrer constantemente a miséria. Assim, aquela agindo como um freio e esta como uma espora, farão com que pratiquemos a habilidade com a qual chegaremos à meta montados em um cavalo desobediente e suscetível. Obrigaremos a nós mesmos a atravessar o mal caminho, a ultrapassar as coisas que nos parecem difíceis, a desprezar, a pisar com os pés aquilo que nos causa medo, aquilo que nos retém e nos impede de avançar no caminho da Virtude. Nossa paciência no mal produz nossa moderação no bem. É difícil dizer qual das duas prevalece sobre a outra, mas é bem certo que é preciso fazer igualmente essas duas coisas: sofrer muito e desejar pouco. Esta última está inteiramente em nosso poder. Qualquer que seja a grandeza daquilo que a Fortuna nos causa, sem dúvida nenhuma não conseguirá se igualar ao Império que a Paciência nos dá sobre ela [a Fortuna; ndt]. E julguemos se não é justamente que esta excelente e rara virtude está em primeiro lugar entre todas as demais, visto que não há nada de tão difícil que ela não seja capaz de ultrapassar e que, sozinha, e sem armas, ela alcance, ela triunfe, sobre o furor e a potência dos homens armados.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 203-205.