quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Oitavo preceito - Capítulo V

CAPÍTULO V
Além do mais, como o conhecimento de Deus nos confere a maravilhosa vantagem de não ficarmos descontentes na estima das coisas; como ela nos serve, nisso, de luz e de guia, sem dúvida, esta estimação mesma das coisas nos servirá de aguilhão; e, ao mesmo tempo, será uma grande ajuda para nos excitar e nos levar ao conhecimento de Deus. É através disso que as coisas, perdendo a aparência e o lustro sobre o qual se sustentam e que a Opinião lhes empresta, condenam-se a si mesmas suficientemente, se mostram bastante indignas de nossa afeição e de nossa estima, e nos fazem ver que elas merecem mesmo é nosso desprezo. Certamente, nosso espírito não seria capaz de se elevar ao Céu e se aplicar na contemplação das coisas divinas sem se separar da matéria, sem se divorciar do corpo, e, para dizer mais claramente, sem desprezá-lo. Sendo que não há nenhum caso contrário quanto a isso, em seguida, será infalivelmente necessário que quem chegou a este alto ponto de Sabedoria não se vincule a seu corpo, não tema a morte em nada, não ame nem busque as delícias, tanto menos aquilo que as produz e as mantém – as Riquezas. Como sabemos que nosso corpo é um perpétuo obstáculo para o conhecimento da Verdade, envidaremos todos os esforços possíveis para nos desembaraçarmos dele; vamos lutar ainda para romper todo comércio com ele, visto não ignorarmos que ele a causa dos males que cometemos e daqueles que nos é necessário suportar, dos males que vêm de nós e daqueles que vêm da Fortuna. Sabemos que as guerras e as desordens que existem entre os homens são feitas por causa das riquezas; sabemos que é por causa da posse do Ouro que os homens empregam o ferro para sua ruína comum; sabemos que elas causam as rapinas e as violências que eles exercem uns contra os outros. Não ignoramos também que as riquezas são para o corpo. Se, portanto, desprezamos este, por que estimamos aquelas? Pelo desprezo das riquezas, adquirimos dois bens inestimáveis, a inocência e a liberdade; tornamo-nos Mestres de nós mesmos. E, a partir disso, conseguiremos nos devotar fortemente à contemplação das coisas divinas; através dela [dessa contemplação; ndt], possuindo o Céu, e às vezes possuindo até mesmo a Deus, não teremos mais nem paixões nem sentimentos pelas coisas, as estimaremos pouco, visto que, sem elas, seremos soberanamente satisfeitos e felizes. Ora, sendo que isso é o objetivo a que todos visamos, sendo que não a ninguém que não aspire à felicidade, e sendo que ela é o alvo comum de todos os homens, ser-nos-á muito fácil chegar até a ela, desde que coloquemos em prática aquilo que este discurso e os precedentes acabaram de nos ensinar. Dediquemos, portanto, nisso, todos os nossos cuidados; empreguemos, nisso, toda a nossa força; visto que este é o trabalho mais nobre, o mais importante e o mais necessário com o qual poderíamos nos ocupar [no original latino, Nieremberg termina o terceiro livro do De Arte Voluntatis citando uma frase de São Paulino de Nola: “Nihil de mundi sumere censu / Mens opulenta Deo voluit”; ndt].

Fim do Terceiro Livro.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 548-550.

Oitavo preceito - Capítulo IV

CAPÍTULO IV
Portanto, é indubitável que, tendo o conhecimento de Deus, teremos as luzes necessárias para dar o justo preço das coisas; corrigiremos as falsas impressões que a Opinião nos deu sobre elas; não nos deixaremos mais surpreender por sua aparência e seu brilho. Assim, seja que as possuamos, seja que sejamos despojados delas, sempre teremos presente em nós que não há nada de bom nelas além de seu uso; que elas só valem pela escolha e pela estima que nosso espírito faz. Da mesma forma que as crianças só cuidam das pedrinhas com as quais brincam na medida em que lhes é útil para alguma coisa e, depois, as desprezam; também nós só devemos estimar as coisas na medida em que nos servem para chegar a um fim que nos foi proposto; não temos que cometer a infelicidade de tomá-las como fins em si mesmas e não devemos ligar nosso amor a elas; é preciso temer incorrer na justa censura de ter menos razão e prudência que as crianças. Como sabemos que todas elas procedem de Deus, ficaremos mais à vontade de remetê-las sempre a Ele. Elevando nosso espírito para o Céu, saberemos que há Volúpias infinitamente mais encantadoras do que todas aquelas que buscamos juntas e que saboreamos apenas através dos sentidos; Volúpias muito mais perfeitas, na medida em que não têm mais relação com os sentidos. E disso, sem dúvida, não nos dedicaremos mais a preferir aquelas [Volúpias; ndt] do corpo; não ignorando o quanto ele nos é pouco necessário para saborear as verdadeiras delícias, visto que Deus, que não tem corpo, possui uma soberana felicidade. Não tomaremos mais como sinal de satisfação e de alegria tudo aquilo que tem a aparência [de satisfação e de alegria; ndt], aquilo que os homens fazem rindo; lembrando-nos de que os insensatos e os frenéticos riem mesmo quando um furor mais violento os transporta, mesmo quando eles se ferem com suas próprias mãos e quebram a própria cabeça contra as paredes. Certamente, por mais agradável que seja a fantasia que temos sobre as Volúpias sensuais, ela não nos tocará e não nos tentará. Pelo contrário, teremos piedade, teremos horror daqueles cuja vida é uma contínua devassidão; que, dia e noite, se enchem de vinho e de carne; que, por uma loucura semelhante àquela dos Bárbaros, adoram aquilo que os destrói; que, por uma desordem extrema, sujeitam sua alma e sua razão a seu ventre; que se estupidificam voluntariamente pelos excessos da boca e por outras dissoluções. Que grandes e remarcáveis vantagens mais podemos esperar do conhecimento de Deus? Da mesma forma como ele [esse conhecimento; ndt] nos eleva acima dos eventos humanos, também faz com que eles não nos toquem; ou, pelo menos, faz com que eles não causem uma tão grande impressão em nós a ponto de incomodar nosso repouso, a ponto de alterar nossa alegria. Esse conhecimento nos permite adquirir uma constância, uma firmeza, que não é abalada pelos violentos ataques que recebemos da Fortuna. Através dele, aprendemos a não temer a morte; a não amar a vida; vida que só é preciso temer na medida em que, para dizer a verdade, sendo má, fará com que a morte seja também má. O que mais eu poderia dizer? Esse conhecimento nos inspira uma alta resolução; coloca nosso coração no lugar certo, a ponto de, qualquer perigo que se nos seja apresentado, nós nos expomos com coragem, por pouco que reconheçamos nisso alguma glória da Virtude. Consideramos a vida e a morte indiferentemente; não elegemos nem temos paixão por uma mais do que pela outra, para além daquilo que um respeito tão nobre nos obriga. Se nos for necessário morrer, não apenas não resistiremos a isso, como também agiremos com alegria; e, então, não saberemos mais o que é temer o ferro e o fogo; nada de tão terrível nos assustará. Aquele que retomou a Seita dos Estóicos e reconstruiu o Pórtico, Epícteto [Epícteto (55-135); ndt], exortando seus discípulos para a prática desta Filosofia, segundo o testemunho de Arriano [trata-se de Lúcio Flávio Arriano Xenofonte (c. 92 – c. 175), que foi historiador da Roma antiga; ndt], seu intérprete, lhes propunha o exemplo dos Cristãos; e, para dizê-lo com em suas palavras, construía o modelo de sua Sabedoria sobre sua loucura. Ele dava esse nome [loucura; ndt] à segurança com a qual ele os via abraçarem os suplícios e se apresentarem à morte. Ele chamava loucura a mais eminente Sabedoria, a Sabedoria mesma de Deus; verificando aquilo que havia predito o divino Apóstolo [São Paulo; ndt], que ela seria tomada, pelos homens, como loucura. Mas, como ele achava admirável aquela loucura! Tanto que ele propunha a imitação deles àqueles que queriam se instruir na Sabedoria! Podemos dizer, aqui, a mesma coisa: quem se curar dos erros que reinam no mundo, quem assumir sentimentos contrários àqueles da multidão enganada, não será visto como Sábio, mas certamente estará entre aqueles que não o são.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 544-547.

Oitavo preceito - Capítulo III

CAPÍTULO III
Mas, por que tardamos tanto a dizer em alto e bom som? Todo aquele que conhece a Deus, infalivelmente se tornará sábio; quem for sábio, zombará dos enganos que a Opinião introduziu e autorizou entre os homens; ele rirá das falsas persuasões que ela lhe colocou no espírito. Não será mais possível dissimular; esta inimiga perigosa do bom senso e da Razão os seduziu e corrompeu a todos; ela os possui, e os domina; quase não há ninguém que possa se dizer isento de suas imposturas e de sua tirania. Queremos provas maiores do que suas ações públicas e ordinárias? Do que ver que eles afetam com adornos e ornamentos aquilo que, por seus sentimentos, se transforma em desonra; aquilo que sobrecarrega e incomoda? Do que ver que eles empregam as marcas da miséria para representar sua felicidade? Estranha e deplorável loucura! As pessoas de condição não apenas livre, como também felizes; aquelas que não somente não dependem dos outros, mas de quem muitos outros dependem; os Grande e os Ricos se sobrecarregam de correntes; eles não têm vergonha de rebaixar tanto a ponto de se tornarem escravos voluntariamente, privando a si mesmos da liberdade, do maior bem que recebemos da Natureza. Eles não enrubescem com a infâmia de sua servidão, porque suas correntes são de ouro; como se não fosse não ser mais escravo estar amarrado por ouro ao invés de por ferro; e como se as cadeias não fossem mais estreitas e fortes do que são brilhantes e preciosas. De qualquer forma, nisso, podemos dizer que eles são razoáveis, ao condenar publicamente sua loucura e se punirem por sua avareza, acorrentando-se por suas próprias mãos, como se fossem criminosos ou pessoas estão fora de si. Um deles, cuja loucura era mais ambiciosa que a dos outros, tendo sido, um dia, encontrado por um homem galante, lhe ofereceu motivo para fazer esta zombaria: “O resto dos loucos se deixa prender por uma única corrente, mas, no caso desse, são precisas muitas correntes” [no original latino, Nieremberg se refere a um certo Nicolau, de quem não conseguimos maiores dados; ndt]. Há aqueles a quem não apenas o ouro acorrenta, como prega; que se vangloriam de serem perfurados, terem as orelhas rasgadas, e que gostariam muito bem de poder introduzi-lo em outras partes do próprio corpo. Que Tirano bárbaro e tão cruel [no original latino, Nieremberg nomeia como exemplo de homem perverso e cruel o tirano Fálaris (?-554 a.C.), que instaurou o Touro de Perilo como instrumento de tortura; ndt] poderia praticar um meio mais estranho para fazer parar e reter os culpados? Quem mais poderia ter inventado a ideia de inserir as cadeias em seus membros? Quem mais poderia ter pensado em misturar e confundir as cadeias na carne e no sangue dos culpados? É isso que a avareza faz, mais cruel e engenhosa do que todos os Tiranos juntos; seguramente mais cruel; visto que, não estando contente em nos amarrar o corpo, ele nos amarra também a alma; ela nos sujeita justamente a partir daquela parte que se conserva livre em meio às mais duras provações. Estas mesmas pessoas tiram vantagem da riqueza e da pompa de suas roupas; elas fazem consistir nas roupas a sua glória. Mas, eu vos pergunto, sobre o que elas estabelecem a sua glória? Sobre um fundamento certamente muito vil e frágil, sobre o restolho vomitado por um verme, sobre o pêlo supérfluo que foi arrancado de um animal, sobre fios de seda e de lã, tecidos sutilmente e delicadamente trabalhados. Muitas vezes, chega-se mesmo a este extremo engano de julgar, através disso, os homens; de medir a nobreza e o mérito pelo seu vestuário; e, sendo mais ou menos rico, de estimar mais ou menos a pessoa que o veste. Recebemos a custa de nada e sem pena alguma a pura e a natural claridade do dia; a luz do Sol não nos custa nada; e aceitamos comprar a preço muito alto o brilho que, se não for falso, é pelo menos duvidoso, de uma pedra preciosa. Não há nada de mais belo do que o azul do Céu, que a verdura dos campos; e preferimos, no entanto, a estas duas cores, tão vivas e brilhantes, um pedaço de pedra que só tem uma tintura que representa aquelas cores tão imperfeitamente. Um engano semelhante colocou a honra em meio à abundância dos bens; ligamo-la à posse de riquezas. Disso procede que aqueles que têm muito recebem o respeito e a submissão de todos; são o objeto da reverência pública e são considerados com veneração. E, para vós, quem são essas pessoas a quem rendemos respeito e submissão? Àqueles que sabem muito bem que não são dignos; àqueles que não ignoram que os avaros são abjetos e vis; àqueles a quem tudo o que se faça para honrá-los não os toca de forma alguma e é incapaz de tirar um centavo que seja de suas mãos. Numa palavra, àqueles que esperam que nada escape dele, de uma tão grande e vasta fonte. No entanto, são honrados como pessoas de excelente mérito, se não for apenas pelo fato, talvez, de crermos que eles têm tanto, a ponto de ter impedido, pelo ardor de deglutir o bem, que outros o tivessem adquirido, e não se tornassem malvados e injustos como eles; ou, quem sabe, sejam dignos de estima, por terem agido no sentido da salvação de outros, perdendo a si mesmos. A Opinião não nos deu mais verdadeiros sentimentos da morte do que do restante das coisas, no-la tendo apresentado como má, visto que ela [a morte; ndt], por si mesma, não o é de forma alguma, e somos somente nós que a tornamos assim. Nós nos enganamos sem dúvida ainda mais quando a imaginamos dura e terrível, porque, algumas vezes, ela é inesperada e repentina; e baseados nesta falsa persuasão, tememos o ferro, ficamos com medo do relâmpago. Certamente, teremos muito mais motivo para temer uma fruta crua; um cogumelo, um melão que nos causam cólica e, nos causando uma doença, prolongam em nós o sentimento da morte e, disso, nos faz acreditarmos que ela seja mais incômoda do que realmente é; enquanto que um golpe de espada, um raio, ao nos darem a morte logo, no-la dão sem dor e não nos deixa sentir mal algum. E, eu vos pergunto, quem é que não prefere engolir prontamente um remédio para não ter que sentir seu amargor? É ainda um engano deplorável estimar a vida mais pelos anos do que pelas obras; pela longa duração do que pelas boas ações. E este engano nos causa a tristeza extrema de não ver chegar inesperadamente a morte; de sermos surpresos antes que tenhamos tempo para pensar nisso; antes que tenhamos nos preparado para recebê-la. O mais ordinários e mais violento de nossos desejos é gozar a vida por muito tempo. E negligenciamos incessantemente as coisas que, sendo praticadas, causarão o efeito desse desejo. Queremos viver eternamente, e nunca pensamos naquilo que é preciso para isso; ou só pensamos para protelar isso, dia após dia. Deixamos para começar a viver, quando a morte já está à porta, quando já não somos mais capazes de fazer não apenas o bem, como também o mal; quando as forças do corpo e do espírito, vindo a falhar, nos deixarão inábeis para a Virtude, como também para o vício. Sem dúvida, possuímos a menor porção da vida; elegemos aquela porção que é a pior. Nós nos lamentamos da prontidão e da subtaneidade com a qual o tempo passa; mas não fazemos nada mais voluntária e ordinariamente do que perdê-lo. Dizemos que é muito curto; mas nos enganamos, pois ele não é curto de forma alguma; ou, se o for, é apenas por causa do pouco cuidado que temos em bem empregá-lo. Não arrumemos desculpas quanto a isso; a vida dura o suficiente, ela é suficientemente longa, para quem não é ocioso. Queremos começar a bem viver quando não temos mais tempo para isso, quando está na hora de pensar em bem morrer, quando já estamos na velhice. Certamente, se formos sábios, pensaremos nela antes que ela chegue; e quando ela tiver chegado, nossos pensamentos serão todos destinados para nos prepararmos para a morte.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 539-544.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Oitavo preceito - Capítulo II

CAPÍTULO II
Julgaremos falsa e enganadora a Opinião que temos das coisas; reformaremos nossos pensamentos e nossos sentimentos, se viermos a considerar a grandeza de nossa condição, se lembramo-nos que somos a imagem de Deus; será soberanamente feliz, sem riquezas e sem Volúpia; será cheio de glória, sem luxo e sem fausto; sua alegria precederá puramente de si; não buscará nada fora de si; e somente ele bastará. Depois disso, será que ainda somos tão pouco razoáveis a ponto de chamar de bens aquelas coisas que não pertencem a Deus e, sem as quais, ele permanece em sua suprema beatitude? Que coisas? Aquelas que são abundantes entre os malvados, possuindo as quais eles são miseráveis; as coisas que os animais mesmos possuem, e que não lhes fazem mais felizes. Será que ainda encontraremos alguém que, vendo que o soberano bem nos é proposto como a regra de todos os movimentos de nosso espírito e o fim ao qual devem aspirar todas as potências de nossa alma, ainda esteja tão enganado a ponto de acreditar que seja necessário buscar essa regra no vício? Ou que acredite que se chegue a esta regra através de más ações, pela infidelidade, pela fraude, pelo desregramento e pelas desordens que produzem, ordinariamente, as riquezas e as Volúpias? Verdadeiramente, esperar a felicidade da miséria é saber muito mal de onde ela vem; se prometer a felicidade pelas coisas onde ela não está, coisas que são absolutamente incapazes de no-la dar, que nunca serão capazes de estabelecê-la, e que, pelo contrário, a destroem; tudo isso, é saber muito mal de onde pode vir a verdadeira felicidade. No entanto, é um bem tão precioso e raro, desejado por todos, buscado mesmo pelos malvados – e, às vezes, o que é igualmente maravilhoso e deplorável é o fato de eles se tornarem malvados justamente para obtê-lo; eles renunciam ao bem para chegar até a ele; eles se tornam injustos e criminosos para se tornarem felizes. Mas, quão frustrados eles são quanto ao efeito de seu desejo? Quão vã é a sua expectativa? Certamente, eles se afastam tanto mais de seu objetivo, quanto mais imaginam se aproximar. Por um inevitável desprezo, crendo ir direto rumo à felicidade, eles irrompem e caem na miséria. Eu vos pergunto, de onde pode proceder isso, se não do fato de eles não irem pela boa via e nem sequer saberem qual é o verdadeiro caminho para a felicidade? Ora, será sabê-lo e mantê-lo sem dúvida, ir direto para Deus; considerá-lo como nossa suprema e última felicidade; buscar a abraçar a Virtude, que é uma felicidade que nos leva a outra, e que nos permite adquirir essa felicidade desde já, nesta vida. Para dizê-lo em uma só palavra, nos restringirmos à posse dos bens que dependem puramente de nós é estar em vista da chegada ao soberano bem. Talvez, me dirão: mas no que eles consistem? Certamente, em se submeter em todas as coisas à Vontade de Deus, e em lhe render uma inteira obediência; em amá-lo de todo coração; em buscar com todo o nosso poder os meios para agradá-lo e servi-lo. Através disso, adquiriremos infalivelmente a felicidade; e talvez até com a rara vantagem de nos tornarmos semelhantes a ele [a Deus; ndt]; de partilhá-la com ele. Através disso, aprenderemos a não nos ligarmos aos bens temporais e perecíveis. E da mesma forma como a linha não cresce pelos pontos, nem a superfície cresce pelas linhas, a felicidade também não aumenta pela quantidade de coisas que buscamos nesta vida. Considerando que Deus, que é o soberano bem, é constante e imutável; que ele é sempre o mesmo, que é eterno; nós excitaremos em nós a escolha pelos bens que são da natureza e da condição deste; que não são, mais do que ele, sujeitos à corrupção e ao perecimento; visto que não é pela posse dos bens da Fortuna que seremos felizes; visto que a alegria não está no meio do incômodo que ordinariamente a acompanha; visto que ela não se encontra absolutamente na inquietude que é uma seguidora infalível dela. E não pensemos que nos seja uma vantagem não conhecer seus defeitos, não creiamos que não saber que eles são caducos seja capaz de causar a nossa felicidade, que nossa ignorância possa estabelecê-la. Aqueles que embarcam num navio cujas madeiras são frágeis ou mal encaixadas não estão em segurança simplesmente por não saberem dos perigos aos quais estão se expondo. Não podemos também ser felizes apenas conhecendo sua instabilidade, na medida em que a certeza que temos disso nos mantém, finalmente, numa contínua apreensão pela perda. Dir-me-ão que, se ela chegar, não será preciso que eu tome cuidado; que, pelo contrário, é preciso que eu me console com o pensamento que, sendo, como são, vis, não vale a pena que eu me aflija. Sendo assim, como pode parecer que a felicidade, a mais nobre e mais preciosa de todas as coisas, possa ser encontrada em meio àquelas que não são dignas de nossa estima e merecem apenas o nosso desprezo?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 535-539.

Oitavo preceito - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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OITAVO PRECEITO
QUE o conhecimento das coisas Divinas aperfeiçoa o Entendimento


CAPÍTULO PRIMEIRO
Mas, enfim, eis o ponto aonde todos esses preceitos devem chegar; há um que compreende todos; é preciso reduzi-los todos a seu princípio. É do Céu que o Entendimento recebe sua mais alta e mais pura luz; aquela que repara seus descontentamentos; que o traz de volta de sua cegueira; que corrige todos os seus enganos [no original latino, Nieremberg cita nominalmente o político e pensador grego Teágenes (? – c. 480 a.C.); ndt]. É pelo conhecimento de Deus e das verdades eternas que vêm dEle, que é soberanamente esclarecido; é por ele [o conhecimento de Deus; ndt] que o Entendimento chega à perfeição ou a ela aspira. Ele afasta, ele dissipa as sombras e as nuvens que ofuscam a sua claridade; ele é a causa infalível de tudo aquilo que temos de alegria; é dele que vem absolutamente nossa satisfação; é de onde procede todo o nosso bem. Certamente, quem quer que conheça a primeira Verdade é, desde esse momento, perfeitamente instruído acerca de todas as outras Verdades; visto que, para bem dizer, elas são nada mais do que ramos dessa vara, riachos dessa fonte. Esta verdade suprema as produz e as governa. Ela lhes dá o movimento, como a Engrenagem Mestra dá movimento a todas as outras engrenagens. Elas se ajustam a ela como se fosse a sua regra. Ela é a medida das outras e o nível. Diócles, aquele Sábio Filósofo, porém mais sábio pelo estudo e pela prática da doutrina de JESUS CRISTO, do que daquela de Platão e de Aristóteles, disse de forma muito excelente que quem se afasta do conhecimento de Deus se encontra em meio à extrema malícia, ou em meio à extrema estupidez [trata-se de Diócles de Cnido, um filósofo platônico que só nos chegou graças a Eusébio de Cesareia, não encontramos informações precisas sobre este personagem; ndt]; é, para bem dizer, um Demônio ou um animal. Ele [Diócles; ndt] acreditou muito justamente, sem dúvida, sendo – como é – o fundamento sobre o qual se sustentam aquelas coisas que fazem a grandeza e a dignidade do homem – quero dizer, seu Entendimento – ele decai de sua dignidade, perde todas as suas prerrogativas e todas as suas vantagens, não possui mais nada do que possa se vangloriar, se este fundamento lhe faltar; ele cai na baixeza dos animais; ele se torna inferior a tudo o que há de mais vil. Dessa forma, se eleva a revolta da cobiça contra a Razão; dessa forma também, chega a revolta da parte animal contra a parte espiritual; chegam a desobediência e o transbordamento das paixões. Ora, eu vos pergunto, em que estado nos coloca esta desordem? Pode haver servidão mais vergonhosa e cruel do que aquela a que nos reduzimos? O meio infalível para evitá-la é ter o conhecimento de Deus. Ele causa a salvação do Espírito; ele coloca, ele conserva o Entendimento no mais sublime nível; ele lhe faz adquirir uma plena e perfeita luz. Mas, da mesma forma como é preciso ter os olhos sãos, a fim de ver com clareza; como é preciso purgá-los e curá-los de suas manchas e de suas doenças; é preciso, também, purgar nosso Entendimento de suas falsas persuasões e de seus erros; é preciso curá-lo da Opinião, que causa suas doenças e suas manchas; que o impede de agir com conhecimento, que lhe arranca o discernimento e se opõe, sem cessar, à liberdade de suas funções. A isso devemos, sem dúvida, dedicar todos os cuidados, pois é através disso que vemos ou, eu ousaria mesmo dizer, é através disso que vivemos; visto que ele [o Entendimento; ndt] faz a diferença entre aquilo que nos é salutar e aquilo que não o é; pois é ele que, estando são ou doente, nos dá boas e más habilidades; ele mantém o bom ou o mau estado de nossa vida; ele nos faz amar e seguir o bem; ele nos faz detestar e fugir do mal. Assim como é pela claridade do dia que vemos os objetos distintamente, é também pelo conhecimento de Deus que julgamos de forma sã as coisas. Mas, será nossa infelicidade, será nossa malignidade, para bem dizer, estimar menos a visão do espírito do que aquela do Corpo; não nos esquecermos de nada desta última e descuidarmos daquela; achar que é indiferente tê-la como não a ter [no original latino, Nieremberg diz mais literalmente: "Valetudinem corporis ii aestimant, qui carent; sanitatem animi, qui habent", ou seja, "Estimam a saúde do corpo aqueles que são privados dela; a saúde da alma, aqueles que gozam dela"; ndt].

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 533-535.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Sétimo preceito - Capítulo II

CAPÍTULO II
Ficamos contentes por conhecer o curso e a influência dos Astros. Aprendamos que, por mais sublime e excelente que seja o conhecimento a que chegarmos, nunca poderemos nos gloriar razoavelmente de sermos sabedores e, muito menos, de sermos Sábios, se não conhecermos nossa enfermidade natural, se ignorarmos os defeitos a que está sujeita a nossa condição. Certamente é por este conhecimento que deve começar nosso saber. E, sobretudo, porque, sem ele, tudo será imperfeito e inútil. Somos curiosos por novidades; corremos atrás de coisas extraordinárias e raras. E eu vos pergunto, pode haver algo de mais novo, de mais extraordinário e raro do que ver que largamos o vício e abraçamos a Virtude? Agrada-nos conciliar os diversos e contrários sentimentos dos Outros. Não faríamos, porém, melhor conciliando nossos próprios sentimentos? Arrancando a repugnância e a contrariedade de nossos votos e de nossos desejos? Queremos instruir e corrigir os outros, e não pensamos em nos instruir e nos corrigir. Afetamos saber aquilo que se faz no mundo, e não cuidamos daquilo que devemos fazer. Estudamos tudo, menos aquilo que nos permite conhecermo-nos melhor, menos aquilo que mais nos importa. Que julgamento se fará de nós e se poderá fazer além de um julgamento muito desvantajoso, se, sabendo que nossa casa pegou fogo e vendo que várias pessoas correm de várias direções para apagá-lo, nós não corrêssemos, e nos divertíssemos considerando a forma das asas de uma mosca, contando as patas de uma lagarta, distinguindo as cores da concha de um caramujo? Insensatos que somos! Nosso coração queima de cobiça; a ambição, a avareza e o resto das paixões são fogos que o consomem; e, no entanto, nosso pensamento não se dedica a remediar isso! Não deixaríamos a casa de nosso vizinho pegar fogo; correríamos para adverti-lo, e não o faríamos perder tempo contando absurdos. E não sentiríamos vergonha, num perigo mais eminente, de nos entreter com visões e sonhos, de não nos advertir dos males intestinos que nos afligem, e não pensar de forma alguma em prevenir e em entreter aqueles pelos quais somos ameaçados. Nós dissimulamos e escondemos de nós mesmos a Sentença de morte pronunciada irrevogavelmente contra nós, na pessoa de nossos primeiros parentes. Escondemos de nós mesmos as emboscadas que a Fortuna nos prepara incessantemente; as imperfeições e as misérias inseparáveis de nossa condição. É disso que precisamos nos informar, e sobre o que devemos conversar antes de todas as coisas: se nos é permitido satisfazer à inclinação natural que temos pelo saber, se nos é permitido adquirir outros conhecimentos, se antes não formos instruídos neste. Não deixemos nosso espírito correr atrás de coisas que só podem lhe causar dor; mas empreguemo-lo na busca por meios de evitar aquilo que nos pode causar a dor. Aprendamos a sofrer com constância as infidelidades e as malícias da Fortuna, que são devidas apenas a ela, sem excitar contra ela, como costumamos fazer, nosso ódio. Aprendamos a ser pessoas de bem; a nos fazermos amar por aqueles que o são; a nos conformarmos absolutamente à Vontade de Deus; a evitarmos, o máximo que pudermos, irritar sua justiça; a nos tornarmos dignos de sua graça. Para dizer em uma só palavra, é preciso estudar a Sabedoria. É o verdadeiro estudo, para não dizer o único, que o Entendimento deve abraçar. Pelo menos, é aquilo no que, preferentemente, ele deve se aplicar. Certamente, as mais sublimes ciências, sem esta, são inúteis e vãs, são más e perniciosas.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 530-532.

Sétimo preceito - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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SÉTIMO PRECEITO
QUE é preciso nos abster do estudo das ciências vãs e das curiosidades inúteis


CAPÍTULO PRIMEIRO
Visto que nosso desígnio sempre foi de reparar as desordens e as faltas que levam o Entendimento a pecar em relação à vontade, e de fazer esse Ministro absolutamente capaz das funções que essa Rainha espera que ele cumpra; chamaremos atenção, agora, a respeito de suas principais faltas, e em seguida vamos nos dedicar cuidadosamente a corrigi-las. Como se não fosse suficiente que ele se deixasse, de repente, surpreender pelas imposturas da Opinião, agir covardemente na conquista da Verdade, imaginá-la apenas sob Imagens falsas e lânguidas, ele ainda cai na infelicidade de correr atrás de sombras e fantasmas, encher-se de curiosidades inúteis, ocupar-se com especulações das quais, em geral, ele só tira o lamento de não ter encontrado aquilo que procurava, que são sem fundamento e não têm nem certeza nem solidez. Que loucura a nossa! Que nos leva a diverti-lo com empregos tão vãos e tão pouco dignos dele! Que nos leva a ocupar por nada aquilo que nasceu para as mais sublimes e nobres ocupações, aquilo que deve se elevar ao Céu e se ligar a Deus mesmo! Que erro! Aplicarmo-nos com tão grandes cuidados em uma ciência cujo fruto será nos tornar ociosos e preguiçosos! Que nos desviará daquilo que é absolutamente necessário que saibamos, ou seja, conhecer e fazer o bem! Que nos lançará, ou pelo menos nos entreterá na preguiça! O estudo da Virtude não é, de forma alguma, infrutífero, não é vão; é útil, é proveitoso. Para falar mais adequadamente, é não saber nada, saber apenas as coisas que não têm uso algum na vida; ser sabedor daquilo que não serve a nada é muito próximo de ser ignorante; ter vontade de aprender isso é faltar com a capacidade de julgamento e de razão, é não ser sábio. Não fingiremos em dizer que a ciência inútil não apenas não é boa, como também é má e perniciosa. E, ainda mais, ela é um obstáculo para aquela de que realmente tiramos proveito; ela nos torna negligentes na prática do bem, e nos faz, finalmente, cair no desprezo de nossa salvação. Sem mentir, o saber que só é bom para passar, e como se diz, para mandar, para enganar o tempo, é suficientemente falso e enganador. Seria entender mal o preço e a dignidade da ciência, pensar que ela só sirva para o deleite do espírito; ela não é feita somente para recreá-lo, mas também para curá-lo; seu verdadeiro uso não é para dissipar a dor, mas para corrigir o vício; ela não nos deve ser um divertimento, mas um remédio. Existirá algum doente que busca mais o prazer do que a saúde? É preciso que nos preparemos para a vida, da mesma forma como nos preparamos para uma viagem; visto que nós somos todos viajantes nesse mundo, e tudo o que fazemos é passar por aqui para irmos ao Céu. Não temos que nos sobrecarregar com equipamentos preciosos, mas tão somente do mais útil e do mais necessário. É preciso nos prover de salutares conhecimentos, que nos preservem dos ultrajes da Fortuna, da mesma forma como nos provemos de roupas que nos garantem das injúrias do ar. É ser sábio ao mais alto grau compreender a maneira de bem empregar o tempo, saber administrá-lo, não perder nenhum momento sequer, empregar até a menor parte de tempo; assim como conseguir impedir a sua prontidão e a sua ligeireza através da constância e da firmeza de nossa dedicação. A ciência tem como objetivo as coisas úteis e honestas; ela é do mesmo nível e obra mesma da Virtude. Ora, ela decai dessa honra, assim como se afasta de seu objetivo, se ela se dedicar a ocupações frívolas e inúteis. A Virtude a repudia e a bane do número das coisas que lhe pertencem; ela a subtrai do seu meio e de sua família, por assim dizer. Sem dúvida, a Sabedoria é o mais precioso ornamento do espírito, é o mais belo, o mais precioso e mais rico adorno. Mas, no entanto, adquiri-la não nos será difícil se quisermos ser realmente sábios, e não nos contentarmos em sê-lo apenas aparentemente; se buscarmos uma virtude real e sólida, e não uma virtude de amostra e de ostentação. As coisas de que realmente temos necessidade não nos custam nada para serem encontradas, se não nos distrairmos buscando aquelas que nos são inúteis. Aquilo que nos é necessário consiste em muito poucas coisas; e a aquisição delas não é difícil. Assim como a Vontade não será mais feliz por desejar muito, também o nosso espírito não será mais satisfeito por saber muito. Esta avareza de conhecimentos não é menos perigosa do que aquela das riquezas de objetos. Aquele é sábio não na medida em que sabe muitas coisas, mas na medida em que sabe aquelas que servem e das quais se tira algum proveito. Aprendamos a viver e não a falar; façamos fundos de boas e salutares ações, e não de belas e delicadas palavras. Protejamo-nos, assim, desse tipo de estudo que nos leva à ociosidade. Apliquemo-nos àquele estudo que produz e que mantém a Virtude; que nos faz conhecer a diferença entre o bem e o mal, que nos faz odiar e fugir deste, que nos faz amar e abraçar a outra.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 526-530.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Sexto preceito - Capítulo II

CAPÍTULO II
Quanto aos males cuja amargura passa com o tempo, que os moderou e matou, sem dúvida a lembrança nos será muito útil também; dela colheremos esta infalível vantagem: ressentir bem pouco daqueles que nos afligirem, pela comparação que faremos com aqueles do passado, que só eram tão grandes por causa de nossa Opinião, sendo, às vezes, até mesmo muito menores, não somente por não nos causar nenhuma dor, como também por nos dar alguma alegria, pela segurança que teremos de sofrermos menos e poder sofrê-los com mais facilidade. Através disso, aprendemos que o verdadeiro caráter do Sábio é ser capaz de se lembrar das coisas passadas, se dedicar às presentes e se preparar para aquelas que virão [no original latino, Nieremberg cita, nesse ponto, um trecho de Ésquilo; ndt]. É preciso, portanto, que façamos uma exata consideração sobre o passado, para não cair no inconveniente de perder o inestimável fruto que deve vir disso; e não incorrer na censura de ter envelhecido inutilmente e não ter adquirido conhecimento maior do que aquele com o qual viemos ao mundo. É preciso prever o futuro e nos prepararmos para ele, para não encurtar voluntariamente a nossa vida, visto que viver sem estudar e sem conhecer as coisas futuras é morrer antes do tempo; é cortar, por nossa falta, aquela porção da vida que nos resta ainda. É, para bem dizer, nos encerrar vivos na tumba. Devemos nos lembrar que somos mortais, mas não é necessário que nos imaginemos já mortos. Certamente, se nos preparamos para sofrer, aprendemos a não sofrer. Se estudamos a maneira correta de suportar a infelicidade, nós nos garantiremos e iludiremos nossa miséria. Pensemos que os males que não nos afligem agora e que não estão presentes nesse momento, já estiveram antes, e que alguém já os ressentiu. Pelo contrário, imaginemos que aqueles que nos fazem sofrer hoje, passarão como todos os outros passaram, que, algum dia, eles não existirão mais. Ora, se eles foram vencidos pelo tempo, será que não deveriam ser ainda mais seguramente vencidos pela Razão? Será que ela não é mais forte do que ele? Será que nós acreditamos que ela tenha menos potência do que ele? Tendo colocado no esquecimento muitos males, seríamos muito fracos de nos deixarmos vencer pela apreensão de tão pouco. Como perdemos a memória desses males, não nos será difícil perder o temor. Aqueles que nos acolhem agora não são mais estranhos do que eram aqueles que nos acolheram no passado; o tempo que nos livrou daqueles nos livrará, nos curará destes; eles passarão e irão embora por si mesmos.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 524-526.

Sexto preceito - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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SEXTO PRECEITO
QUE podemos fazer bom uso de nossa memória para não sermos surpreendidos pelos males

CAPÍTULO PRIMEIRO
Em seguida [no texto que vimos usando, o tradutor nomeou este preceito como sequência dos "preceitos particulares contra a opinião", no entanto, no original latino, Nieremberg nomeia este como sequência do "Quinto preceito"; optamos, portanto, por manter a proposta do autor; ndt], vamos nos instruir acerca de um novo remédio que não tem menor eficácia do que o precedente no que diz respeito a impedir de sermos surpreendidos pelos males, e para nos dar meios de ressenti-los pouco quando eles nos chegarem. Trata-se de pensar naqueles que sofremos antes, de colocá-los em parte outra vez na memória e, em parte, bani-los, suprimi-los, enterrá-los num eterno esquecimento. Como há aqueles que não são de forma alguma enfraquecidos pelo tempo, que não passam com ele, e que só fazem se endurecer quanto mais duram, sem dúvida é preciso, para sempre, condenar o pensamento sobre eles, defender nosso espírito absolutamente de nunca mais representá-los. Se, por uma certeira e infeliz comichão de nos afligirmos a nós mesmos não conseguirmos deixar de pensar em nossas infelicidades passadas, sentimos algum prazer em descobrir nossas chagas e chega mesmo a parecer que queiramos torná-las incuráveis e mortais, então, certamente, é preciso fazer com que nossa Razão aja poderosamente, a fim de dissipar nossa dor; é preciso que ela se dedique com todas as suas forças no sentido de esclarecer as nuvens que se elevaram em nosso espírito, e se dedique também a apagar as malvadas imaginações que nos são suscitadas. Se ela não conseguir, que tenhamos a habilidade de opor a elas outras imagens agradáveis, combatendo nossa tristeza presente através da lembrança de nossa alegria passada, pensando nas coisas que felizmente conseguimos e das quais recebemos consolação e prazer. O feliz efeito deste artifício é suficientemente justificado pelo exemplo daquele famoso Escravo que tremia de alegria nos tormentos, e que suavizou o rigor de seu suplício pela satisfação de ter vingado a morte de seu Mestre [o original latino faz referência a um certo Asdrúbal, mas não está claro a qual se refere, visto haver uma grande quantidade de personagens da história de Cartago com esse nome; ndt]. Mas, esse remédio só serve para os espíritos fracos e tímidos, para aqueles que não têm a coragem de sustentar a abordagem e a presença dos males. Ser-nos-á muito útil também formar a imagem das prosperidades que podem nos chegar, deixar que nosso espírito passeie por toda a extensão dos, por assim dizer, vastos campos da esperança; concedendo-lhe um prelúdio dos bens que pode receber no futuro. E é nisso que terá seu uso, mas um uso inocente e legítimo, a doutrina daquele engenhoso artesão das Volúpias, Epicuro, que queria que não tivéssemos nem lembranças nem pensamentos acerca dos males, mesmo quando fôssemos o mais fortemente afligidos por eles. E que, em meio às cruzes e às perseguições da Fortuna, nosso espírito concebesse incessantemente a Ideia de coisas prazerosas e se entretivesse com aquelas que podem enchê-lo de regozijo. E, para dizer a verdade, quem nos pode impedir de prolongar nossa alegria para além de seus limites naturais? Visto que o podemos, muito facilmente, fazer através da lembrança e dos discursos. Sirvamo-nos desse meio infalível que temos para saborear dela outras tantas vezes quanto nos aprazer; esse meio de fazê-la voltar todas as vezes que quisermos; visto que este meio é tão fácil de empregar que, para praticá-lo, só nos é preciso a imaginação e o pensamento.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 522-524.

III Preceito particular contra a opinião - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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PRECEITOS PARTICULARES CONTRA A OPINIÃO
TERCEIRO PRECEITO
QUE é preciso sentir apreensão através da razão e não imaginar motivos de temor

CAPÍTULO PRIMEIRO
Mas, é preciso sobretudo tomar bastante cuidado para que esta previdência dos males que nós recomendamos tão expressamente, e que é um soberano antídoto, proceda da reta persuasão do Entendimento e não de seu erro; que ela venha da razão pura e sã e não da imaginação desordenada e corrompida. Sem dúvida, há diferença entre o que é e o que somente parece ser; entre a verdade e a mentira. É preciso exatamente premeditar tudo aquilo que a Fortuna tem de meios para nos causar alguma pena; tudo o que sua injustiça e sua malignidade podem colocar em prática para nos afligir. Mas, levar nossa previdência e nossa apreensão para além disso é certamente nos atormentarmos voluntariamente, é encontrar com prazer motivos para nossa tristeza e nossa dor. Como o mais excelente remédio praticado fora de hora não apenas não faz bem como é capaz de causar o mal; da mesma maneira, só sofreríamos muito com as apreensões que nosso espírito conceberia sem necessidade; e a previdência das infelicidades, nos sendo muito salutar quando vemos que seremos acolhidos por elas, é muito prejudicial quando é fora da aparência com a qual elas nos chegam realmente. É preciso, portanto, que nossa apreensão seja justa, seja judiciosa, tenha um fundamento legítimo e que seja declarada pela Razão. De outra maneira, qual seria a nossa pena por estarmos perpetuamente alarmados pelas ilusões e pelas quimeras? Temermos todos os fantasmas que uma imaginação ferida e doente pode formar? É disso que nasce a necessidade, pelo contrário, de desviar nosso espírito muito cuidadosamente; de evitar a premeditação onde não temos nenhum motivo de apreensão, onde aquilo de que se tem apreensão é vão, na medida em que é imaginário e não vem de nós, e por isso vai embora do mesmo jeito que chegou, passa e se destrói a si mesmo; o remédio não é de forma alguma necessário para quem se porta bem, para quem só está doente pela imaginação. Será que não temos piedade alguma por aquele Grego cuja vida foi apenas um contínuo horror por tudo aquilo que não é capaz de causar horror algum? Que sentia apreensão, indiferentemente, por todas as coisas? Para quem o ruído do vento, o movimento das folhas de uma árvore, o latido de um cão, o canto de um galo, o relincho de um cavalo, e outras motivações ainda mais ligeiras lhe davam febre e eram percebidas por ele como desígnios e conspirações contra a sua pessoa? Que não se cria em segurança num quarto bem fechado, e sob um manto de ferro com o qual ele se cobria dia e noite? [no original latino, Nieremberg escreve: "Artemonem infelicem fecit stulta inanium periculorum formido. Plus laceravit illum supervacua cura, quam ipsa discrimina vexatent. Cassandrum examinavit timor statuae". O que poderia ser traduzido da seguinte forma: "Artemão ficou infeliz por causa de um temor louco por vãos perigos. Mais infeliz é aquele que se atormentou por uma diligência supérflua do que o foi de fato vexado pelos mesmos perigos. Cassandro desanimou com medo de uma estátua". Estamos, pois, diante de dois personagens: um é Artemão, um engenheiro grego que viveu no século V a.C.; o outro é Cassandro da Macedônia (350 a.C. – 297 a.C.), filho do general macedônio Antípatro (397 a.C. – 319 a.C.), foi Rei da Macedônia entre 305 a.C. e o ano de sua morte, tendo fundado a dinastia Antipátrida. Segundo o historiador Plutarco, Cassandro, tendo passado perto de uma estátua de Alexandre o Grande, em Delos, teve sensação de desmaio; ndt]. Sem dúvida, ele sofreu muito mais com esta perpétua e vã apreensão, do que ele teria sido se tivesse sido atingido por todos os males que ele imaginava. O que diremos daquele outro infeliz que não conseguia se sentir seguro diante da visão de uma Estátua? Sua imaginação é que lhes causava pena; ela os persuadiu que eles não poderiam encontrar segurando em lugar algum, que as Cidadelas mais fortes, as torres de bronze, por assim dizer, os asilos mais invioláveis, não o eram para eles, visto que todas essas coisas não conseguiam defendê-los deles mesmos, e visto que eles não conseguiam preservá-los do mal que sua fantasia desordenada lhes suscitava. E verdadeiramente como só ela está doente, somente ela deve ser tratada, somente ela precisa de remédio. E, sem dúvida, é suficiente remediá-la, mais do que se encher de cuidados; principalmente quando a cura será tão difícil, visto que, aparentemente, não há nenhuma segurança nesse empreendimento, e visto também que por mais poderosa que seja a Razão, ela parecerá sempre incapaz de conseguir vencer. Porque, que resistência e que pena lhe causam um espírito que entra na sombra de todas as coisas? E, além do mais, não saberemos nós que é quase por milagre que se curam aqueles que são possuídos por uma Opinião envelhecida e fortalecida pelos tempos? Assim, por mais cuidado que se possa ter para lhes fazer conhecer a injustiça de suas suspeitas, por mais que se lhes faça ver que suas apreensões são vãs e sem fundamento, não conseguimos vencer seu espírito [da Opinião; ndt] e, então, eles se abandonam a isso mais fortemente, eles o temem e o multiplicam. Por mais que se lhes mostre as coisas evidentemente seguras e inocentes, eles as têm todas por suspeitas e por perigosas; sempre há, para eles, algum acidente sinistro que os ameaça; algum incômodo encontro que deve acontecer infalivelmente. Na verdade, se há algum remédio para eles, ele só vem do tempo; tudo o que é preciso esperar é o Médico das doenças desesperadas. E é isso que, agora, iremos fazer: não fazer coisa alguma a esse respeito, deixá-los até ao ponto de sua loucura passar e que eles voltem a si e que se tornem capazes de receber os conselhos da Razão. Se acontecer, portanto, que nosso espírito se ligue a uma imaginação triste e funesta, cuidemos de nos divertir tentando contradizê-la e combatê-la; nisso, é preciso que nos governemos da mesma maneira como fazemos com os impertinentes, que disputam obstinadamente sobre qualquer coisa e não conseguem parar com nenhuma razão. Como se deixa que falem tudo sem responder a nada, e como se vence melhor a eles pelo silêncio do que pelo discurso, não precisamos nos dedicar a refutá-la e convencê-la [à imaginação triste e funesta; ndt]; mas, de fato, tudo o que é preciso fazer é desviar nosso espírito dela, com medo de que, vindo a escutar e se prender a alguma de suas palavras, ele se deixe persuadir por ela. É preciso sufocá-la ao invés de respondê-la; tratá-la como se tratam os frenéticos, que são amarrados e trancados para que não façam mal algum. É preciso reduzi-la até ao ponto de ser vencida pelo tempo, se não puder ser vencida pela Razão. Eis o verdadeiro remédio contra esses terrores vãos e pânicos, que nos fazem não saborear os desígnios generosos, que nos desviam das boas ações, e nos impedem de progredir na Virtude. Eles [esses terrores vãos e pânicos; ndt] se ligam, ordinariamente, aos espíritos enfermos e doentes. Depois de lhes ter abalado os sentidos, eles abatem tão fortemente sua coragem que, para levantá-la outra vez e mantê-la na posição direita, é preciso apresentar-lhes um valor artificial, esconder-lhes o perigo, para que, não o conhecendo, eles ajam com mais resolução e não sintam nenhuma apreensão. Sem dúvida, há muitos homens que não são valentes, porque são temerários; e há homens que não têm medo porque que não têm julgamento. Este artifício não deve, porém, excluir inteiramente a assistência da Razão; é preciso empregá-la, quando o espírito voltar do terror que lhe havia feito sair de si mesmo. Porque, enquanto ela não o possui, será inútil empregá-lo. É inútil agir pela via dos conselhos e das exortações com um homem que está violentamente transportado pela cólera; é preciso esperar que ela passe, que seu sangue esfrie, e que o tumulto que se levantou em seu espírito se acalme.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 517-521.

sábado, 8 de janeiro de 2011

II Preceito particular contra a opinião - Capítulo III

CAPÍTULO III
O soldado, em meio à guerra, o que mais espera além das feridas? O que mais poderia esperar além de golpes, um Atleta que está no liceu? Mas, as Armadas escaramuçam antes de se encontrarem no campo de batalha; elas fazem como que ensaios de suas forças antes de combaterem seriamente. Não se tira da bainha a espada que não se sabe usar; não se vai ao campo, se antes não se esteve nos lugares de esgrima. A Fortuna é uma poderosa e perigosa adversária contra a qual devemos combater; temos que esperar dela apenas feridas; mas, antes de entrar no combate com ela, é preciso que aprendamos a nos defender de seus golpes, é preciso que saibamos a forma de nos desviarmos e de nos defendermos. Um Ateniense tendo que se bater num duelo contra um Coríntio, e que se cria muito inferior em força e em habilidade ao rival, pintou-o para si mesmo tão furioso que parecia que ele nunca poderia dar conta. Quando eles se apresentaram um ao outro, vendo-o muito menos terrível em pessoa do que havia pintado, e muito inferior àquilo que ele se havia figurado do rival, ele não teve nenhuma apreensão e se tornou corajoso até ao ponto de não ter dificuldade alguma para vencê-lo [no original latino, Nieremberg não refere esse fato; ndt]. Outro, não podendo se persuadir de ir à guerra, porque havia pensado nos perigos tão grandes e tão frequentes da guerra, a ponto de imaginar que sempre se morre na guerra e que toda e qualquer flechada derruba todo e qualquer homem, tendo se desenganado através de uma experiência contrária, tirou esta vantagem de seu erro: se não a vantagem de desprezar o perigo, pelo menos a de não o temer [também esse exemplo não consta do original latino; ndt]. Devemos pintar a Fortuna para nós da forma mais furiosa e temível que ela possa ser, para que não nos assustemos com ela quando se apresentar diante de nós, e para que adquiramos a coragem através da diferença que encontraremos entre aquilo que pensamos e aquilo que ela é verdadeiramente. Da mesma forma como acontece na prática que temos com os animais mais selvagens, a verdade é que, lidando com eles, eles se tornam tratáveis e familiares. Da mesma forma acontece com o objeto mais desagradável e hediondo: ele deixa de sê-lo e não nos dá mais medo quando nós o temos frequentemente diante da vista. Não teremos medo algum dos males que uma séria premeditação nos tiver frequentemente representado. Sem dúvida, aquilo que eles têm de terrível, não o é; eles o retiram de nossa Opinião; é somente ela que lhes dá esta aparência e esta máscara que nos assusta [no original latino, Nieremberg termina essa argumentação dizendo: “Hanc merito Lamiam vocavit Socrates”, que poderia ser traduzido assim: “esta mereceu ser chamada, por Sócrates, de Lâmia”. Trata-se de uma referência a um monstro da mitologia grega, que tem bela aparência, mas ataca os jovens e lhes suga o sangue; ndt]. A armada do último Rei da Macedônia que foi vencida e levada em triunfo pelos Romanos, perdeu inteiramente a coragem à vista de uma grande obscuridade que cobriu repentinamente o Céu e fez como que uma noite em pleno dia [no original latino, Nieremberg, nomeia a armada de Perseu; ndt]. Os Romanos, pelo contrário, que já haviam sido avisados por seu Capitão da causa desse efeito, que era apenas uma falta da luz do Sol por causa da interposição da Lua entre ele e a Terra, não somente não se alarmaram, mas souberam muito bem fazer bom uso dessa situação. Por um acidente semelhante, e por uma ignorância semelhante acerca da causa que o produzia, a Armada de Nícias [trata-se do general ateniense Nícias (c. 470 a.C. – 413 a.C.), que atuou na Guerra do Peloponeso; ndt], um dos maiores homens da Grécia, tendo se assustado e fugido, obscureceu e eclipsou a glória desse Capitão. Certamente, como o favor da Fortuna desaparece e se esconde repentinamente; como ela tem suas falhas e seus eclipses, não nos será menos vantajoso preveni-los, como o é para os Astrólogos que preveem os eclipses do Sol. E quando nós os virmos acontecer, não nos surpreenderemos e não cairemos em desordem.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 514-516.

II Preceito particular contra a opinião - Capítulo II

CAPÍTULO II
Foi por meio desta vantagem que aquele entre todos os homens que mais sofreu [no original latino, Nieremberg cita Jó; ndt], sofreu tudo com muita constância e mereceu ser eternamente proposto como um perfeito modelo de paciência. Por mais que seus males lhe viessem muito repentinamente e muito de uma vez, de forma que ele quase não havia um momento de intervalo entre um e outro, eles eram, para ele, lentos e preguiçosos; achava-os tardios, visto que ele os esperava há muito tempo, visto que ele estava preparado desde o princípio, e visto que ele já os havia sofrido com antecedência. E, para falar bem a verdade, nisso ele foi admirável e fez parecer uma alta resolução, e meio a uma profunda miséria; quando à perda de todos os seus bens juntou-se uma infelicidade infinitamente mais sensível e que, normalmente, faz com o que o comum dos homens sinta como a última provação – a morte de todos os seus filhos –; quando num só instante ele se viu despojado de todas as coisas; quando ele foi colocado completamente a nu, como que para nadar no sangue que uma chaga universal fazia escorrer de seu corpo; ou quando, em meio a prosperidades, num estado de felicidade e de florescimento, tudo isso parece não ter mais fim, e então os mais prudentes e aqueles que se seguram o mínimo possível nas coisas do mundo que estão menos estabelecidas julgam que a ruína seja impossível e que podem desqualificá-la e que não serão acolhidos por tantas e tão repentinas desgraças; ele, pelo contrário, se persuadiu daquelas que a mais célebre miséria não havia ainda conhecido e sobre cujo rigor extremado da Fortuna parecia não poder ser notificado. No cume de bens e honras no qual ele se encontrava, ele formava para si mesmo imagens das calamidades nas quais ele poderia cair; a imensidade de vantagens que a Fortuna lhe havia conferido não o impedia de se representar os males infinitos que ela lhe poderia causar. Que proveito acreditamos que possa vir deste pensamento? Certamente, este, que é incomparável: receber, com um espírito tranquilo e sem nenhuma surpresa, aquilo que desespera o comum dos homens, aquilo que desconcerta os sábios, aquilo que arranca o coração dos mais resolutos, aquilo que abate, ou pelo menos abala, os mais constantes. Esta expectativa pelos males lhe trouxe esse bem maravilhoso: por mais estranha que fosse a mudança de sua condição, ele a recebia sem incômodos, ele não mudava seu rosto. Não nos surpreendamos com isso. Sua contenção, ou para melhor dizer, sua timidez na boa Fortuna, construiu a sua coragem na má Fortuna. Como ele sempre havia sido desafiado por aquela, ele não foi surpreendido por esta; ele não a recebeu, porque sempre havia recebido a outra; nada lhe aconteceu que ele não tenha sempre crido lhe poder acontecer e que ele não estivesse esperando que acontecesse. Ele dizia: se qualquer resolução igualmente estranha e imprevista faz com que eu desça desse nível que fez com que eu conseguisse o respeito e a obediência de um tão grande povo; se aquilo que fortalece minha grandeza e minha autoridade, minhas riquezas, fosse levado embora; se acontece que eu seja despojado dessas coisas de alguma outra maneira; se esta incontável quantidade de ovelhas que cobrem os campos se perdesse e morresse toda de uma só vez; se o fogo do Céu caísse sobre elas e as devorasse todas juntas, além do ovil e dos pastores; se esse fogo reduzisse a cinzas as minhas casas, ou se um tremor de terra fizesse delas ruínas deploráveis; se o apoio de minhas esperanças e de minha alegria, meus filhos, fossem enterrados; se um dilúvio de males, vindo a se derramar sobre mim, envolvesse com minha fortuna a minha pessoa mesma; se eu sofresse e fosse atingido por dores insuportáveis; se fosse necessário que eu bebesse essa amargura em várias goles e diversas vezes, mas de uma só vez e no mesmo fôlego; se essas desgraças me chegassem todas de uma só vez e em menos tempo do que eu pudesse imaginar; tendo perdido tudo, até mesmo aquilo que pudesse cobrir a nudez do meu corpo, e ele ficasse exposto a todas as injúrias do ar; não tendo mais onde ficar, tenha que procurar moradia num sepulcro e me enterrar em vida; ou que me faltando até mesmo um sepulcro, seja obrigado a ir me esconder numa gruta ou até mesmo em alguma fossa; que, de então em diante, toda a minha família fosse como os vermes que se alojam em minhas entranhas; que ainda vivo eu fosse roído e assim a ordem da Natureza mudasse para mim e ela fosse, para mim, não menos inimiga e cruel do que a Fortuna; que todas as coisas me fizesse faltar e que até eu mesmo faltasse a mim; que, depois de tudo isso, eu não recebesse nem apoio nem consolação daqueles de quem eu mais deveria esperar receber; mas que eu fosse oprimido por suas censuras e suas injúrias, e me tornasse o refugo e o objeto de desprezo; o que seria, no entanto? Eu não cairei em desordem; eu não perderei em nada a tranquilidade de meu espírito; nada acontecerá que me surpreenda ou que eu já não esteja esperando, não somente todos os dias, mas todas as horas, todos os momentos; eu estarei firme em meio aos mais rudes ataques da Fortuna; conservando a vantagem de não sucumbir a minhas infelicidades, conservarei o que vale mais do que minha grandeza e minhas riquezas; serei poderoso e feliz, não sendo mais nem um nem outro; não serei menos satisfeito em meio à minha extrema miséria do que eu seria se estivesse em meio ao máximo de minhas prosperidades. Eis quais eram as meditações desse Herói; eis de que maneira ele se preparava e se fortalecia contra a má Fortuna. Ao mesmo tempo que ela derramava sobre ele todos os seus bens, que ela o acariciava o mais ternamente que lhe é possível, e que ela o carregava como que entre seus braços, ele a repreendia dentro de si e mantinha o pé em sua garganta; ele a considerava, ele a tratava como inimiga mortal, enquanto ela o tratava como amante e favorito. E da mesma forma que os valentes Capitães formam, durante a paz, uma imagem em si da guerra, praticam os torneios e outros exercícios que a representam; Jó também, figurando para si os males que lhe poderiam chegar e os esperando a qualquer momento, se preparava contra eles e estudava, em meio a maior de suas felicidades, as formas para combater e vencer sua miséria. Será que poderíamos desejar um exemplo mais digno para nos excitar na prática desta máxima tão salutar? Aprendamos de Jó a arte de suportar com um espírito firme e igual, as desigualdades da Fortuna. Quando nós a tivermos propícia, esperemos a rigorosa. Suas mudanças não nos surpreenderão e não nos causarão mal algum. A adversidade que se espera não é mais adversidade quando ela chega; ela perde tudo o que tinha de mais duro, não tem mais nem rudez nem acidez. 

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 510-514.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

II Preceito particular contra a opinião - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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PRECEITOS PARTICULARES CONTRA A OPINIÃO
SEGUNDO PRECEITO
QUE é preciso esperar os males

CAPÍTULO PRIMEIRO
Mas, além daqueles males que procedem das ações e das coisas, que são os elementos de fixação e de conseqüência dos males – uns não devem nunca ser motivo de apreensão, porque são inevitáveis; os outros devem sempre ser esperados, porque sua vinda é incerta; de outra forma, nossa miséria nunca teria fim, ou seria pelo menos tão grande que ultrapassaria nossas forças e nos seriam insuportáveis; visto que as primeiras nos fariam sofrer um temor perpétuo e as outras, vindo as nos surpreender, nos seriam muito sensíveis e amargas –, é preciso abrir cuidadosamente os olhos sobre tudo o que a Fortuna pode praticar para nos causar pena; é preciso pensar nos dardos mais perigosos de que ele pode se servir. Certamente, pensar que alguém se possa prometer bens maiores do que males é próprio de um espírito mais imprudente do que ousado, mais temerário do que resoluto. Não é próprio de um homem são imaginar que os primeiros sejam em maior número que os outros. A quem a experiência cotidiana já não mostrou justamente o contrário? Será que não sabemos que nos vêm calamidades e desgraças de todos os lados? Será que não sabemos que, sendo, como são, em tão grande número e de tal forma propagadas, a ponto de podermos dizer que a Terra é toda coberta delas, não é de se maravilhar que nós as encontremos em todos os lugares e que elas nos atinjam a todo o momento? Sem dúvida, é preciso esperar, de modo geral, todos os males; não esperar ser isento de algum; às vezes, até mesmo, esperar tudo o que ultrapassa o poder e o uso da Fortuna. Pois bem, seremos enganados em nossa expectativa; os males que havíamos esperado não nos chegarão nunca. Não temos nunca dúvida alguma sobre aquelas aparências que nos causam desprazer; ninguém acredita que nos incomoda anular do estado de misérias de nossa vida aquelas [misérias; ndt] que não sofremos e possivelmente também as maiores que deveríamos ainda sofrer. Eu vos pergunto, o que perdemos por não ter deixado perdido o que pensamos haver perdido? Será que isso não é um proveito? Será que não conseguirmos repouso e alegria? É próprio de um espírito firme e constante estar preparado para toda sorte de maus encontros; ele deve imaginar sempre que não há nada de tão estranho que não tenha sido feito para ele, e que não possa lhe acontecer. Por mais prontamente que a má Fortuna ataque e por mais repentina que seja a aflição causada, ele a acusará, se não for de fragilidade e de covardia, pelo menos de lentidão e de preguiça. Esperando-a desta maneira, prever-se-á felizmente a sua chegada e ela não suscitará nenhuma infelicidade a quem chegar a dizer: “Chegastes bem tarde; esperei-vos por muito tempo; eu vos recebo sem incômodos; como foi sem temor que eu vos vi chegar”.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 508-510.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

I Preceito particular contra a opinião - Capítulo V

CAPÍTULO V
Desta maneira, o Sábio sempre tem aquilo de que precisa, e não se encontra nunca fora de seu objetivo; e nada de imprevisto lhe acontece, nada de inopinado, nada que o incomode e que seja capaz de lhe fazer perder sua alegria. Assim, o que quer que ele faça ou deseje, ele sempre o faz certo que nada nem ninguém está isento do poder da Fortuna; e, às vezes, ele chega mesmo a ter um certo respeito e reverência por ela; apesar de sempre a desprezar e não se ocupar em nada dela; ele não empreende nada nem nada estabelece baseado na confiança que o comum dos homens costuma ter. Ele lhe submete o sucesso de todas as suas esperanças, e todos os que se promete o faz com a condição de que ela não entrará em seu caminho e que ela consentirá. Ele se reconhece sujeito, da mesma maneira que no menor do povo, aos eventos humanos; mas ele não é, porém, infectado pelos erros do povo. Todas as coisas lhe chegam segundo a forma como ele as premeditou; e ele as premeditou da mesma maneira como elas lhe chegam. Ele deseja que elas passem da mesma forma como chegaram; ele as vê passarem como ele quis que elas passassem. Por mais que ele seja completamente decepcionado acerca do efeito de sua expectativa, ele sempre a realiza de alguma forma; tanto é assim que ele nunca coloca em dúvida que ele pudesse ser decepcionado, que sua expectativa pudesse ser enganada, que ele encontrasse obstáculo para a realização de seus desejos. Assim, pela segurança que ele tem acerca das malícias ordinárias da Fortuna, ele sempre as prevê todas, ele as torna impotentes pela previsão; ele só atingido levemente pelo lamento de ver suas esperanças vãs; porque ele nunca se apoiou nelas fortemente, a ponto de crer que elas seriam capazes de sustentá-lo; ele nunca apoiou nelas seus desejos, por mais leves e sem fundamentos que fossem, pois sabia que eles sempre se tornariam fumaça. Ele não ignora que não há nada que se possa esperar da Fortuna, além de sua malignidade e de sua inconstância; ele sabia que era errado pensar que aquilo que ele desejava aconteceria infalivelmente. Como, pelo contrário, ele sempre se desafiou quanto a isso; como seus desejos sempre foram modestos e moderados; como eles sempre foram tímidos e vergonhosos; ele não se surpreendeu de forma alguma com o fato de que eles não tenham sido respondidos; e só ficou um pouco tocado por isso; assim como ficaria muito pouco tocado se aquilo que ele tivesse prometido a si tivesse acontecido. Certamente, ele sempre será muito pouco enganado em sua expectativa; mas nunca será enganado no conhecimento que tem acerca das ligeirezas da Fortuna e do prazer que parece que ela tem em contrariar nossas expectativas, e zombar de nossas pretensões, e arruinar completamente nossas esperanças e nossos desejos.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 506-508.

I Preceito particular contra a opinião - Capítulo IV

CAPÍTULO IV
Portanto, é preciso premeditar os males, tanto para que não nos deixemos surpreender pela aparência daqueles que o Entendimento, seduzido pela Opinião, nos apresenta, quanto para nos prepararmos para receber os outros sem incômodo e não ficarmos assustados quando eles chegarem a nós. É preciso tratá-los com os eventos humanos, e fazer um pacto com eles para a segurança de nossa alegria, para que ela não seja alterada em nada; tê-los perpetuamente presentes ao espírito, meditar sobre eles seriamente, e nos mantermos sempre muito bem preparados para recebê-los. Escutemos, a este respeito, os Estoicos, que são os mais capazes para nos aconselhar a este respeito e nos conferir salutares habilidades: “Seja lá o que fizermos, é preciso examinar sempre com muita atenção, estudar cuidadosamente as consequências e as circunstâncias. Meditamos sobre uma viagem? Pensemos na pena e nos perigos que, ordinariamente, acompanham tais empreendimentos; coloquemo-los todos diante dos olhos; os incômodos e as fadigas que poderemos sofrer no caminho. E, quando algum deles nos chegar, digamos dentro de nós mesmos: eu não fui surpreendido de forma alguma com este encontro; por mais incômodo que ele seja, não atrapalha a tranquilidade de meu espírito. Quero conservá-la em meio aos mais desconhecidos acidentes; isso é o que eu me proponho soberanamente onde quer que eu esteja; é o objeto principal para o qual estou sempre visando; só me afastarei dele se sentir desgosto diante daquilo que me acontecer; não realizarei minha intenção apenas se me deixar levar pela impaciência e pela cólera”. Não há nada, até mesmo as ações particulares e menos importantes, em que esta precaução não deva ser absolutamente guardada, e na qual não sejam necessárias paciência e firmeza. Par isso, nos ajudará maravilhosamente, sem dúvida, o cuidado que tomamos em nos instruirmos acerca da condição das coisas nas quais ligamos a nossa afeição e que servem para o nosso prazer. Nós nos lembraremos que não há nada que dure muito, não há nada que não decaia ou que não pereça. Se amamos um vaso de cristal ou de barro, pensemos que ele é feito de uma matéria muito frágil; e será sem dor, ou pelo menos sem surpresa, que nós o veremos quebrado. Amando nossos parentes e nossos amigos, pensemos que tudo aquilo que teve um começo e que nasceu, deve ter um fim, deve morrer; é uma lei e uma necessidade, que não têm nem exceção nem dispensa. Aquele Filósofo a quem foram dizer que seu filho havia morrido soube muito bem colocar esta regra em prática [no original latino, Nieremberg cita nominalmente o filósofo Anáxagoras (c. 500 a.C. – 428 a.C.), afirmando que este filósofo, com este evento, comprovava o que fora dito por Epícteto (55-135) e por Eurípedes (c. 485 a.C. – 406 a.C.); ndt]. Ele não se afligiu em nada, não lançou nem suspiros nem lágrimas. Ele apenas disse: eu já sabia que ele havia sido concebido como um mortal. Esta mesma consideração manteve a constância de muitos homens excelentes em situações semelhantes [no original latino, Nieremberg cita: Péricles (c. 495 a.C. – 429 a.C.), Marco Calpúrnio Bíbulo (? – 48 a.C.), Quinto Fábio Máximo (? – 45 a.C.) e Lúcio Emílio Paulo (? – 216 a.C.); ndt]. Foi esta mesma consideração que os armou e os fortaleceu contra a dor que poderia lhes ser dada pela perda de seus filhos e de outras pessoas que lhes eram caras. Eles não precisaram de nenhuma advertência para saber que Deus, que dá a vida, pode tirá-la quando bem entender; da mesma forma que uma pessoa que empresta algo tem o direito de retomá-la todas as vezes que bem lhe parecer. Eles não se pegaram nem com o Céu nem nem com a Natureza, pois sabiam muito bem que nem um nem outra eram culpados por aquilo que os fazia sofrer; sabiam que não há motivo para imputar a eles a causa de nossa dor; mas que se deve imputar tão somente a nós mesmos, que vivemos no esquecimento e na ignorância daquilo que somos, que nos entretemos com uma imaginação vã de não sermos sujeitos à fatalidade da tumba. Assim, nossa credulidade nos engana e nos trai; somos atingidos antes mesmo que pensemos sê-lo. Certamente, ignorar que somos enfermos e mortais é uma grande loucura não se lembrar, ou nem sequer pensar nisso, é uma extrema fraqueza; mas, trata-se de uma impudência insuportável nos incomodarmos com isso e nos pegarmos com que nos fez isso. Outro grande personagem levou seu pensamento ainda mais longe do que o pensamento desse Filósofo e o encheu com sua sabedoria [no original latino, Nieremberg cita nominalmente o filósofo Xenofonte (c. 431 a.C. – 354 a.C.); ndt]. Como lhe disseram que seu filho havia morrido, ele tirou de sua cabeça a coroa de Sacrificador. Mas, como lhe disseram que ele havia morrido valentemente numa bela ocasião na guerra, tendo se enchido de honra, ele a retomou e não somente testemunhou consolação, mas também alegria; e a testemunhou com muito mais justiça, pois, com isso, dizia que não havia nascido apenas para viver, mas para viver com honra e adquirir glória; por isso, havia colocado no mundo filhos e, por isso, ele entendia que havia atingido seu objetivo e havia possuído seu desejo.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 503-506.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

I Preceito particular contra a opinião - Capítulo III

CAPÍTULO III
Agora, ser-nos-á fácil responder ao Filósofo que achava pouco razoável a máxima sobre a premeditação dos males [no original latino, Nieremberg cita nominalmente o filósofo Simplício da Cilícia (c. 490 - c. 560), que era neoplatônico; ndt]. Justificaremos muito facilmente que a objeção com a qual ele pretendia combater essa máxima era frágil e ela mesma pouco razoável. Ele dizia: representar em si os males quando eles ainda não existem, sem dúvida é fazê-los chegar mais cedo, é precipitar a sua chegada. Não somente esta premeditação não nos traz vantagem alguma, como também nos causa pena; ela faz com que soframos antes que nos seja necessário sofrer. E, como se já não fosse suficiente o mal que nos atinge, nós ainda suscitamos em nós mesmos um novo; fazemo-nos infelizes antes do tempo; antecipamos nossa miséria através de nosso pensamento. Será que não nos é suficiente ter problemas com a incapacidade de nos defendermos do mal quando ele chega contra a nossa vontade, e ainda termos que nos atormentar sem necessidade alguma? Será que nossos cuidados não seriam mais felizmente empregados se nos dedicássemos ao menos a diminuir nossa dor, ao invés de nos tornarmos engenhosos no trabalho de fazê-la crescer? O que diremos nós depois de termos ouvido este Filósofo, que nos aconselha a fechar nosso espírito às imaginações tristes e incômodas, e que quer que o tenhamos leve e livre de dores e de tristezas, e que arranquemos dele tudo o que possa lhe causar isso? Não apenas ele não aprova esta premeditação, como também ele a rejeita fundado no fato que, segundo ele, estaríamos, assim, continuamente com problemas, e poderíamos acabar nos resolvendo a nunca saborear a alegria, se fosse realmente necessário que tivéssemos no espírito, incessantemente, a Ideia das infelicidades que nos podem chegar. Certamente, os males são suficientemente sensíveis quando estão presentes. A amargura, que é inseparável de todos os males, quando eles estão presentes, nos é muito incômoda, sem que precisemos pensar nela antecipadamente e nos atormentemos fora de época. Se o mal não nos chegar de forma alguma, quão grande terá sido a nossa pena de nos termos atormentado sem necessidade? Quanta dor verdadeira sentiremos por termos sentido uma dor falsa e sofrido tão inutilmente? Eu vos pergunto, para que nos afligir sempre e nos condenarmos a uma perpétua miséria, seja pelo necessário sofrimento dos males, seja por esta importuna e cruel premeditação? Estes dois Filósofos pretendiam, assim, convencer acerca do erro dessa máxima [no original latino, Nieremberg cita também o filósofo Epicuro, e estranhamente o tradutor não faz referência a ele até a este ponto do texto; ndt]; mas, evidentemente, eles não se convenceram a si mesmos ao não considerarem que há muita diferença entre representar os males dentro de si, na preocupação e no incômodo do Entendimento e pintá-los de capricho e fragilidade para sentir medo deles, e representá-los com um espírito firme e tranquilo, para estudá-los e conhecê-los; de forma que seja possível se determinar firmemente a crer e saber verdadeiramente se são males ou não. Nisso, esta premeditação é excelente, visto ser por meio dela que fazemos este estudo e desmascaramos as coisas, arrancando delas esta aparência terrível que nós as fazemos ter. Assim, não apenas não se trata de fazer crescer o número dos males que é necessário que soframos, mas é diminui-los muito, é colocarmo-nos em uma situação tal que não nos permita sermos surpreendidos pelas imposturas da Opinião que, ordinariamente, nos alarma falsamente e oferece-nos matéria de temor onde só deveria haver motivo de desprezo. Numa palavra, trata-se de evitar felizmente todo o incômodo e toda a pena que ela nos suscita. Premeditando desta maneiras os males, tornamos infalível uma ou outra dessas vantagens, quais sejam: não encontrá-los onde imaginamos que poderiam estar e, se eles aí estão efetivamente e se é impossível nos defendermos deles, que pelo menos só sejamos atingidos levemente por eles. Dessa forma, nós os amolecemos na medida em que os consideramos; corrigimos sua amargura e enfraquecemos sua Violência. O que sabemos nós se o cuidado de estudá-los nos trará alguma daquela alegria de nos protegermos deles? Ou alguma habilidade para isso? Mas, se fossemos tão infelizes a ponto de que esta premeditação nos fosse inútil; se não pudéssemos nem evitar nem diminuir os males, então, certamente, haveria motivo para escutar o aviso do último desses dois Filósofos, que nos aconselhava a desviar nosso espírito dos pensamentos tristes e incômodos, visto que não nos virá outro fruto da premeditação de nossa miséria além da antecipação dela e do crescimento de nossa dor. Sem dúvida, é importante que aqueles que ainda não adquiriram a glória de uma constância experimentada contra os assaltos da Fortuna, não parem seu pensamento sobre os males presentes ou sobre os passados; sobre as chagas que sangram ainda e que ainda não cicatrizaram; para que uma muito grande apreensão de sucumbir ante os ataques desta poderosa inimiga não as faça desconfiar de suas próprias forças, quando ele vierem ao nosso encontro junto com ela [a Fortuna; ndt]; e não as desencoraje da prática do excelente remédio que nós lhes preparamos para encontrar os males menos rudes e menos excitantes. Será suficiente que algumas vezes eles se proponham aqueles que lhes podem chegar; para que, como os novos soldados que se endurecem nas ocasiões menos perigosas, eles adquiram pouco a pouco essa coragem e essa firmeza necessárias para os grandes combates. Fique certo, portanto, que é indubitável que considerar sem medo os males é desarmá-los, é aniquilá-los. Da mesma forma que ver uma flecha vindo de longe é conseguir evitá-la facilmente; assim também será como que tornar leve a ferida e fazer com que não seja mortal.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 499-503.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

I Preceito particular contra a opinião - Capítulo II

CAPÍTULO II
Além do mais, colheremos um duplo fruto desta premeditação. Ela nos dará o meio para nos protegermos das infelicidades e os afastará de nós; e se nos for necessário sofrê-las, ela nos fornecerá o bem de sofrê-las com paciência. Sabemos qual é o proveito que um Sábio da Grécia tirou do fato de ter previsto a fertilidade do ano [no original latino, Nieremberg cita Tales de Mileto (c. 624 a.C. – c. 558 a.C.); ndt]. Certamente, não é menor o proveito que vem da previsão da esterilidade da Fortuna, os poucos bens que temos que esperar e os espinhos que ela nos prepara. Nisso, encontraremos motivo para nos enriquecer muito mais do que aquele Filósofo. Com essa habilidade, adquiriremos o que há de mais precioso na vida, uma soberana tranquilidade. Assim como não é difícil evitar uma flecha quando a vemos chegar, sobretudo quando vem de longe, seremos capazes de nos garantir facilmente das afetações da Fortuna, quando as premeditarmos; não seremos ofendidos de forma alguma por elas, porque não seremos surpreendidos. Se for necessário que as infelicidades nos atinjam, ou se for impossível desviá-los de nós, pelo menos esta vantagem permanecerá conosco: tendo-as previsto, nós as enfraqueceremos. Da mesma forma que a água do mar se corrige e adoça passando pela terra, também é certo que, passando por nosso espírito, amassaremos a ponta de suas lanças e corrigiremos sua amargura. De onde vem, eu vos pergunto, que o tempo cura as dores mais violentas? Que ele seja o Médico dos mais duros incômodos? Que ele tenha remédios para os males que aparentemente parece não ter remédio? Sem dúvida é porque eles nos são sempre presentes, porque eles estão continuamente em nosso pensamento. Conhecemo-los, habituamo-nos a eles de forma que nos esquecemos o quão duros e terríveis eles são; nós nos acostumamos a eles; e a experiência explica por que não os sentimos mais, depois de os sentirmos por muito tempo. Assim como uma conversação muito livre diminui o respeito, também a familiaridade que temos com os males diminui em nós o respeito e arranca de nós a apreensão; e assim o uso faz em nós aquilo que a razão deveria fazer. A longa meditação é, para o Sábio, aquilo que o longo sofrimento é para o comum dos homens. Podemos pensar que ele [o Sábio; ndt] tenha sofrido os males sobre os quais ele tenha frequentemente pensado. Parece não apenas que ele tenha experimentado aqueles que poderiam lhe chegar, como também aqueles que podem chegar a outros; ele faz uma experiência geral, que o prepara para todo tipo de eventos, e de onde ele recolhe este excelente fruto que é o fato que, seja lá o que lhe acontecer, ele não achará nada infeliz e não se surpreenderá com nada. Ele disse: “Isso não me surpreende; este acidente, por mais infeliz que seja, encontrou-me pronto para recebê-lo; eu já o havia previsto há muito tempo; ele já estava em mim e não me chegou inopinadamente; eu não fiquei incomodado”. Eis o quão rara é a vantagem que lhe vem de sua premeditação. E certamente os males nos parecem muito maiores quando eles não nos dão tempo para considerá-los, e quando somos atacados por eles antes de que estivéssemos na defensiva. Com isso, nossa dor cresce pelo lamento que advém de nossa imprevidência. Afligimo-nos ainda mais quando pensamos que nossa infelicidade é fruto de nossa falta, quando nos damos conta de que poderíamos nos ter protegido e que estava em nosso poder evitá-la. Sem dúvida, as mudanças repentinas não causam menos mal ao espírito do que ao corpo; ele sofre muito com os ataques imprevistos. A Soberana Sabedoria que concedeu uma tão maravilhosa ordem a todas as coisas, e a concedeu para o bem do homem, não achou bom que ele tenha passado de um contrário a outro, e que não houvesse distância entre o inverno e o verão – não saímos de uma só vez do rigor daquele para os ardores deste; somos preparados através da doçura da Primavera, como de um temperamento necessário, para que nossa saúde não seja incomodada. A premeditação dos males nos prepara da mesma forma para sofrer sua violência; e disso recolhemos esta rara vantagem de não tomar por uma desgraça particular e que só acontece a nós aquilo que vemos acontecer a todos, e que sabemos ser infalível para a condição humana. Somos instruídos, através disso, a não ter por insuportável aquilo que muitas pessoas sofrem, e que é certo que todos os homens, indiferentemente, podem sofrer.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 496-499.

I Preceito particular contra a opinião - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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PRECEITOS PARTICULARES CONTRA A OPINIÃO
PRIMEIRO PRECEITO
QUE é preciso premeditar os males

CAPÍTULO PRIMEIRO
Mas, seria inútil pretender conquistar a Verdade sem nunca chegar a ela, deixando imperfeita a ruína do Império da Opinião, sua perpétua inimiga, e não tendo todos os cuidados necessários para nos libertarmos de uma tão cruel servidão. Mais atrás, nós nos instruímos acerca dos meios infalíveis para nos livrarmos dos males que ela nos suscita. Podemos dizer que nossa cura está, de agora em diante, em nosso poder. Mas, como os remédios que se tomam em plena saúde por precaução e tão somente para se confirmar na saúde são mais agradáveis do que aqueles que são aplicados na doença, por necessidade; como o soldado só espera se armar quando está no campo de batalha e na presença do inimigo; e como é próprio de um sábio Capitão não dormir durante a trégua, mas se fortalecer e se munir de tudo o que lhe for necessário para se defender; também nós devemos empregar a pausa que recebemos da Fortuna para nos colocarmos em condições de tornar inúteis seus esforços que virão; pensando, durante o tempo em que ela nos tratar bem e nos acariciar, nos truques, nas injúrias que ela nos pode infringir; formando, durante a calmaria, a imagem da tempestade; prepando-nos e nos esforçando para a nossa salvação; da mesma maneira que quando ela está próxima, e como se estivéssemos a ponto de sermos atingidos por ela. Praticaremos, aqui, a máxima que um Sábio da Antiquidade nos deixou [no original latino, Nieremberg também não nomeia este "Sábio da Antiguidade", apenas cita um longo trecho do referido autor; ndt]: premeditar cuidadosamente os males, persuadindo-nos de que eles são feitos para nós, bem como para o resto dos homens, crendo firmemente que não há mal algum que não possa nos atingir nesse exato momento. Se estivermos em viagem, preparemo-nos como se estivéssemos em nossa casa e, nisso, encontraremos alguns motivos de dor – o incêndio ou a ruína de nossa casa, a morte ou a doença de nossos filhos, a perda de nossos bens, a perda daquela querida pessoa em posse de quem nós nos consolávamos de nossas perdas; numa palavra, coloquemo-nos na condição de quem caiu numa dessas infelicidades. Perguntar-se-á, para que serviria isso? Que vantagem poderíamos esperar de um pensamento tão triste? Certamente este: que é muito interessante estarmos preparados para receber, sem incômodos maiores, todo tipo de acidente; preparados a não achar nada estranho ou novo, em meio às mais duras desgraças que possam nos atingir; vermo-nos felizmente enganados por outro evento que não imaginaríamos que poderia ter acontecido; e finalmente tomarmos como ganho tudo aquilo que virmos acontecer para além do que esperávamos que pudesse acontecer. São estas as vantagens que essa premeditação nos produzirá. Ela nos servirá de muralha contra os mais violentos assaltos da Fortuna; por este meio, nos tornaremos capazes de nos defendermos contra ela; e todos os males que ela no suscitar nos serão muito pouco sensíveis, porque já nos serão conhecidos antecipadamente. Assim, portanto, praticando felizmente esta precaução, não correndo o risco que correm aqueles que se deixam surpreender pelo inimigo e facilitam, por seu descuido, sua própria perda, teremos o cuidado em todos os nossos desígnios de considerar seriamente de onde podem derivar os maiores problemas. Praticaremos, nesse ponto, aquilo que se faz na guerra: enviaremos nossos pensamentos adiante de nós, para fazer um reconhecimento do campo inimigo; nos dedicaremos a descobrir os inconvenientes que podem nos atingir. A Fortuna é exata, é regular em sua inconstância e em suas mudanças. Sem dúvida, somos todos – em todo o mundo – sujeitos a isso. Quando ela quer fazer o bem, ela se propõe a poucas pessoas; mas, quando ela quer fazer o mal, ela tem todos os homens como alvo. Dediquemo-nos, portanto, cuidadosamente para nos garantir desses males nos quais sua malícia e sua ligeireza poderiam nos fazer cair; não sejamos tão frágeis a ponto de crer que ela nos isenta deles, ou que ela tenha por nós algum respeito que ela nunca teve por alguma pessoa. É preciso mais esperar os efeitos de sua ira; e para não os achar estranhos, é preciso tê-los por infalíveis. Se não vemos segurança naquilo que queremos empreender; se, pelo contrário, as dificuldades nos parecem extremas nesses casos; se o perigo é evidente; guardemo-nos de cometê-lo sem uma necessidade absoluta, e naqueles momentos em que não teremos nenhum lugar para nos defender. Pode haver loucura maior do que fundar a esperança de um feliz sucesso sobre a malignidade da Fortuna, abertamente declarada nossa inimiga? Somente aqueles que não são sábios ou que se entediam com a vida, embarcariam num navio que fizesse água por todos os lados e que estivesse visivelmente a ponto de ir à pique. Certamente, é estar fora de si colocar-se voluntariamente em perigo. É uma das coisas das quais Catão se acusava. Ele se arrependia de ter feito, por água, o caminho que ele poderia ter feito por terra. Quer dizer que é necessário, sempre, tomar o partido mais certo, e manter a rota mais segura. Sem dúvida, não devemos nos aventurar por caminhos em que não seríamos capazes de evitar o perigo; e não devemos crer que um perigo é menor porque alguém conseguiu, fortuitamente, escapar; mas tão somente se for necessário que nos exponhamos a ele. Ora, é suficiente para isso que tenhamos algum respeito pela Virtude, cuja consideração é a coisa mais forte que poderia tocar uma alma generosa; então, certamente, não precisamos temer nada e não temos motivo para perder a coragem. É preciso que ajamos, nesse caso, com resolução e alegria; mas com luz e conhecimento, não com movimentos cegos e com uma impetuosidade brutal como acontece com aqueles que se jogam num precipício. É preciso, seriamente, imaginar as infelicidades futuras, premeditá-las, considerá-las com uma vista tranquila e segura, a fim de nos formarmos o hábito de não as temer quando elas nos chegarem, e para que elas nos sejam menos formidáveis quando se nos apresentarem. Diz-se que a Leoa, defendendo seus filhotes contra aqueles que querem levá-los, olha fixamente as lanças com as quais a atacam; fixa seus olhos nelas para não ficar assustada. A Virtude é muito mais generosa: não apenas ela faz com que pousemos nossa vista firmemente sobre as infelicidades, e as consideremos sem incômodos, como também ela nos levanta o coração junto com a fronte, ela nos arma contra elas, ela nos dá a força para vencê-las, dando-nos a habilidade para prevê-las; ela nos faz mesmo ir à frente delas; e como ela está absolutamente fora do poder da Fortuna, e visto também que ela não teme suas mudanças e seus caprichos, ela espera com constância todas as coisas e tira esta vantagem de sua espera: não se admira por nada, nada que lhe aconteça surpreende ou é uma novidade. Qualquer um que tenha chegado a este ponto, pode se gloriar de ter atingido o cume da Sabedoria.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 491-496.