sábado, 30 de outubro de 2010

Quinto meio - Capítulo VIII

CAPÍTULO VIII
Portanto, é preciso voltar a esse ponto: que o perigo é muito grande para nós quando somos indulgentes com nossas paixões; que não poderíamos encontrar segurança alguma quando nos servimos de umas para nos livrarmos de outras; que somente a Virtude estabelece a paz de espírito e não somente lhe confere a vantagem de gozar sempre de uma perfeita tranquilidade como também a vantagem de ser sempre o mesmo, firme e invencível em todos os acidentes da vida. Cícero [no original latino, Nieremberg não cita Cícero; ndt] nos ensinou que, em seu tempo, se podia ver que alguns Celtiberos [povo que resultou da fusão entre as culturas celta e ibérica; ndt] e alguns povos Setentrionais suportavam com uma maravilhosa coragem os incômodos da guerra; mas também que eles sofriam com muita impaciência os males e testemunhavam uma grande fragilidade na dor. Pelo contrário, os Orientais, particularmente os Gregos, faziam parecer uma perfeita constância nas aflições; mas, quanto ao resto, sua fragilidade era tal que eles sucumbiam ao menor sofrimento e suportavam muito mal a vista do inimigo. Isso não seria o suficiente para justificar que o espírito só consegue ter firmeza quando ela vem da Virtude? Que, sem ela, ele não conhecerá repouso sólido e não terá nenhum fundamento seguro? É através dela que ele tem o dom de sempre estar de acordo consigo mesmo; ela produz nele uma tão doce harmonia que nem mesmo a mais excelente música poderia reproduzir. E como um concerto se compõe de muitas vozes que têm uma justa proporção entre si, que se misturam e se confundem agradavelmente umas com as outras, também se forma em nosso espírito uma perfeita correspondência de todas as Virtudes juntas, uma divina melodia que o enche de alegria e lhe dá um prelúdio daquela que lhe está preparada no Céu.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 333-334.

Quinto meio - Capítulo VII

CAPÍTULO VII
Este conselho se justifica por um memorável exemplo que a história do Japão nos apresenta nesse encontro: duas das mais Ilustres casas [no sentido de “família”; ndt] do Reino, tendo nutrido por muito tempo um ódio mortal uma pela outra, tendo partilhado todos os Grandes, tendo feito todo o povo se interessar por sua querela e tendo, em seguido, produzido todo tipo de estranheza que possa haver entre inimigos igualmente obstinados e poderosos, no final, houve uma que foi abatida pelo fardo da guerra e a desolação foi tamanha que o furor das armas só perdoou a uma criança. Quando ele chegou ao ponto de poder se vingar tal como a Natureza o inspirava, ele se proveu de armas e da amigos, ele arruinou de cima a baixo a outra família; e instruído pela graça que havia recebido a não ter piedade de ninguém, ele agiu até ao último dos rigores, não respeitando nem sexo nem idade. Ele sabia, pela própria experiência, que a vida de um só seria suficiente para vingar a morte de muitos. Nosso espírito é dominado por duas grandes potências que sempre estão em guerra – pela Virtude e pelo Vício. Se, segundo o dever e a obrigação que temos, tomarmos a parte da primeira, sofreremos constantemente com ela no sentido de exterminar seus inimigos; se nos acontecer de deixar um único desses inimigos, não tenhamos dúvidas de que deixaremos com ela a causa de nossa ruína e de que, um dia, vindo a se fortalecer com nossa malignidade natural, não apenas ele não se contentará em destruir muitas virtudes, como também as destruirá todas em geral. Pudemos aprender da história Santa aquilo que aconteceu a Atalia [Atalia é uma personagem da narrativa bíblica do Antigo Testamento. Filha de Acabe - que foi Rei de Israel - e de Jezabel. Segundo os relatos (basicamente dispersos no segundo livro dos Reis e no segundo livro das Crônicas), Atalia se casou com Jorão – do Reino de Judá – e se tornou regente por seis anos, sendo sucedida por seu filho, Ocozias. Não há muita certeza, mas, segundo algumas cronologias, a regência de Atalia se deu entre 842 e 837 a.C.; ndt]: esta ambiciosa Rainha acreditava ter extinguido todo o sangue Real de Israel e, com isso, acreditava que poderia usurpar o cetro para levá-lo aos Reis de Judá. Mas como o pequeno Joás [Segundo o relato de II Reis (capítulo 11) e II Crônicas (capítulo 22), Atalia mandou assassinar todos os membros da Casa de Davi e assumiu o trono de Judá. Mas, Josebá, filha de Jorão, conseguiu esconder Joás, filho de seu irmão Ocozias, quando ainda tinha um ano de idade. Joás foi, então, criado pelo Sumo Sacerdote Jojada e por sua esposa, no Templo de Jerusalém, enquanto durou a regêcia de Atalia; ndt], que havia sido subtraído ao seu furor, foi secretamente alimentado no templo e, algum tempo antes de ser apresentado ao povo – que o reconheceu como legítimo sucessor do trono –, ele se levantou contra ela e lhe arrancou o Reino e a vida ao mesmo tempo. Que vantagem pode haver para nós que permaneça uma paixão que seja em nosso espírito, se ela for capaz de restabelecer nele o domínio de todas as outras? E se nos for necessário apenas uma para que nos tornemos infelizes? O que aproveitamos do fato de termos que combater menos inimigos, se eles são mais fortes do que aqueles que nós já vencemos, e se basta um para que nos sejam roubados todos os frutos de nossa vitória? Do que nos serve dizer que eles são tão poucos, se eles são, dessa forma, mais perigosos; se eles têm a força de uma multidão; e se o pequeno número é recompensado pelo extremo valor?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 331-333.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Quinto meio - Capítulo VI

CAPÍTULO VI
Portanto, o que pensamos estar fazendo ao nos subtrairmos de uma paixão, ajuntando-nos a outra? Dessa forma, subtraímos de nós a satisfação e a alegria, reforçamos um novo inimigo para fazê-lo ainda mais corajosamente revoltado contra a Razão. Assim como um Estado é mais tranquilo quando os Grandes são medianamente poderosos e a autoridade se encontra partilhada igualmente entre eles – muito mais do que quando a autoridade se encontra toda nas mãos de um só homem, que abusa dela e aspira verdadeiramente à Tirania –, o perigo é muito menor para nós quando deixamos um poder medíocre e igual a nossas paixões, mais do que quando deixamos que uma se eleve acima das outras, reinando sozinha em nosso espírito, se atribuindo inteiramente a soberana potência da Razão. Dessa forma – quando elas [as paixões; ndt] dominam igualmente –, ela está, de alguma forma, segura; pois, por mais que elas sempre a enfrentem, elas também se enfrentam mutuamente e, sendo que nunca estão de acordo entre si, elas a mantêm segura de sua insolência por causa de sua divisão; mas, se uma delas, usurpando o poder de todas as demais, e unificando em si todas as suas forças, viesse a lhes declarar guerra, não tenhamos dúvida de que será muito fácil tirá-la [a Razão; ndt] de seu trono e arruiná-la completamente. Por isso, é necessário que não nos contentemos apenas de afastar de nós uma parte da cobiça; é preciso afastá-la inteiramente; de outro modo, ela retornará como um animal selvagem que se irrita quando está ferido e redobra de furor na mesma medida em que diminui o seu sangue. Que tenta matar uma Serpente pisando apenas em seu rabo, corre muito mais risco de ser picado. Para impedir a mordida, é preciso que a mantenhamos inteira sob nossos pés e pisar sobre a sua cabeça. O meio infalível para vencer nossas paixões é opor-lhes o escudo da virtude, que é impenetrável, que desdenha dos seus mais poderosos esforços e, contra quem, para tudo dizer, elas só conseguem mostrar sua fragilidade. Pelo contrário, a Virtude é tão poderosa, ela tem tanta força que é suficiente combater uma [das paixões; ndt] para vencê-las todas. Servirmo-nos de nossa cobiça para apaziguar ela mesma é animá-la ainda mais, é reduzi-la a agir como o Leão que bate em si mesmo com a própria cauda para se colocar em cólera. Certos povos da Antiquidade apreenderam do Oráculo que, por pouco que eles partilhassem sua terra com alguém, eles a perderiam toda [no original latino, Nieremberg escreve: “Aeneanes sibi ex oraculo persuadebant, fore, ut amitterent patriam terram, si particulam largirentur...”. Trata-se portanto da tribo dos Eneanes que habitou o norte da Tessália, na Grécia; ndt]. Um Oráculo de infalível verdade – a Razão – nos assegura de nossa total perda, por pouco que relaxemos no combate à cobiça, ou que sejamos indulgentes com nossas paixões. Pelo fato de elas, algumas vezes, nos deixarem repousar, pensamos que elas nunca dormem profundamente; mas certamente que elas estão apenas cochilando e acordam com o menor barulho. Fazemos bem em tratá-las com desprezo e afastá-las de nós; pois elas sempre retornam; é como tentar afastar um cachorro com pedaços de carne; é como tentar mostrar nosso desprezo por avaro com o ouro. Para conseguirmos uma inteira segurança, é preciso usar de um extremo rigor, apagar toda a geração, não perdoar uma que seja, temendo-as como se fossem um germe fatal que produzem outros para se vingar de nós e nos façam um mal semelhante ou muito pior do que o que lhes fizermos eliminando-os.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 329-331.

Quinto meio - Capítulo V

CAPÍTULO V
Ora, aquela que mais o agita e que, sem dúvida, mais lhe excita o maior tumulto é esse insaciável apetite de honra, esse ardente desejo de glória, este abismo que nada pode preencher; a ambição que, não podendo sofrer nem freios nem limites, resiste sem cessar à Razão, é absolutamente incapaz de sujeição e retenção. Não é apenas ela que domina nosso espírito com mais Império, mas é aquela que mais se liga a ele com obstinação. A última de que ele consegue se desfazer e que só se separa dele quando ele se separa de nós. Ela imita bem a Virtude, abaixando as outra virtudes; mas é para conseguir, com isso, se elevar o suficiente e poder reinar sozinha. Ela tem por objetivo exclusivamente o seu próprio proveito e só se propõe aquilo que é de seu interesse. Tudo o que ela faz além disso é suspender, por um tempo, sua ação; e disso nos chegam esses dois males: reprimindo-os, ela os faz entrar mais profundamente em nosso espírito, ela os encerra dentro ao invés de tirá-los de dentro; e reduzindo-os ao menor dos espaços, ela cresce em toda a sua extensão. Ela os mantém presos; ela impede que eles se evidenciem. Assim, o luxurioso que se abstém da luxúria mais por temor da condenação do que por amor e reverência pela Virtude, não deixa de ser impuro; e por mais que ele não suje o seu corpo, ele suja seu espírito e se polui pelo pensamento. Com isso, esta paixão arrogante e insolente não trata a si mesmo melhor do que trata as outras; porque, frequentemente, ela se abaixa, ela se dobra em si mesma, mas para poder se elevar ainda mais alto; e, como um arco curvado, aumenta ainda mais a sua força. Se acontece, às vezes, que ela se humilhe e se faça pequena; se, por uma severidade fingida, ela se diminui e, por assim dizer, ela corta sua própria cabeça; dessa diminuição, ela tira matéria para o próprio crescimento, ela deixa nascerem outras cabeças da mesma forma que a Hidra; ela as multiplica infinitamente. Assim, o que pensamos que possa ser evitar um vício através de outro? Isso é arruinar o antigo para tornar o novo mais poderoso. Não é jogar fora o veneno, mas mudá-lo de vaso; porém, assim, ele não muda de qualidade, ele não deixa de ser perigoso porque está numa taça de ouro ao invés de num copo de vidro. Importa pouco se nossa cobiça está ligada aos bens, às honras ou ao resto das coisas que têm algum brilho mas que são frágeis como o vidro. Seja qual for o objeto a que ela aspira, ela sempre nos causará inquietude, ela sempre nos causará sofrimento. Há muita diferença entre abandonar nossas paixões e apenas mudar de paixão. Que sejamos avaros ou ambiciosos, sempre formaremos desejos, sempre desejaremos, sempre teremos cobiça. Ora, isso é suficiente para que a Fortuna tenha controle sobre nós; não é preciso mais do que isso para que sejamos infelizes.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 327-329.

Quinto meio - Capítulo IV

CAPÍTULO IV
Por isso, é muito importante que se conheça aquilo que distingue as virtudes dos vícios, estudar cuidadosamente suas diferenças, a fim de se evitar o precipício onde esse descontentamento nos pode fazer cair. É preciso que cuidemos de não nos deixar surpreender por tão perigosos inimigos, mas combatê-los corajosamente e trabalhar com toda a nossa capacidade para arruiná-los completamente. Que, nisso, nós nos lembremos dos habitantes de Amicleia [antiga cidade vizinha de Esparta, nas margens do Erotas; ndt] que, para serem bem exatos na observância dos dogmas de Pitágoras [trata-se de Pitágoras de Samos (c. 570 a.C. – c. 497 a.C.), filósofo e matemático grego; ndt] – segundo os quais a morte dos animais lhes era proibida –, não matavam nem mesmo as Serpentes que se multiplicavam em seus terreiros e, por isso, foram de tal forma perseguidos por elas que sua cidade foi desolada. Se, expulsando de nosso espírito uma má paixão, admitimos e sofremos outra; se, arrancando o jugo de uma, submetemo-nos à tirania de outra; eu vos pergunto: o que estamos fazendo senão nos colocarmos sob o risco de ver que o último acréscimo de ousadia e de força, por causa nossa indulgência, seja  capaz de permitir que [essa má paixão; ndt] sozinha cause nossa perda e faça aquilo que todas as outras juntas fariam? Se, às vezes, acreditamos que elas relaxam, que elas amolecem; se nós as governamos por um pouco de tempo como se fossem animais domésticos; não nos sintamos seguros nisso, porém; pois elas são selvagens e ferozes; elas se nos escaparão quando menos esperarmos e se voltarão contra nós como verdadeiramente são na natureza. Um Saltimbanco, tendo treinado alguns Macacos, os apresentou, um dia, em público; como eles estavam dançando, alguém lhes atirou algumas nozes; então, eles pararam sua dança e correram atrás das nozes, criando uma grande desordem. Às vezes, nossas paixões se tornam flexíveis e obedientes, até ao ponto mesmo de escutar a Razão e seguir o movimento que ela lhes ordena; mas, como elas não são capazes de se fantasiar e se contrariar por muito tempo, elas acabam por se corromper facilmente e correm atrás do primeiro objeto que lhes toca, perturbando a paz e a tranquilidade do espírito.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 326-327.

Quinto meio - Capítulo III

CAPÍTULO III
Mas, nisso, ficamos, às vezes, descontentes, tomando aquilo que deveríamos combater como aquilo que nos deve assistir, tomando nosso inimigo como nosso ajudante, tomando o Vício como Virtude, porque ele pega emprestado dela as aparências e se cobre das mesmas armas. Para evitar um tão perigoso desprezo, devemos saber que, para cada virtude, se opõe um vício que se lhe assemelha, que a contradiz em todas as coisas, que é seu imitador, por assim dizer, que se apresenta a nós sob uma falsa aparência de amigo, com demonstrações de querer nos socorrer; mas, com efeito, ele tem o desígnio formado de nos levar à perdição, na medida em que sejamos de tal forma imprudente aponto de nos confiarmos a ele. Assim, a temeridade é vista, muito frequentemente, como valor; a fineza como prudência; a avareza como economia; a ambição como grandeza de coragem. Essas falsas e travestidas virtudes nos abordam com outros rostos que não os seus próprios, e algumas vezes se apresentam com rostos mais belos ou, pelo menos, mais agradáveis do que, naturalmente, são. Cada uma delas [das falsas virtudes; ndt] se reveste do nome da verdadeira Virtude por quem ela quer ser tomada, e nos seduz sob uma forma diferente da sua. Mas, o que são essas marcas e fantasmas que não têm nada de real ou de sólido, e só se sustentam sobre a impostura e sobre a favorável impressão que desejam causar em nós? O que são essas cabeças artificiais que são agradáveis apenas por fora, mas são ocas e vazias por dentro, visto não terem nem sentidos nem razão e, consequentemente, não terem aquela parte verdadeira que conferem o ser e a perfeição àquilo que elas imitam? Aqui, podemos nos lembrar da história daquele Persa que, parecendo-se tanto com o legítimo sucessor do Império – que fora morto por causa da inveja de Cambises –, pretendendo se colocar em seu lugar, foi reconhecido como enganador, pois não tinha orelhas [não encontramos referências acerca desse personagem no original latino e, na busca por detalhes sobre essa anedota histórica, também não encontramos fatos sequer semelhantes aos descritos pelo tradutor. Há, na história do Império Persa, dois imperadores com esse nome: Cambises I (?-559 a.C.), filho de Ciro I e Cambises II (?-522 a.C.), filho de Ciro II e neto de Cambises I; ndt]. A Virtude não é, em nada, imperfeita, como é quem pretende se passar por ela. Ela é inteira e sem defeitos; ela tem orelhas, ela escuta a razão; ela tem docilidade e obediência. Ela permanece firma e imóvel contra tudo o que a ataca. Ela encontra seu porto mesmo em meio à tempestade. Enfim, para marcar aqui aquilo que mais confunde o Vício, aquilo que lhe retira a máscara e descobre plenamente a sua impostura, somente ela é capaz de nos fazer obter o glorioso título de Reis de nós mesmos, somente ela é capaz de nos fazer adquirir soberanamente a felicidade.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 324-325.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Quinto meio - Capítulo II

CAPÍTULO II
Não há motivo para espanto. Assim como não há nenhuma possibilidade de união entre eles, também não pode haver fidelidade: todos eles seguem seus próprios caminhos, têm vias separadas ou, para dizer mais acertadamente, eles correm em direção a diversos precipícios, eles não tem nem fim nem rota certa. Também é preciso dizer que a sua natureza não é andar direito. Bem como eles caminham em desordem e nas trevas, eles se agridem incessantemente e, disso, nasce sua guerra eterna. Eles não se propõem um fim igual, como fazem as Virtudes que estão sempre estreitamente ligadas umas às outras, formando um colar nobre, como se fosse de belas e ricas pérolas, e que, segundo o pensamento de um Filósofo, são tão unidas e estão tão de acordo entre si que são uma mesma e única virtude [no original latino, aparece escrito: “Ita malum malo contradicit propter inordinatum incursum, & unius finis defectum, qui tamen est foedus, fibulaque virtutum in eadem consertarum linea, ut pretiosissimi uniones, in qua unitae, aut unae sunt, aut una iuxta Apollophanem”. Trata-se de do filósofo estóico Apolófanes; no entanto, não encontramos nenhuma referência precisa acerca desse pensador; ndt]. Ao contrário, os vícios, não estando nunca bem entre si e, às vezes até, não estando nunca bem consigo mesmos, teimam e se contrariam sem cessar; e se há algo no que eles estão de acordo é apenas no ódio que cada um deles traz contra a Virtude. É por isso que aquele que não a emprega para a ruína do vício nada pode merecer dela. E se não for uma ofensa muito grande o extremo desprezo de não se servir de sua ajuda numa ocasião tão importante, pelo menos será ignorar a grandeza de suas forças e não conhecer a extensão de sua potência. Não saber que o braço de Hércules, tão fatal contra os Monstros, só pode ser uma frágil e muito imperfeita imagem se comparada à sua [da Virtude; ndt] força. Diz-se desse Herói que ele tinha muito mais de dois adversários ao mesmo tempo; mas quantos adversários juntos ela [a Virtude; ndt] é capaz de vencer? E quem poderia se comparar, quanto ao prodigioso valor, a ela?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 323-324.

Quinto meio - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO SEGUNDO
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MEIOS infalíveis para adquirir a felicidade.
QUINTO MEIO
QUE não devemos nos curar de uma paixão com outra

CAPÍTULO PRIMEIRO
Portanto, considerando a extrema desordem para a qual nos levam as paixões, visto a violenta perturbação que elas excitam em nosso espírito, é preciso, muito seriamente, tomarmos a resolução de bani-las de espírito, e que exerçamos esse rigor de forma geral sobre todas as paixões; não deve haver, nisso, nem reservas nem exceções; e nos é necessário, sobretudo, tomar bastante cuidado de não cairmos no inconveniente de nos servir de umas para nos livrarmos de outras. O perigo de fazer uso delas é suficientemente verificado pelo exemplo do jovem homem de que fala um antigo Poeta: ele se curou verdadeiramente da cobiça, mas abandonando-se à cólera [no original latino aparece: “Adolescens Terentianus flammas Cupidinis iracundia domuit”. Trata-se do poeta e dramaturgo romano, que faleceu muito jovem, Públio Terêncio Afer (c. 184 a.C. – 160 a.C.); ndt]. Em outro lugar se afirma que ele apagou sua avareza através de sua ambição. Assim como a potência das virtudes é unida, o império dos vícios é dividido; sua malignidade natural é tão grande e cada um deles é tão pernicioso e estrangeiro, que eles não conseguem entrar em acordo e guerreiam entre si incessantemente. Esta é uma verdade cujas provas nós não devemos procurar fora de nós. Nossos vícios não se compadecem com os vícios dos outros. Aquilo que suportamos e amamos em nossa pessoa torna-se odioso, para nós, é insuportável nos outros; e os menores não são melhores do que os maiores. Os orgulhosos se ofendem e se odeiam ordinariamente e não é porque tenham ódio pelo orgulho, mas porque cada um deles é ciumento de seu próprio orgulho e pensa que sua luz é ofuscada por aquela dos outros. Assim, não é de forma alguma por zelo que tenhamos pela Virtude que somos inimigos do vício. É, muito frequentemente, pelo amor que temos pelo vício mesmo; mas o ódio pelo mal não é legítimo se não proceder do amor pelo bem. Não empregar a Virtude para a ruína do vício é não merecê-la, é só correr o risco de sucumbir ao vício mesmo; servir-se de um vício para vencer outro é se entregar como presa àquele que permanece vitorioso. Eu vos peço: consideremos um pouco o eminente perigo ao qual nos expomos. Pensamos estar nos livrando de uma multidão de Tiranos através do esforço de um Tirano mais poderoso que nos chamamos para dentro de nós. Ele faz o que pensávamos que faria – verdadeiramente, ele nos livra [dos Tiranos. ndt], domando-os e colocando-os entre correntes –, mas ele nos prende junto e se torna o único mestre de nosso espírito. Ele se apodera de nós com a potência que todos os demais, juntos, tinham.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 321-322.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Quarto meio - Capítulo III

CAPÍTULO III
Quanto é a estima que temos pela vantagem de sermos absolutamente mestre de nossas vontades e de ter em nosso poder a realização de nossos desejos? É possível imaginar uma glória semelhante àquela de nos ver em uma condição mais nobre e mais eminente do que a condição dos Reis – a condição de possuir um Império mais extenso do que o próprio Universo e, para dizer em uma só palavra, a condição de possuir a nós mesmos? Seguramente que esta glória é tal que nada é capaz de se igualar a ela. Não seria, pelo contrário, uma deplorável loucura esquecer e trair de tal forma esta nossa dignidade, sujeitando-nos às nossas paixões, querendo depender da mais dura e mais cruel de todas as Tiranias? Imaginemos que se proponha aos animais a liberdade do homem com todas as suas prerrogativas; que se quisesse lhes dar a Razão de tal forma que uns moderassem seu furor e outros mantivessem sob freios sua cobiça; será que eles teriam alguma dificuldade em aceitar? Nós, por outro lado, recebemos gratuitamente a Razão e a liberdade; e, no entanto, fazemos tão pouco caso delas, a ponto de não sentirmos vergonha de vendê-las pelo mesmo preço que os animais não recusariam comprá-las; e, por uma infeliz e brutal emulação, tornando-nos mais irracionais e, às vezes, eu diria, mais animais que os animais mesmos, nós nos privamos voluntariamente de duas tão excelentes vantagens; nós nos tornamos indignos da grandeza de nossa condição, e de todos os privilégios que a acompanham, sujeitando-nos às nossas paixões. Perdemos a glória de um lugar na família do Céu; e, ao invés de sermos considerados com o augusto título de filhos de Deus, tornamo-nos apenas miseráveis escravos da Fortuna.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 319-320.

Quarto meio - Capítulo II

CAPÍTULO II
Sem dúvida, aquilo que serve a um fim segue, necessariamente, sua condição; e seria depravado se fosse perverso e desordenado. Esta verdade se justifica pela conformidade e pela relação entre o entendimento e a ciência, pelo abuso que causam nessa as desordens daquela. Certamente também que foi a bom direito que o Apóstolo São Tiago, considerando os maus usos nos quais ela [a ciência; ndt] se aplica, a chama material e terrestre, quando ela se abaixa e se profana até ao ponto de servir às Volúpias sensuais; ele não finge ao dizer que ela é diabólica que abraça o luxo e se abandona à vaidade. Como a agulha da bússola gira em direção ao Norte, no lado em que ele a tocou; o entendimento também se dirige para a Vontade, atingido pelo seu contágio. Todos os objetos parecem, aos olhos do Ictérico [acometido de icterícia; ndt], ter a cor de seus olhos [a icterícia é uma doença cuja característica mais marcante é a cor amarela da pele e da esclerótica; ndt]. Alguém, muito sabiamente, disse que, quando não há ninguém a quem se possa pedir um conselho, e quando se está destinado a dá-lo a si mesmo, é preciso, sobretudo, escolher purificado das paixões; pois, sem dúvida, não há nada mais contrário à luz do entendimento do que a cobiça, não há nada que a obscureça mais e que, por essa razão, a torna mais inútil. E, verdadeiramente, que segurança poderemos ter nisso, sabendo – como sabemos – que ela é cega? E que espetáculo não ofereceríamos ao, não querendo nos desviar do caminho e não nos perdermos, seguirmos um guia que não conhece os caminhos, que, ordinariamente, faz com que se percam todos aqueles que o seguem? A experiência ensina, todos os dias, àqueles que governam grandes máquinas, que um ligeiro inconveniente, uma sujeirinha de nada, uma poeirinha, pode fazê-las parar e cair em desordem; por menor que seja a ferrugem nos dentes da engrenagem-mãe de um relógio, ela é capaz de fazê-lo atrasar e parar todo o movimento. Não tenhamos dúvida de que, se a vontade não estiver pura e imaculada, e não tiver o mínimo de impedimentos, ela não será capaz de permitir livre ação à nossa alegria; é preciso que ela possa agir sem dificuldades naquilo que mais lhe agrada, na medida em que for legítimo e que ela se conforme à razão. 

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 318-319.

Quarto meio - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO SEGUNDO
_______________________

MEIOS infalíveis para adquirir a felicidade.
QUARTO MEIO
QUE é preciso purificar a Vontade de tudo aquilo que é capaz de perturbá-la

CAPÍTULO PRIMEIRO
Fomos plenamente instruídos acerca das notáveis vantagens que a Vontade bem ordenada produz. Ela é suficientemente reconhecida por ser a causa infalível do maior bem que podemos pretender nesta vida; sem dúvida, ela produz soberanamente a paz e a alegria do espírito. O que nos resta é aprender os meios de nos servirmos de um tão nobre e raro instrumento; e como conhecemos sua excelência, é preciso aprender a usá-lo. Não basta demonstrar o que deve ser colocado em ação, mas é preciso aprender o fim e a maneira, se bem ou se melhor. Após a capacidade do operário, é preciso considerar a bondade do instrumento. Após termos nos tornado sábios na arte de adquirir a felicidade, é preciso aprender de que condição deve ser aquilo que nos permite tê-la. Um mal instrumento é capaz de fazer falhar o mais hábil artesão do mundo; é preciso, antes de tudo, que ele seja adequado a seu uso, que não haja nele nada que possa causar dano à mão, nada que impeça ou retarde a operação. É necessário, sem dúvida também, procurar a precisão, sobretudo, naqueles instrumentos que estão sujeitos mais facilmente à ferrugem. Nossa Vontade é assim; ela não permanece pura por muito tempo; ela se suja muito rapidamente com as sujeiras das paixões. Sua parceira natural é a liberdade; ela tem o direito de se colocar do lado de quem ela quiser e de agir da forma como ela quiser; mas seu dever é agir razoavelmente e agir para o bem. Ora, aquilo que a desvia e lhe faz tomar um partido errado é a perturbação que lhe causam as paixões, que a corrompem tão fortemente e a pervertem de tal forma que ela se torna inábil para todo tipo de ação legítima. Da mesma forma como um olho bem esclarecido e dos mais penetrantes que possa haver não conseguiria ver o fundo de uma água lamacente, também o entendimento mais claro não é capaz de discernir o que quer que seja em meio à perturbação do espírito. Um espelho que remexemos sem parar não é capaz de representar nada com constância; da mesma maneira, uma alma agitada não permitiria ao entendimento ver algo firme e certo. Que chama seria capaz de resistir à violência dos ventos que sopram contra ela como se fossem uma conspiração para apagá-la? As paixões não são um esforço menor contra a luz do espírito. Um Piloto, a quem a tempestade arranca de suas mãos, de um só golpe, o leme, não seria capaz de conduzir seu navio nem mantê-lo na rota. Alguma vez já teremos visto como aqueles que estão sujeitos à vertigem sentem a cabeça rodando de tal forma que nem parecem estar na terra, como eles têm tonturas que fazem com que os objetos mudem de face, e vertigens que lhes fazem ver outros objetos que não existem? Já vimos a imagem do estado deplorável a que as paixões reduzem o espírito. Depois de o ter, por muito tempo, agitado e colocado num tão estado de desordem que não é mais capaz de conhecer as coisas, nem reconhecer a si mesmo, enfim, elas o reviram e o fazem decair  da vantajosa posição que sua condição lhe permitia ocupar. Não seria um triste e miserável Espetáculo ver um Príncipe sendo tratado indignamente por sujeitos revoltados? Ou ser despojado de todas as marcas de sua grandeza? Ou derrubado de seu trono e colocado entre correntes como se fosse um escravo? Esse é o mal que atinge o nosso espírito quando os apetites se rebelam. Eles corrompem, eles gastam o entendimento; eles o tornam escravo do prazer dos sentidos. De um conselheiro sincero e fiel, eles fazem um complacente, um bajulador infame, que só age segundo suas ordens, que só diz, covardemente, aquilo que lhes pode agradar, e não tem mais vergonha de fazer todas as coisas segundo seu bel prazer.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 315-317.

Terceiro meio - Capítulo XII

CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO
Que pesado fardo é o Sábio que contempla e não age! Certamente, o homem tem muitos motivos para se gloriar dos privilégios de sua condição; tem muitos motivos para se vangloriar do Império absoluto que exerce sobre todas as coisas da Natureza; se ele não sofre, ele não passa de uma obra inútil. Se aquele para quem tudo foi feito permanece ocioso e sem nada para fazer, ele perde seu lugar, ele se coloca abaixo de tudo aquilo que há de mais vil. Que ele não se orgulhe demais da falsa persuasão de que ele serve de ornamento para o Universo. Além de ele não ser feito de uma matéria muito preciosa para isso, nem ter sido feito por uma fábrica muito excelente, o Céu e os Astros têm essa vantagem sobre ele. Eles cumprem, sem dúvida, suficientemente bem suas funções ao se fazerem ver; e, para eles, não é ócio serem grandes e os mais nobres espetáculos do mundo. Quando o Sol cessar de realizar seu percurso ordinário e se tornar imóvel; quando esse divino Ecônomo da Natureza perder sua força e atividade, com as quais ele faz tão diversas e maravilhosas operações; não pensemos, no entanto, que ele se aposentou; ainda lhe restará emprego suficiente na função de clarear o mundo e adornar o Céu, e ele nunca será inútil na medida em que for sempre belo. O mesmo não se pode dizer do homem: se ele não age, nada haverá que seja capaz de reparar esse defeito; e por mais impressionante que seja sua condição, não há desculpa alguma para a sua covardia. Não seria suficiente repetir, mas é preciso dizer que aquele a quem todas as coisas servem, não serve de nada se não servir a si mesmo, se não servir à Virtude. Não há nada de mais nobre e de mais agradável na Natureza do que o Sábio que age; ao contrário, não há nada de mais odioso do que aquele que permanece na ociosidade, que esmorece e apodrece na preguiça. Sem dúvida, o movimento da Virtude é o repouso do espírito: quem quer que seja que não age e não age virtuosamente sempre entenderá a Virtude como um problema. Eu diria ainda mais que há muito menos inconveniente em não viver e não ser do que ser ocioso e não agir na virtude. Eu vos pergunto se, nisso, não se está praticando o vício e se está voltando ao nada de onde se foi retirado. Não agir e não sofrer é cair no nada. Se acontece de encontrarmos em nosso pomar uma árvore infértil, não sofremos nada por ela e mandamos cortá-la. O mesmo em uma família bem ordenada onde cada doméstico tem sua função e sua tarefa. A ociosidade não é admitida ali dentro. Geralmente, todos trabalham, e é uma lei da qual não há nem dispensa nem exceção. As coisas de uma natureza mais excelente e que, dentro dessa família, ocupam um lugar mais elevado são, sem dúvida, aquelas que mais agem. Pode haver um exemplo maior do que o movimento contínuo dos Astros? O mais belo dos Elementos, o fogo, que habita tão próximo deles [dos Astros; ndt], como se morasse nos subúrbios do Céu, não deveria merecer, por sua atividade, a honra de ocupar um lugar tão digno? Pelo contrário, vemos como a terra ociosa e, por assim dizer, preguiçosa está localizada em um lugar mais baixo; e como o seu peso e sua imobilidade, parece, a afastaram de uma tão nobre vizinhança.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 312-314.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Terceiro meio - Capítulo XI

CAPÍTULO UNDÉCIMO
A Esperança de agir bem no futuro e, dessa forma, reparar os erros do passado, nos diverte e nos engana algumas vezes. Acreditamos que, tendo adquirido bastante saber e enchido nosso espírito com uma infinidade de conhecimentos, nós os colocaremos em prática facilmente e receberemos de nós mesmos, como se viesse de uma segunda fonte, os meios para exercer a Virtude. Mas, como é vão o nosso conhecimento! Como ele se parece mais com uma paralisia! E, podemos dizer ainda mais, como somos extravagantes por causa da nossa muita razão! Não somos, certamente, menos extravagantes do que aquele que, esperando comer à mesa de um Rei, e jejuando nessa espera para se preparar a fim de degustar melhor as delícias da boa carne, morreu, enquanto isso, de fome. Negligenciamos a vida presente, aquela que é a única que podemos chamar nossa e que nunca será suficientemente boa se não sofrer desde já na busca de torná-la de fato boa. Como fazemos belas propostas de bem viver! Mas, como agimos mal nesse sentido! Como nossa intenção é generosa! Mas como nossos efeitos são covardes! Todos os dias, nós nos resolvemos a reformar a nossa vida; todos os dias, queremos sair do vício; mas nossa emenda está sempre apenas em nossa ideia; e a inocência que meditamos não sai de nossos pensamentos e desígnios. Concebemos uma vida pura e virtuosa; e a concebemos com um coração impuro e sujo pelas nossas afeições desordenadas. Parecemo-nos com os Cisnes que, por manter os pés continuamente no banho e sempre se lavar, sempre os têm, no entanto, pretos. O resto de seus corpos, que está fora da água, é muito limpo, é extremamente branco. Assim também nós: apenas essa porção de vida pela qual, em nós, fazemos tão belos projetos e tomamos tão sãs resoluções, aquela que está fora do tempo presente e que talvez nunca venha a fazer parte do tempo presente, possui pureza, é limpa e branca, por assim dizer; todo o resto é sujo e preto. Dessa forma, meditamos sobre nossa correção, mas não nos corrigimos de verdade; temos pressa com relação a isso, numa eterna indiferença.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 311-312.

Terceiro meio - Capítulo X

CAPÍTULO DÉCIMO
Ora, nisso, é de extrema importância, para nós, não ignorar que há uma certa avidez de conhecimentos, um desejo insaciável de saber, que consiste em sempre se encher, sem nada produzir, em ajuntar uma infinidade de regras e máximas e nunca colocá-las em prática. Assim como o justo emprego do dinheiro é nos fazer ter as coisas que nos são necessárias, o direito e o legítimo uso da ciência é nos permitir adquirir a Virtude, nos fazer praticar o bem. Mas, como é o costume dos avaros esconder e enterrar seu Ouro, não se servindo dele nem dividindo-o com outros, eles pensam, eles aspiram incessantemente a novas riquezas; assim também, há homens que tendo adquirido excelentes conhecimentos e se tendo enchido de preceitos salutares, os escondem e os enterram em seus espíritos; e não cessando de buscar novas curiosidades, incorrem justamente no erro que levou um Filósofo a censurar os Atenienses de usar seu dinheiro apenas para calcular [No original latino, Nieremberg escreve: "Dicam de iis, quod Anacharsis de Atheniensibus, nummis ad numerandum dumtaxt uti". Trata-se, pois, de Anacársis, um filósofo cita que viveu no século VII a.C., de quem se sabe muito pouco a respeito; ndt]. O que pensamos que seja a riqueza de um Avaro? Ela não é mais do que uma magnífica pobreza. Eu vos pergunto ainda mais, o que é do saber de que nada se pode aproveitar? Ou uma sabedoria louca? Por mais cheios de bens que sejam os avaros, podemos dizer, seguramente, que eles são os mais pobres de todos os homens; e podemos dizer também que não há ignorantes maiores do que aqueles cuja ciência, por profunda e universal que seja, nada produz, não traz fruto algum. Como a natureza se contenta com pouco e não há muitas coisas que sejam necessárias para a vida, a prática da Virtude não tem necessidade de muitas regras; e se se fazem, todos os dias, Livros, se se fazem tantos Volumes sobre isso, não é para que nos a abracemos, mas apenas para excitar nosso querer. Aqueles que sofrem para nos fazer bons imitam aqueles que jogam dados; como nossa conversão e nossa emenda é seu objetivo, como eles querem nos ganhar, eles buscam todos os meios para isso, eles tentam frequentemente a Fortuna para ver se têm algum sucesso; eles jogam os dados várias vezes para ver se conseguem uma boa soma de pontos; eles arriscam muitos discursos para tentar nos persuadir. Assim, certamente, nos é necessário pouco para praticar a virtude, mas nos é necessário muito para que nos resolvamos. Ajuntemos a isso, para a confusão daqueles que tornam inúteis, por covardia, suas luzes e seus conhecimentos, para os sábios ociosos, que eles são ainda mais ridículos do que aqueles que guardam seus tesouros; o dinheiro se consome com o uso; ele pode ser corrompido e pode ser falsificado; enquanto que o saber que se coloca em prática e que se emprega em fazer o bem conserva não apenas o seu valor, como também adquire, todos os dias, mais valor e se torna ainda mais precioso.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 309-310.

Terceiro meio - Capítulo IX

CAPÍTULO NONO
Assim, para satisfazer ao maior e mais nobre desejo que recebemos da Natureza, e para adquirir uma vantagem tão alta – que é a de nos tornarmos imortais – tenhamos todos cuidado e toda habilidade possíveis para nos instruirmos no método de fazer o bem; liguemo-nos fortemente ao estudo da Virtude, como àquilo que deve ser nosso exercícios mais ordinário. Mas, guardemo-nos de nos divertir numa ociosa e vã contemplação; e de perder o tempo na busca por meios de fazer o bem, quando o que temos que fazer é, na verdade, praticar. Guardemo-nos de cair no inconveniente daqueles que, por perderem muito tempo na deliberação, não executam nada e nunca chegam ao objetivo, por ficarem considerando com muito cuidado qual a melhor via para chegarem ao objetivo. A maneira é, sem dúvida, necessária em todas as coisas, se não for nelas que consiste puramente a maneira mesma, como são as boas obras. É preciso aprendê-las através do uso, e nos relembrarmos daquilo que Pitágoras disse: não é no conhecimento que reside o bem, mas na ação. E, certamente, fazer o bem é, nisso, ser muito sábio; é suficiente ter a inteligência disso do que ter a prática disso. O saber e a eloquência do Médico não servem a nada, para o doente, sem a operação da mão e a aplicação do remédio. Uma poção vale muito mais, nesse sentido, do que todas as especulações da Academia e do Liceu. Os conhecimentos sublimes e delicados não fazem o homem de bem, mas somente a prática da Virtude.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 307-308.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Terceiro meio - Capítulo VIII

CAPÍTULO OITAVO
Como não há nada de maior utilidade do que ela [a Virtude; ndt], nada também é tão usado quanto ela. E, de fato, ela tem essa excelente prerrogativa de não decair em nada ao longo do tempo e de crescer muito mais do que perecer. Porque, ainda que a operação das Artes não seja consistente e passe, a operação da virtude permanece e não passa. Desejaremos conhecer um meio raro de não passar também nós? Um meio infalível e fácil de adquirir a imortalidade? Basta que não nos seguremos àquelas coisas pelas quais o comum dos homens tem paixão e julga sólidas e permanentes; os bens, as honras e as outras obras da Fortuna. Por mais constantes que elas pareçam, por mais duráveis e fiéis que acreditemos que sejam, elas passarão tão logo comecemos a sonhar menos com elas; e, por uma cruel infidelidade, elas nos abandonarão tão logo as creiamos nossas. Portanto, para nos preservar dessa infelicidade tomemos o partido contrário. Trabalhemos naquilo que parece não ter nenhuma duração, quer dizer, no fazer o bem. Sem dúvida, é isso o que permanecerá e que, por uma fidelidade rara e maravilhosa, nos acompanhará até à morte e, até mesmo, para além dela; é preciso imprimir em nós, seriamente, a verdade segundo a qual temos todo o tempo o bem que fizemos uma vez e segundo a qual praticar um momento que seja a virtude é adquirir uma vantagem que se estende e se comunica a toda a vida. Não há assistência que se assemelhe àquela que recebemos de nossas boas obras, quando não temos nem suporte nem consolo de ninguém, quando nossos amigos, parentes e toda segurança nos vêm a faltar e nos encontramos abandonados por todos; elas, por outro lado, são nossas amigas e assumem o lugar de parentes, elas nos dão uma segurança muito poderosa a ponto de vencer nossos inimigos mesmos. Através delas, o ódio mais obstinado entrega as armas sobre nossa tumba e nós nos tornamos vitoriosos em todas as perseguições da inveja. Através delas, a posse da imortalidade nos é assegurada e nós colhemos calmamente a mais alta recompensa da Virtude. Eu vos pergunto, de que nos serve enterrar nosso ouro conosco se, com isso, apenas estamos fazendo um Ato de Justiça, devolvendo para a Terra aquilo que tiramos de suas entranhas? Quando deixamos de ser, nossas riquezas nos são inúteis; perdemos a capacidade de usar delas quando perdemos a vida, e nada além de nossas boas obras permanece depois da tumba. Sobre isso, a morte não tem direito algum. Seu rigor é impotente contra a Virtude; não apenas ela é incapaz de apagar seu brilho, como também acaba destacando-o ainda mais. De todos os desejos de que é capaz o homem, não há nenhum que lhe seja tão próprio e natural como o da imortalidade: às vezes, esse desejo é de tal sorte que, para chegar à imortalidade, até mesmo os mais malvados se fazem gente de bem; e aqueles que não foram bons de verdade, pelo menos fingiram ser e acabaram por assumir a fisionomia e aparência de bons. Julguemos, com isso, quão excelentes e necessárias são as boas obras, visto que é apenas através delas que se realiza o mais natural e violento de nossos desejos. Certamente, elas não são sujeitas à fatalidade da tumba. Agir bem é um meio raro e fácil de se tornar imortal; a morte dos bons e dos virtuosos é, para eles, como que uma sorte de continuação da vida.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 305-307.

Terceiro meio - Capítulo VII

CAPÍTULO SÉTIMO
É exatamente assim que entendemos a virtude. Já não fizemos, uma vez, a comparação mostrando a conformidade particular que há entre ela e a Música? Assim como esta última agrada naturalmente e dá prazer tanto àqueles que não a conhecem como àqueles que têm inteligência dela, também a outra agrada àqueles que não a têm como também àqueles que a possuem. A experiência justifica que mesmo os Viciosos a consideram com estima e a reverenciam nos outros aquilo que não conseguiriam encontrar em si mesmos. Dá-se a glória à Música por ter, outrora, levantado os muros de um cidade; a Virtude faz algo ainda maior e mais admirável; e aquilo que é uma fábula para aquela, é uma verdade para esta; ela [a Virtude; ndt] edifica a Cidade do Céu. Uma e outra recriam o espírito; elas o excitam com a alegria. Todas as duas exigem exercício e demandam estudo e atenção. A Virtude, assim como a Música, produz sua obra; não se trata de uma obra consistente, como a obra das artes mecânicas; ela é das Artes liberais, sua obra é sua operação. É suficiente para os operários sedentários e para aqueles que exercem uma arte pública expor sua tarefa para que se faça ver a sua habilidade. Julga-se um Pintor e um Escultor pelas imagens que eles mostram; e visto que elas sejam boas, não se fica inquirindo sobre a forma como eles trabalharam para realizá-la; e se foi por acaso ou por habilidade que eles conseguiram; nesse sentido, eles até poderiam ter realizado a obra sem se dar conta, sem conhecer adequadamente a arte ou, pelo menos, sem observar suas regras e máximas. Há um Pintor famoso que, jogando com cólera uma esponja em sua obra, a concluiu felizmente, e fez, por despeito, o que não conseguiu fazer por Arte [no texto latino, Nieremberg não fala de “um” pintor específico, mas fala hipoteticamente de um pintor que assim agisse; ndt]. Dessa forma, ele não tem Virtude, pois ela não faz nada por ignorância, nada por cólera; ela toma de empréstimo ainda menos do acaso, visto que ela é sua inimiga; e ela não quer dever nada à Fortuna. Se o bem que fazemos não for ordem sua e parte de seu método [da Virtude; ndt], ele será irregular e falso. Nós fazemos mal uso da virtude quando não agimos conforme sua prescrição. Em todas as outras artes, uma só obra é suficiente para mostrar a inteligência que se adquiriu acerca dela. Um operário se contenta com isso e, se ele quiser, não lhe é necessário trabalhar muito. Mas, assim como o Músico não seria capaz de mostrar sua Arte se não cantasse, nós também não seríamos capazes de mostrar que agimos bem se não agirmos. E certamente não será suficiente agir assim uma única vez; é preciso fazer incessantemente, é preciso mostrar que se possui a Virtude por um contínuo exercício da Virtude mesma.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 303-305.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Terceiro meio - Capítulo VI

CAPÍTULO SEXTO
Desejamos muito que nossos campos e nossas vinhas deem bons frutos; e somos, sem dúvida, muito cuidadosos na colheita daquilo que eles nos dão. Mas, que infelicidade é essa a nossa que nos faz sermos negligentes com o fruto que podemos colher de nós mesmos? Que infelicidade é essa que nos faz não querermos nos impor pela melhor colheita que podemos fazer? Que infelicidade é essa que nos faz estimar tanto os bens estrangeiros e tão pouco aqueles que vêm de nós mesmos? O homem é um terreno tanto mais fértil e feliz quanto mais é cultivado pelas próprias mãos de Deus. Seus frutos são suas boas obras; que ele saiba, portanto, usar de si mesmo, visto que não há nada de que ele possa tirar mais vantagem do que disso; que ele se sirva disso e que ele se aproveite disso, da mesma forma que ele faz coisas para si mesmo. Como nossos terrenos não produzem por si mesmos, eles só produzem o que podem e, muito frequentemente, menos do que podem. Se o pecado do homem não tiver colocado limites à fertilidade da terra, se ela estiver livre na suas produções, certamente que, ao invés de só responder raramente às nossas expectativas e praticamente sempre ter efeitos menores do que suas promessas, ela ultrapassará em muito nossas esperanças e desejos. Com isso, ela depende da constituição e dos caprichos do exterior, e só produz aquilo que agrada a esta potência Superior. Somos tão felizes que nossa fertilidade não é em nada limitada, nem depende de outros. Produzimos apenas para nós e ainda com a vantagem de produzir o quanto quisermos. Portanto, não deixemos na inutilidade a melhor e a mais nobre de nossas posses; não diminuam em nada, por nossa preguiça, o maior e o mais seguro de nossos rendimentos; o mais precioso de todos os nossos bens; aquele apenas através do qual podemos estar certos de ter e nos persuadirmos de ser ricos; em uma palavra, aquele cuja excelência é tal que, nos causando extrema satisfação, e nos levando a um proveito maravilhoso, não dá menor prazer a outros.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 302-303.

Terceiro meio - Capítulo V

CAPÍTULO QUINTO
Com efeito, o que é a preguiça senão a morte de um homem que sobrevive a si mesmo; do que um sono vígil, parecido com o de certos animais que dormem com os olhos abertos? Na verdade, a preguiça é não viver, é não cuidar para bem viver. Este pensamento de um Sábio do Paganismo foi bastante razoável: um só dia da vida de um homem hábil vale mais do que toda a vida de um ignorante [no original latino, Nieremberg nomeia esse sábio como sendo Posidônio de Apameia (c. 135 a.C. – c. 50 a.C.), que foi político, astrônomo, geógrafo, historiador e filósofo grego, seguidor da escola Estoica; ndt]. E nós diríamos, além disso, que um momento bem empregado é preferível à longa duração, não apenas dos pecados, mas também da ociosidade e da inutilidade. O tempo é algo sagrado; ele tem sua origem  nos Céus; ele é produzido por seus movimentos; ele vem do lugar onde a eternidade reside; é preciso restabelecer ali e buscar nele a eternidade. Ele parece, nisso, com a potência suprema da qual ele depende; que o conheçamos ou que não o conheçamos e, sem dúvida, quando ele está presente, é exatamente então que ele é mais invisível. Consideremos aonde nos leva a infelicidade de o desprezar e de não utilizá-lo como é preciso. O primeiro, nos torna culpados de sacrilégio. O outro, faz de nós homicidas de nós mesmos, visto que é indubitável que viver mal é, de alguma maneira, se matar. Assim, podemos muito bem dizer que um homem ocioso é, ao mesmo tempo, vivo e morto; que uma vida estéril e que nada comunica é uma morte mesma na vida. Mas, ainda mais, é uma morte ainda mais malvada, na medida em que se compadecendo com a vida ela não nos faz perder o sentimento. A [morte; ndt] natural tem isso de bom: ela nos deixa incapazes de sofrer. Pelo contrário, aquela que nasce da preguiça nos faz, não apenas sentir os males, mas ela é tão maligna que elas os produz; da mesma maneira que um terreno ruim produz cardos e espinhos.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 301-302.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Terceiro meio - Capítulo IV

CAPÍTULO QUARTO
Portanto, trabalhemos seriamente numa obra de tamanha importância; não nos distraiamos de um labor tão necessário e glorioso. O espetáculo que estamos preparando não é para o mundo, é para o Céu. Somente nisso podemos dizer que estamos trabalhando para a eternidade; e nosso verdadeiro desígnio é agradar a Deus e não aos homens. Assim, não esperemos menor glória do que a de sermos louvados por ele [por Deus; ndt]. O Escultor executa sua obra com tanto cuidado porque ele sabe que, ao dá-la ao público, ele terá todos os Expectadores como Juízes, e que os defeitos que escapam aos olhos do povo não serão capazes de evitar a censura dos hábeis e dos inteligentes. Seremos menos cuidadosos conosco mesmos, tendo que aparecer diante de um Juiz, à vista de quem nada pode escapar, que conhece soberanamente o bem e o mal que nos fazemos, e que não receberá nossa obra se ela não estiver dentro do rigor e da justiça das regras que eles nos deu? Nada de nós lhe é mais agradável do que aquilo que é direito e legítimo. Só seríamos capazes de agradá-lo com uma sólida e real virtude. Ele, certamente, não é nada parecido com esse Júpiter indulgente dos Atenienses que se contentava com um sacrifício enganador e cujo culto mais verdadeiro era feito com falsas vítimas. Estejamos bem atentos de nada lhe oferecer de indigno de sua aprovação. Não seria uma extrema loucura querer nos apresentar a ele imperfeitos e incapacitados justamente da melhor de nossas partes, ou seja, incapacitados de nossa razão que é deixada definhando numa sonolência mortal que lhe arranca todas as forças de movimento e de ação para o bem, e a impede de produzir os efeitos que sejam dignos dela. Se somos capazes de abandonar livremente ao ferro um membro inútil e morto, que desonra o corpo e que só é um peso inútil para o corpo, seríamos tão covardes a ponto de sofrer esta miserável apatia que nos segura na realização de toda e qualquer ação virtuosa, que enfraquece e sufoca tanto o vigor de nossa alma a ponto de dizermos que ela fica como que morta na mais perfeita de suas operações? Ela torna inúteis para nós todas as vantagens da Razão; e tirando-a da ação, ela nos faz cair do mais alto nível e nos priva do mais nobre título que honra nossa condição; ela abole toda a grandeza e toda a glória do homem. Nesse estado infeliz, podemos, verdadeiramente, acreditar que usamos da Vida? Se nós a recebemos apenas para agir e agir razoavelmente, nós a passamos inteira na ociosidade; perdemos todo o tempo que deveria ser empregado para fazer o bem; não temos a vergonha de apodrecer numa preguiça tão infame. Para dizer bem claramente, não sofrer nada é não viver nada, é fazer da vida um espaço vazio e, por assim dizer, um eclipse. Somos tão ociosos que não poderíamos dizer razoavelmente se estamos vivos.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 299-300.

Terceiro meio - Capítulo III

CAPÍTULO TERCEIRO
Nós gostamos quando estamos vestidos com um belo par de sapatos cujo uso é pensado apenas para o chão; e o operário se gloria de fazer adequadamente algo que, tão logo é feito, se exporá à sujeira. Será que somos tão covardes e negligentes para com uma vestimenta tão rica como é a virtude, que é feita para o Céu e cujo uso diz respeito a Deus mesmo? Cada artesão se dedica a trabalhar de tal forma que o mais rigoroso dos Censores não seja capaz de encontrar nada de repreensível. O homem, tendo que se formar, tendo que se produzir, tendo que produzir a mais nobre e excelente de todas as obras, não deveria, por isso mesmo, sofrer de tal forma com esse trabalho a ponto que se possa dizer que não há nenhum defeito no produto final? Assim como só podemos saber acerca de uma árvore a partir da bondade de seus frutos, só podemos pretender ser dignos de estima a partir de nossas ações virtuosas; elas são nosso preço e nossa glória; elas nos permitem adquirir uma glória que não tem preço. Portanto, visto que nossa dignidade depende unicamente de nós mesmos, e que ela só e indubitável na medida em que fazemos o bem, fazemos nosso preço e nosso valor de estima, não nos contentemos de ser medíocres; façamos o bem no grau mais eminente, para merecer a glória até ao mais alto ponto. Um sábio da antiguidade disse muito razoavelmente que cada um é filho de suas obras e, nisso, por uma nova e rara maneira de geração, temos o ser daquilo que o tem de nós [no original latino, Nieremberg simplesmente anota: "Unusquisque filius est operum suorum: rarum generationis genus, esse ab iis, quae a se sunt". Não há, portanto, referência explícita ao “sábio da antiguidade” e sequer aparece como citação a frase que o tradutor anotou como citação; ndt]. É desta genealogia que devemos nos gloriar. Nossas boas ações são nossos ilustres Antepassados; são os monumentos e os títulos de nossa nobreza. O excelente privilégio de nossa Razão, de nos podermos compor a nós mesmos, e nos formarmos tal como nos agrada ser. O grande operário do mundo só teve, parece, como desígnio começar e esboçar o homem; ele lhe deixou, tão logo o criou, o cuidado e os meios para se terminar, e lhe colocou entre as mãos os instrumentos necessários para chegar à sua perfeição. A virtude não é um bem que outra pessoa poderia adquirir para nós; ela precisa de nossa ação; sem dúvida, é o fruto de nosso estudo e de nossa indústria. Ela não é comercializável nem pode ser traficada, assim como as coisas da Fortuna. Ela não pode ser nem emprestada nem trocada. E quando nós a adquirimos, não é melhor que ela venha de nós e seja nossa produção? Seguramente que vale mais. E Deus mesmo, que nos destinou para sermos suas imagens vivas, não espera que sejamos Expectadores inúteis de seu desígnio; ele quis que nós sofrêssemos no rumo do destino junto com ele, e que fôssemos os artesãos da obra cujo Arquiteto é ele. Dar-lhe-íamos o imenso desprazer de ver essa obra imperfeita por causa de nossas faltas? Se algum desses grandes Escultores que a Grécia coroou por terem feito as imagens dos Deuses, trabalhando na estátua de Júpiter, e se entediando com um oficio tão nobre, a tivessem deixado inacabada para se ocupar em outras funções vis que poderiam ser realizadas pelos últimos dos homens; se, abandonando o ouro e o marfim esse Escultor fosse se sujar as mãos para tirar o barro das rodas; que julgamento se faria dele? Haveria uma desculpa legítima para uma tal fraqueza? Nós não somos menos ridículos quando nos ligamos ao lixo dessa vida e quando deixamos imperfeita a imagem viva da Divindade. Consideremos a ofensa que ela [a Divindade; ndt] recebe de nós quando esse é o assunto. Nós não apenas não temos o cuidado de representá-la como ela é, e de fazer com que a figura responda à dignidade de seu modelo, como também fazemos o modelo mesmo defeituoso; nós o imaginamos sem olhos, sem mãos e sem pés; sem luz, sem ação, sem progresso rumo ao bem; nós o tornamos incapaz de exercer a virtude, não sentimos vergonha de fazer dele um monstro. Como nos afastamos de sua verdadeira semelhança! Quais as proporções pode ainda haver entre as cópias e o original? Podemos julgar isso a partir dessas palavras de um Padre entre os Gregos [no original latino, Nieremberg escreve: "... inquit in suis theologicis magnus Theologus Maximus, & addit..."; trata-se portanto de São Máximo o Confessor (c. 580-662) que também é conhecido como Máximo o Teólogo ou Máximo de Constantinopla; ndt]: Aqueles cujos hábitos são conformes à virtude carregam, profundamente impresso, o caráter da Divindade. Ligados que estão à matéria, são considerados como Deuses. A virtude, neles, cumpre o papel do corpo; eles têm por alma um conhecimento puro e infalível; eles possuem as vantagens da natureza divina.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 296-298.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Terceiro meio - Capítulo II

CAPÍTULO SEGUNDO
O Arminho, esse nobre animal, que parece se desfazer de sua pele apenas para revestir os Reis, e que serve como seu adereço e pompa, prefere muito mais morrer do que se sujar. Ele conserva sua pureza através da perda mesma de sua vida. Que desculpa pode haver, depois disso, para os homens que estimam menos a Virtude do que um animal estima sua pele? Ou para homens que preferem simplesmente viver a viver com honra? Ou ainda para aqueles que optam apenas pela vida, em detrimento daquilo que lhes pode conferir lustro e ornamento? Que evitam, assim, aquilo que pode tornar a vida agradável e feliz? Esses homens, certamente, são indignos, pois amam a vida por si mesma. Mas, ela só deve ser considerada como um instrumento necessário para a prática da virtude. Se respeitarmos apenas isso, será o suficiente para que a consideremos cara. E seria uma estranha perversão da ordem, seria cometer uma injustiça, fazê-la servir ao desprezo da Virtude. Eu vos pergunto, o que pode haver de mais vergonhoso e miserável do que não merecer viver, por não ter preferido a morte à infâmia? Pelo contrário, o que pode haver de mais digno e nobre do que viver gloriosamente na memória dos homens por haver evitado a infâmia através da escolha voluntária da morte? Que coroa carregam, por causa de uma tão bela eleição, esses dois famosos Atletas, Dâmocles e Pelágio! O primeiro porque preferiu se entregar à morte do que consentir com as brutais paixões de um Tirano [ao que tudo indica, trata-se do protagonista de uma anedota moral criada por Timaneus de Tauromenium (c. 356 a.C. – 260 a.C.). Desse relato é nasceu a expressão “espada de Dâmocles” para indicar a insegurança dos que têm grande poder; ndt]. O segundo, por se garantir das amorosas perseguições de um Rei Bárbaro, se deixou cortar pedaço por pedaço, preferindo perder a vida que a inocência, e sofrer mil suplícios a trazer uma única mancha de impureza no corpo [parece que se trata de São Pelágio de Córdoba (912-926), que foi martirizado pelo califa Abderramão III. É venerado pela Igreja Católica como exemplo de virtude e de castidade juvenil frente à homossexualidade. Segundo os relatos de seu martírio, foi morto com tenazes de ferro que o cortaram pouco a pouco em praça pública; ndt]. Pode haver mais glorioso troféu do que aquele que se eleva pela derrota do vício? Ele quis morrer para permanecer casto. Arrancaram-lhe todos os membros, mas não lhe tiraram uma gota do contentamento; e, não tendo nem mãos nem braços, ele tinha o suficiente ainda, ele foi suficientemente poderoso, suficientemente forte, para lutar contra a potência de um Rei e destruir todas as máquinas de sua cólera. O que mais posso dizer a esse respeito? Mais do que ter a vergonha de se ver sujo, ele não teve o mínimo horror de se ver morto. Esta glória não foi menos corajosamente aceita por essas ilustres Virgens, essas Heroínas do cristianismo, Apolônia [Santa Apolônia de Alexandria (?-249), martirizada durante a perseguição de Décio, teve todos os dentes arrancados ou quebrados sob tortura; ndt], Margarida [encontramos várias referências a santas com este nome, mas nenhuma com precisão suficiente para indicarmos como sendo aquela a que se refere Nieremberg; ndt], Águeda [Santa Águeda de Catânia (c. 230 – 251), martirizada também durante as perseguições de Décio, teve os seios arrancados com tenazes; ndt] e Brígida [também não encontramos uma referência precisa quanto a esta santa; ndt]; e isso lhes custou a ruína inteira de sua beleza. Como se elas tivessem desejado isso para punir a inocente traição que ela [a beleza; ndt] lhes havia feito, ao acender a más paixões no coração dos Tiranos; assim, elas expuseram com alegria a beleza que tinham à crueldade dos carrascos, elas se viram, cheias de alegria, tendo o rosto e os seios sendo desfeitos para que se conservasse sua pudicícia, elas se gloriaram  da deformidade de seus corpos como se fosse a melhor e mais segura guarda que poderiam dar para a beleza de suas almas.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 294-295.

sábado, 16 de outubro de 2010

Terceiro meio - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO SEGUNDO
_______________________

MEIOS infalíveis para adquirir a felicidade.
TERCEIRO MEIO
QUE devemos praticar as ações virtuosas e que elas nutrem a alegria

CAPÍTULO PRIMEIRO
Sendo que as boas ações são fontes felizes de onde jorra a alegria e legítimos títulos que nos garantem sua posse, busquemos ardentemente a Virtude; coloquemos toda a nossa correção e todo o nosso estudo em jogo para chegar aí; não deixemos jamais de agir bem. Nisso deve estar nosso maior cuidado e nossa tarefa principal, já que se encontra nisso, sem dúvida, o mistério de nossa felicidade. Não haveria sacrifício mais digno do Céu do que lhe oferecer como vítimas agradáveis nossas próprias mãos. Os Antigos Portugueses cortavam a mão direita de seus cativos e a imolavam a seus Deuses, se impondo, através disso, uma obrigação necessária de abraçar o sofrimento e pareciam lhes prometer, com essa mão, não lhes deixar ociosas. A exemplo desse povo, e mais razoavelmente ainda – já que temos as luzes e os conhecimentos que eles não tinham –, ofereçamos a Deus nossas próprias mãos e não aquelas de outros. Sem dúvida, é nos louvar muito mal, ou ainda mais é não nos louvar em nada, dizer apenas que não somos viciosos; e só pode ser um louvor na medida em que temos complacência com nossos defeitos e nos bajulamos a nós mesmos. A corrupção do mundo chegou a tal ponto que aquele cuja vida, aparentemente, não é sobrecarregada e criminosa que, para bem dizer, é o menos malvado, passa por homem de bem; mas, como a glória é pequena! Para falar ingenuamente, como ela é falsa! Achamos que ele merece não ser considerado malvado, mas ele merece ser condenado. Não é suficiente não ter o hábito no vício; não devemos permanecer aí, é preciso ir adiante, é preciso ter o hábito na Virtude. Há diferença entre fazer o bem e não fazer o mal; a verdadeira estima consiste no primeiro e nunca poderá vir do outro. Como, para não fazer o mal, nós, no entanto, nos excusamos de não fazer mal, mesmo podendo fazer o bem, nós nos tornamos criminosos se não o fizermos. O louvor vem do bem e nunca poderá vir do mal. Ele deriva da Virtude como se fosse essa a sua fonte natural. Portanto, nos deve ser suficiente que nossas ações não nos engajem no arrependimento e não nos lancem condenações sobre nós. Devemos agir de tal modo que elas nos deem satisfação e mereçam aplausos. Mesmo que não nos tornemos bons pela prática do bem, há muito a dizer sobre a diferença entre fazer o que é bom e fazemo-nos bons nós mesmos. Não é suficiente fazer o bem. É preciso fazê-lo de tal sorte que ele peça para ser feito; é preciso sofrer com isso de tal modo sejamos obrigados a fazê-lo. A virtude, que é a regra de todas as coisas, está às vezes muito mais na maneira que nas coisas. Fazer o bem e não o fazer com a arte e o método que lhe são próprios é gastar com uma mão o que fazermos com a outra, é escrever com uma bela caligrafia e apagar o que se escreveu ao mesmo tempo em que se escreve. O bem cessa de ser bem se ele não é feito com as precauções convenientes e necessárias. Se, portanto, queremos fazer boas ações e as fazer precisamente, se queremos que nossa obra seja impecável e limpa, adquiramos pureza; pensemos que uma mancha aparece muito mais sobre uma veste real do que sobre um manto simples – na veste real, ela é muito mais suja e vil.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 291-294.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Segundo meio - Capítulo VIII

CAPÍTULO OITAVO
Tendo dito isso tudo, fica claro que esse sofrimento é salutar, na medida em que, não sendo um mal, é a causa de um bem extremado; ele produz e estabelece a paz e a alegria do espírito. E eu vos pergunto que bem, por maior que seja, pode justamente ser comparado com a felicidade daquele que não sente nem incômodo nem remorsos? Alguém cuja consciência, podemos dizer, é um Teatro inocente e magnífico para as ações da Virtude. Alguém que é adornado com a pureza do seu coração como se fosse uma joia vinda do Céu, como se fosse um ornamento divino e conveniente a Deus. Que alegria pode se igualar àquela que resiste aos esforços da mais negra tristeza e que nenhum acontecimento estranho e funesto conseguiria suspender ou atrapalhar? Um Antigo, a este propósito, disse muito bem que os tormentos mais rudes e mais incômodos são apenas motivo para desprezo para aqueles cuja consciência não sofre com nenhuma recriminação; porque como não tem nenhuma diminuição para aquela a quem ela atormenta, sem dúvida, não há também nenhuma pena para aquele a quem ela justifica [no original latino, Nieremberg cita um certo “religiosus Theophanes”, o que parece se referia a Teófanes o Grego (c. 760 – 817), monge bizantino bastante cultuado na Igreja Ortodoxa; ndt]. Um não seria capaz de encontrar suporte ou defesa contra si; e o outro se encontra perfeitamente livre de dor e de apreensão. A consciência sã e sem recriminação é a mais alta vantagem de um homem de bem; é a primeira coroa da Virtude; é sua recompensa natural; é o maior ganho que podemos ter no comércio que temos com o mundo; e, para não mentir, poderíamos esperar proveito mais considerável e tirar uma usura melhor do sofrimento do que nos colocarmos na defesa contra o pecado, do que adquirir um perfeito repouso e comprar, por assim dizer, com um momento de pena, um século, uma eternidade de alegria? Pelo contrário, pode haver perda mais perigosa do que o ganho que se tem no mal? Visto que ele se faz ao preço da consciência. Não é exatamente a este respeito que o Sábio se refere quando diz que é preciso preferir a perda ao mau negócio? [No texto original, Nieremberg ser refere a um dos Sete Sábios da Grécia, nomeadamente a Quilón de Esparta, que viveu no século VI a.C.; ndt] Visto que uma só nos aflige uma única vez, enquanto que a outra nos faz sofrer sem cessar. Visto que, se não podemos desejar bens maiores do que a liberdade, pois todos os outros só nos tocam imperfeitamente sem ela, nós a possuímos eminentemente se formos isentos de temor; porque o que pode ser apreensivo para quem não é motivo de apreensão para si mesmo? Alguém, perguntando a Periandro [ao que tudo indica, trata-se de Periandro (?-583 a.C.) que foi o segundo tirano de Corinto; ndt] no que consistisse a liberdade, obteve como a resposta: na boa consciência. Outro, seguindo seu pensamento, disse que o homem de bem é aquele que parece menos viver pela vida que pela virtude, que não sente nenhuma guerra interior, quando luta contra seus inimigos; e que, trazendo um coração limpo e puro, é a feliz testemunha desta verdade: que a coragem é filha da inocência. Pelo contrário, eu vos pergunto, qual é o efeito do remorso? Ele nos abate, ele nos arranca o coração, ele nos confere a baixeza e a timidez dos escravos. E, para dizer a verdade, que alegria, ou apenas que segurança pode haver aquele que sofre em si mesmo um suplício contínuo, que tem serpentes no seio, que o fazem sofrer o tempo inteiro, que o pressionam e enchem de dor, e para quem o futuro paralisa de medo? Quem, para dizer em poucas palavras, está num abismo de males do qual ele só ousa esperar o fim de sua vida e para o qual ele não encontra nem remédio nem alívio?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 289-291.

Segundo meio - Capítulo VII

CAPÍTULO SÉTIMO
Portanto, para não cair sob o jugo e a tirania do remorso, evitemos, quando estiverem nascendo, os maus desejos e os afetos desordenados. Resistamos corajosamente a tudo aquilo que nos aconselha o mal. Ninguém, certamente, que lhe tenha dado crédito se saiu bem. Todos os nossos defeitos, todos os nossos desprazeres, procedem em absoluto do defeito de nossa paciência, porque, não querendo sofrer, recusamos fazer o que há de mais excelente na Virtude. Falhamos no maior e no mais necessário dever que ela nos impõe. Quando agimos no pecado, esses dois males se apresentam para nós: o de cometê-lo ou o de sofrer algo para nos defendermos de cometê-lo. Ora, nossa miséria é tal que, para nos garantir contra este, que é muito fácil de suportar, nós nos precipitamos no outro, que é tão extremado; e caímos nele com muito pouco escrúpulo, dada a natural complacência que temos com nossos sentidos, cujas formas de persuasão são muito poderosas a ponto de falar mais alto que a razão. Ela quer soframos um pequeno mal para que evitemos o pecado que, sem dúvida, é o maior de todos os males. Pelo contrário, eles querem que nos abandonemos ao pecado muito mais do que admitamos a menor pena; eles deixam a alma perecer cruelmente, mais do que consentem o mais leve sofrimento ao corpo. O remédio infalível para esses dois males é sofrer o último e resistir ao primeiro. E se não sofremos algo para não pecar em nada, sofreremos um tormento extremo por ter pecado. Quem não escolheria muito mais um curto sofrimento em lugar de um longo incômodo como é o que nos causa o remorso? Verdadeiramente, visto que não sabemos evitar sofrer – seja antes da falta, para que não a cometamos, seja após a falta, por tê-la cometido –, seremos não apenas muito ignorantes e cegos, como também nossos próprios inimigos quando perdermos a vantagem que temos nessa escolha e se, nos encontrando entre dois males, falhemos quanto à máxima que nos diz que devemos eleger o menor; através disso, nos eximimos do rigor dos dois grandes suplícios; nos subtraímos ao furor dos dois Tiranos desumanos – a pena que nos causa o remorso e aquela que nos impõe a penitência do crime. Assim, este sofrimento praticado antes dos males nos servirá como excelente antídoto contra os males mesmos; e, por um mal abreviado, evitaremos o mal inteiro. Mas, somos de tal forma inimigos de nosso próprio bem que rejeitamos aquilo que nos preserva como se fosse um veneno; e não temos menos desconfiança e horror daquilo que nos concede saúde do que daquilo que nos arranca a saúde e nos faz perder a vida.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 287-289.

Segundo meio - Capítulo VI

CAPÍTULO SEXTO
Assim como não há remédio mais soberano contra os males que recebemos da Fortuna do que suportá-los com constância, assim também não há defesa mais segura contra os ataques que a consciência poderia nos fazer do que rejeitar corajosamente tudo aquilo que é contrário à virtude,  não admitir de forma alguma qualquer mal que seja dentro de nós, opor todas as nossas defesas contra as suas aproximações. Não há meio mais seguro e fácil para vencer a Fortuna do que sofrer suas injúrias; não há forma mais excelente de se preservar dos ataques da consciência do que não sofrer nada e nada fazer do que seja capaz de os excitar. A única coisa necessária é não se deixar excitar por aquilo que a Fortuna faz contra nós, a fim de torná-la absolutamente impotente quanto ao que diz respeito à nossa ruína. Pelo contrário, é preciso condenar com rigor tudo aquilo que pode nos trazer remorso, a fim de adquirir uma calma perpétua em nossa consciência. Os meios que a Fortuna emprega para nos causar um mal são conhecidos por nós; só a origem que nos é escondida e, por isso, é-nos tão difícil evitá-los e nos prevenirmos deles. Porém, é muito fácil para nós nos abstermos das coisas que podem nos causar arrependimento, pois isso depende unicamente de nós; e, para que ajamos mal, não é preciso movimento algum de outros, mas apenas nossos. Portanto, é preciso que nos previnamos, visto que não somente conhecemos suas causas, como também sabemos que elas estão em nós; e, por uma vergonha antecipada, evitemos aquilo que não é honesto, para que não ressintamos a aflição. Assim, nunca teremos remorsos. O que nos serve contra a Fortuna vem antes dos males; mas o que nos protege dos atentados da consciência nos previne deles [dos males; ndt]. O primeiro é um remédio e outro é um antídoto. É um feliz obstáculo que os impede de chegar. A dor que nos vem de uma má ação pode muito bem se levantar contra ela mesma e se tornar uma justa indignação contra a injustiça da Fortuna; mas aquele que procede de uma ação viciosa deve permanecer do rebaixamento e, por uma timidez saudável, não deve nunca ter a segurança de se levantar. Assim como a alegria e a tranquilidade do espírito são os frutos e os ornamentos necessários da inocência, o desprazer a vergonha de ter falhado são as flores e os sinais mais certos da mesma inocência. O pudor é a infância da Virtude; e sendo assim evitemos ao máximo abafar o lamento que vem do pecado, visto que será ele mesmo que irá destruir o pecado – por um parricídio legítimo e feliz, esse filho mata o pai. A Providência, de quem cada efeito é uma maravilha, quis para o bem do mundo que os animais malignos que não estão na ordem dos produtos ordinários da Natureza e aqueles que parecem ter nascido apenas para a ruína de outros, fossem estéreis ou que só fossem fecundos para a própria infelicidade. Ela quis que as coisas nocivas e malfeitoras não tivessem escapatória ou que não pudessem escapar por muito tempo. Assim, as mulas são infecundas para que os monstros não se multiplicassem; as víboras só produzem para sua própria destruição. Nisso, elas são verdadeiramente mães felizes, visto que são mães de sua própria morte. Certamente que, como elas recebem a morte de seus próprios filhos, o lamento que nasce do pecado faz morrer o pecado mesmo e, consequentemente, é bastante justo que deixemos viver esse favorável destruído dos males. Assim, não devemos impedir seu nascimento, mas o nascimento daquilo que o produz. Não é preciso nos defender do lamento após a falta, mas nos defender da falta mesma. 

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 284-287.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Segundo meio - Capítulo V

CAPÍTULO QUINTO
Assim, podemos dizer que se trata de injustiça contra a Natureza acreditar que ela seja a única culpada de nossas infelicidades e de nossos problemas. Nós armamos contra nós mesmos nossa própria malignidade; nós lhe colocamos nas mãos o ferro com o qual ela nos mata. Nossas más ações nos fazem sofrer muito mais, sem dúvida, do que nossa má sorte; e nossos sofrimentos procedem bem menos do mal que nos chega por acaso do que daquele que fazemos por eleição. Ora, o maior dos males é sofrer por nossa própria ação. Qual é a miséria daquele que se encontra nesse estado deplorável? Ele nunca tem contentamento sólido ou, se podemos dizer, ele não tem contentamento algum; suas satisfações são todas falsas; e quando parece que ele se encontra na alegria e nas delícias, ele está é atormentado. Não há nada de mais justo para acusar a Fortuna do que o fato de, nos fazendo o bem, nos leva a fazer o mal, nos aplaudindo e nos bajulando, ela nos suscita as ocasiões e nos facilita os meios para fazer o mal. Para essa infelicidade, sem dúvida a maior de todas ou, para melhor dizer, a única verdadeira infelicidade, a Paciência tem remédio; mas de uma maneira extraordinária e por um nobre esforço que ela faz sobre si mesma, imprimindo o vigor e a atividade de sua inimiga, a cólera; e passando então sob a aparência de impaciência, que é seu sobrenome, da mesma forma que os vitoriosos, antes, se diziam vencidos.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 283-284.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Segundo meio - Capítulo IV

CAPÍTULO QUARTO
Não há nenhum refúgio, não há nenhum asilo para o infeliz que ela faz sofrer e que ela persegue; ele não seria capaz nem mesmo de encontrar em si mesmo o suporte e a defesa contra si. Por mais inexpugnável que seja a muralha que o cerca, por mais forte que seja a guarda que vela noite e dia por ele, e por mais que ele tenha tudo o que poderia desejar para sua perfeita segurança, infelizmente ele nunca estará seguro. Ele só está verdadeiramente em paz fora; mas, se está dentro, estará sempre com problemas, estará eternamente em guerra. Ele não teme cair nas mãos dos ministros da justiça e experimentar o rigor dos suplícios que ela ordena; mas ele sofre uma pena interior mil vezes mais dura do que o muro que o cerca, que o mantém prisioneiro de si mesmo. Sem dúvida, há cadeias mais rudes que ele não poderia evitar. Como é deplorável a sua condição! Ele pode dobrar um Tirano, ele pode encontrar sua piedade, mas não a poderá encontrar dentro de si mesmo. Eis o horrível suplício que um famoso Bárbaro praticava [no original latino não há referência nominal a este bárbaro; ndt]: por um prodigioso e novo meio, afligia os homens, reunindo em todas as suas partes os corpos vivos com os corpos mortos, a fim de que a corrupção desses ganhasse a vida daqueles, fazendo durar ao máximo o sentimento da morte, até ao ponto de ela se produzir necessariamente. E tornando-o longo, ele tornava ainda mais cruel esse suplício. E eu vos pergunto, se pode haver comparação mais adequada com o remorso que o pecado nos causa? Ele é como uma carniça fedorenta que nos é amarrada e que nos dá a sensação de uma longa morte. Eu chamo assim à negra e profunda tristeza com a qual ele nos aflige. Em todos os outros males, cada um é seu próprio consolador, a razão os alivia ou, pelo menos, os tempera; mas ela dá novas forças a ele, ele recresce, se irrita através daquilo que os outros receberiam atenuações.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 282-283.

Segundo meio - Capítulo III

CAPÍTULO TERCEIRO
Com isso, podemos dizer que esse tormento não é menos infalível que estranho. Podemos, seguramente, dizer que sua segurança ultrapassa também sua grandeza. Nunca se viu Tirano algum que não tenha concedido graça a alguém; ou mãos de que se tenha escapado, seja pelo perdão que pela fuga. Nunca houve quem não se tenha alguma vez enganado pelos ministros de sua vingança. O remorso é o único Tirano da crueldade, contra quem nada é capaz de nos garantir, ele não é sensível absolutamente à piedade, não temos nem amigos nem crédito perto dele, e não seríamos capazes de escapar dele, nem pela força nem pela indústria. Ninguém, certamente, pode fugir e enganar; ninguém é prevaricador, ninguém é infalível diante de sua consciência. Ter remorso é estar numa escravidão perpétua, é carregar uma corrente da qual não é possível se desfazer; é estar sobrecarregado com um jugo de que é impossível se libertar. Um antigo disse, depois de Platão, que a pena é a companheira inseparável do pecado [no original latino, Nieremberg escreve: “Laxe a Victore dictum: Contermina poenae culpa suae est. Item & a Platone”. Porém, não conseguimos identificar esse autor: será São Victor (?-303)? Ou o Papa São Victor I (155-199)? Ou ainda Hugo de São Victor (1096-1141)? É bem provável que seja este último, mas será preciso uma pesquisa mais atenta para se chegar a alguma certeza a este respeito; ndt]. Outro, mais apropriadamente, a nomeou sua irmã de leite [trata-se de Hesíodo (séc. VIII a.C.), poeta grego; ndt]. Mas, é muito mais razoável dizer que ela, na verdade, é sua filha, visto que não apenas ela nasce com ele, mas também nasce dele. Também é preciso dizer que ela é formada por uma fecundidade infeliz, parecida com aquela daquele tipo de animais que, estando ainda no ventre de sua mãe, carregam um feto e são pais ao mesmo tempo que filhos. E certamente é a primeira e maior pena do pecado: ser o autor de sua própria pena. Não há desculpa legítima alguma contra as reprovações da consciência. Aqueles que ela condena não conseguem se persuadir de que não sejam culpáveis, ainda que, pela opinião de todo mundo, eles até passem por inocentes.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 281-282.

Segundo meio - Capítulo II

CAPÍTULO SEGUNDO
Diremos ainda uma vez: assim como o ardor que queima nosso interior é incomparavelmente mais violento do que aquele que o Sol nos faz sentir mesmo quando está a pino, quando o cão do Céu o irrita com suas mordidas, por assim dizer [é interessante observar o que vem anotado no original latino: “Maior dolor (ilegível) sui est, quam perpetientis hostilia: sicut maior est calor, qui a praecordiis, & febri per artuum medullas surrepit, quam quem morsu Caniculae irritatus Sol iaculatur e caelo”. A imagem do cão que morde o sol (morsu Caniculae irritatus Sol) é a que deu origem ao termo “canícula”, que é usado para descrever uma condição do tempo meteorológico associada a ondas de calor. No hemisfério norte, está associado à passagem aparente do disco solar pela constelação de Cão Menor (conhecida, na França, como Canicule); ndt]. A dor que sentimos por causa dos remorsos é muito superior à dos males mais difíceis, que nos suscitariam o ódio contra nosso inimigo mais mortal. Ela ultrapassa a crueldade dos Tiranos mais desumanos, ela a enriquece, ela se vale de todas as suas horríveis invenções para atormentar os homens. E certamente que pena sofreram aqueles que experimentaram seus suplícios! Não foram inferiores àquela que o crime de Orestes [Orestes é um personagem da mitologia grega, filho de Agamêmnon e Clitemnestra. Segundo o relato mitológico, Orestes, depois de ter matado sua mãe, sofre amargamente o remorso, fugindo das Erínias – personagens mitológicos, em forma de mulheres aladas, com serpentes como cabelos, que empunhavam tochas acesas e chicotes, e perseguiam infratores. O relato é descrito por Ésquilo, na tragédia “Eumênides”; ndt] lhe fez sentir sem precisar estar sob ferros e dificuldades e tendo como carrasco apenas a si mesmo! Os antigos habitantes de Damieta, tendo que punir um parricida, e não crendo que as leis fossem severas o suficiente para punir esse tipo de criminoso, não se valeram nem do rigor do fogo nem do veneno das serpentes, eles simplesmente o abandonaram às censuras de sua consciência, como se o tivessem livrado a carrascos ainda mais impiedosos e cruéis, eles o condenaram a manter, durante três dias, a vista presa ao corpo morto, a fim de que a presença e a força desse objeto infeliz, redobrando seu remorso e a grandeza de sua pena, igualasse a enormidade de seu crime. Esse foi também um tormento que o famoso Tirano de Agrigento [no original latino não há referências a nomes. Sabe-se, no entanto, que a tirania foi instalada ali com Fálaris (?-554 a.C.). E, certamente, é a este tirano que Nieremberg se refere, como se verá a seguir, visto ter sido este tirano a instaurar o Touro de Perilo como instrumento de tortura; ndt] julgou mais estranho do que aquele a que ele submeteu o autor do seu Touro de Bronze, que lhe parecia apenas um meio medíocre de exercer sua crueldade, e que lhe servia apenas para suas vinganças ordinárias e para os menos culpáveis – para os mais culpáveis, ele se valia dos remorsos de suas consciências, de forma que, concedendo-lhes viver, ele acreditava, sem dúvida, os estar tratando com mais rigor do que lhes oferecendo a morte. Mas, um suplício tão grande como esse já era usado muito tempos antes dele. A justiça Divina fez com que o primeiro criminoso do mundo o sofresse. Aquele para quem a morte, ainda inocente e virgem, fez seu primeiro fruto, Caim, não foi julgado digno de uma pena menor do que a de ser despedaçado pelo remorso de seu fratricídio [no texto francês, o tradutor, erroneamente, anotou “parricídio”; ndt]. Ele teve a vida como punição, até mesmo a certeza da vida se é que se pode dizer isso quando se fala da guerra contínua que os malvados vivem em sua consciência, ou de uma vida que sofre com os contínuos remorsos. Não seria melhor uma morte cruel? Nossos primeiros pais mesmos – se podemos nomear dessa forma aqueles que nos deram mais a morte do que a vida [trata-se de Adão e Eva; ndt] – experimentaram também a severidade desse castigo. Confundidos com sua desobediência, e pressionados por seus remorsos, eles acreditaram que Deus, tendo lhes dado a Vida, lhes fazia menos uma graça do que um suplício. A Imagem de seu crime, seguindo-os em todos os lugares e os pressionando, os fez querer se afastar de si mesmos, a fim de evitar um objeto tão funesto, os fez querer poder se livrar, através da morte, da vergonha cruel que sua consciência os fazia sofrer. Mas, eles tentaram encontrar lugares distantes e escuros, eles quiseram se esconder e se sepultar em cavernas e nos abismos; mas seu mal, em todos os lugares, não tinha remédio; os furores internos que eles sofriam tornavam inúteis todos os cuidados que eles tinham para se aliviarem. Eu vos pergunto, que suplícios maiores pode haver depois disso, seja nos extremos rigores das leis, seja na crueldade dos Tiranos, seja na justiça natural, seja na Divina? Esta é uma verdade que Deus, a Razão e a Natureza confirmam, e da qual a consciência, por perturbada e furiosa que esteja, é uma séria e fiel testemunha.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 282-284.