terça-feira, 18 de outubro de 2011

Primeira escolha moral - Capítulo X


CAPÍTULO DÉCIMO
Será de grande benefício a disciplina de manter os afetos crianças; pois quando crescem e se estabelecem suas forças, o espírito não conseguirá oprimi-los e talvez, algumas vezes, antes nos extinguirão que serão extintos. Barcelona, cidade nobilíssima da Espanha, é um exemplo disso. Nesta cidade um Leão domesticado seguia, com mansidão, o seu dono. Um jovenzinho da feira não se deu conta ao encontrá-lo e bateu nele, como que por desprezo, uma só vez, nas nádegas. Ele então se recordou de si mesmo, tendo sido chamado à atenção de si pela afronta recebida e pela índole soberba de sua natureza, revoltou-se subitamente contra quem nele bateu, apressando-se para vingar com um rugido horrível; com voz solicita, o Mestre o segurou, ordenando-lhe que parasse. Porém, sua bile se havia acendido tanto, e fez tanta força para deter o ímpeto, que tendo sido impedido de se manifestar plenamente, caiu ali mesmo de morte repentina e desanimada. É disso que são capazes os afetos sufocados, e tanto mais quanto mais ferozes forem, e não menos se forem abandonados. Isto aconteceu semelhantemente em Valladolid, onde uma pessoa, querendo matar uma outra que lhe havia ultrajado injustamente, tirou a espada de sua bainha e já estava para atacar, quando muitos acorreram a fim de impedir o atentado, retendo-o para que ele não afundasse a lâmina no outro; mas, não podendo desafogar o seu ímpeto, aquele homem expirou ali mesmo. Segundo o juízo de todos os Médicos, se a sua fúria não tivesse sido impedida, teria vivido. À vista do polvo, a lagosta morre de medo. Somente entre os Animais os afetos têm tanto poder, nos quais o pouco vale muito: se não matarem, se atormentam. O Tirano da Babilônia ao perguntar a Apolônio [não encontramos referências seguras acerca deste personagem; ndt] qual o suplício deveria ser aplicado para punir um Eunuco que havia sido encontrado se divertindo com uma de suas concubinas ouviu a seguinte resposta: Que outra maior pena do que o deixar vivo? E acrescentou ao Rei que se maravilhava com uma resposta como aquela: Se ele viver, sofrera, por causa do amor, todo tipo de suplício. Caim [primogênito de Adão e Eva, irmão de Abel; sua história é narrada no capítulo 4 do livro de Gênesis; ndt], cuja inveja foi a primeira parteira da morte, digno de suplício mais grave do que o dano que causara, foi deixado em vida, condenado a um tremendo temor. A morte é a punição mais amarga para uma paixão: talvez ganhe renome quem a tolere.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669, pp. 383-385.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Primeira escolha moral - Capítulo IX


CAPÍTULO NONO
Esta diligência proposta exige, além de uma poda constante dos afetos que brotam como fruto da Fortuna, uma capina cuidadosa: Blandior ad falcem messor perducit aristas, / si rastris segetem pectere continuet [em latim no original italiano, citando um texto de Magno Félix Enódio (474-521) que pode ser traduzido assim: Elogia a foice do ceifeiro que leva as espigas, se ele continua com seu rastelo cultivando o campo; ndt]. A natureza, na infância e na puberdade, cultiva suas plantas e dobras as que quer. Enódio diz com doçura: Exprimit in spicas tellus iam facta papillas / Lacte maritatis turgida cespitibus. / Stringitur in prolem sparsus per gramina succus, / De guttis faciens progeniem solidam. / Vestitus gemmis, praetendit brachia palmes / De gremio ligni pampinus ecce viret. / Iussa per augmentum nunc sylvam prodere vitis, / Frugibus ut crescat vulnera conciliat. / Evocat, inquirit gaudens infantia Mundi / Nutricem tepidi quam dedit aura poli. / Ludit per faciem camporum rustica pubes, / Respiciens duri dulce laboris onus [trata-se da sequência do mesmo poema de onde foi extraída o verso citado anteriormente; ndt]. Tende medo do naufrágio da razão quando já forem adultos [os afetos desordenados, as paixões; ndt]; inchados e orgulhosos os afetos sopram mais forte e tu não serás capaz de detê-los ou a ti mesmo; da mesma maneira que nem mesmo o Marinheiro experiente consegue segurar os sopros impetuosos do irritado vento do norte, nem tampouco tirar o navio com segurança da procela. Há, porém, esta diferença: lisonjeiro e suave comandante não pode amarrar os ventos mais impetuosos, que doravante não podem mais se exasperar; o mar calmo e amansado não pode segurar os ventos desenfreados para que não afundem o navio, não pode segurar dentro de suas barreiras o tufão, não pode mitigar as ondas da raiva que se batem até mesmo contra as rochas. A nós é permitido, no Céu sereno e tranquilo, manter distanciadas as nuvens prenhes de tempestade; na mesma tranquilidade, nos é permitido dissipar a procela, zombar dos turbilhões, escapar dos fulgores, não temer os dilúvios ameaçadores das nuvens de chuva, as concupiscências – eu digo –, monstros da natureza [no original latino, Nieremberg, antes de falar das cobiças (cupiditates), elenca uma série de monstros da natureza, com os quais pretende comparar os afetos desordenados, as concupiscências; ndt]. Tu reputarias como muito feliz a arte do Marinheiro que conseguisse segurar, com suas próprias forças, os ventos e, com seu arbítrio, as ondas. Tu navegarias calmo e com segurança, se o Piloto fosse Éolo [trata-se do deus dos ventos; ndt] ou Netuno [o deus dos mares; ndt], guiando o barco da forma como tu quisesses. Mas, são piores os ventos do coração. Se oprimirdes, logo que nascerem, os primeiros ventos, se dissipardes a primeira fumaça da concupiscência, tu serás, para ti mesmo, Éolo dos afetos: serás capaz de acalmar as ondas tumultuosas da tua Fortuna e de ser imune a qualquer naufrágio. Se a paixão for submergida, a razão não o será.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669, pp. 382-383.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Primeira escolha moral - Capítulo VIII


CAPÍTULO OITAVO
O benefício desta instituição e deste estabelecimento do principal afeto vai além da simples instrução do coração, mas serve também para a sua alegria; mais poderosa é a força do espírito quando concentrada no amor, ou na inveja e no ódio que surgem da expressão da alegria e da tristeza consequentes, do que a que nasce de uma violência extrínseca ao tormento; entram com maior veemência, penetram; estão, inclusive, nos corpos e na família, e mais íntimos do que os afetos dos afetos; por isso, atormentam com mais eficácia o espírito, e o tornam mais atento a eles; insinuando-se, ou seja, inserindo-se mais internamente do que conseguem os órgãos externos responsáveis pela alegria ou pela tristeza. Uma grande dor não diminui nada mesmo se colocada entre todos os instrumentos da volúpia, entre as lascívias das mais luxuosas ceias, entre os espetáculos mais deleitosos dos Anfiteatros. O espírito só está seguro e contente entre as rodas e as correntes, se for sustentado por uma força interior que seja capaz de resistir a todo encontro com calamidades mais atrozes. Cada afeto deve estar fundado sobre coisas boas e felizes, de maneira que não precise de nada de fora como alimento. Traga toda a provisão de alegria não mais de longe, mas de si mesmo.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669, pp. 381-382.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Primeira escolha moral - Capítulo VII


CAPÍTULO SÉTIMO
Mas, serão ordenados todos os afetos apenas na medida em que tu regulares aquele que a todos regula, e que torna o ímpeto dos outros justo, ou seja, o amor, que, em primeiro lugar, deve-se advertir que seja colocado sobre uma base digna de seus auspícios, imune a todos os choques da impetuosa e imóvel Fortuna. Esta base é Deus e a virtude. Uma vez, porém, escolhida a matéria para colocar como fundamento para o amor, é preciso que aí se estabeleça com constância, para que também firmemente fiquem os outros afetos. É muito importante eleger o Amor ou o Caso: já que, estando aquele defendido e seguro das agitações da Fortuna, os outros ficaram à salvo, como se fossem anexos, a saber, da sua imunidade. Se alguns se dobram, devem já ter sido reformados pela sua regra de caridade. Adivinha-se, com isso, o uso que eles fazem do amor, e como cada um deles é regulado pela norma do amor. Por acaso, Deus é eleito pelo teu amor e virtude? Tu te serves dos afetos convenientes para esta eleição? Será que estás fora de juízo? Alguém te ofende com injúrias: o que não mais prevalecia, que mais querias, que menos deverias ter sido? Examina a que afeto tu deves aderir que seja mais conforme à intenção, qual convenha mais ao amor: o triste, ou o corajoso e alegre? Quem sabe a ira? Talvez a tristeza? Erras, se não erraste amando. Se amas a Deus, o bem está seguro: aquilo que amas não será arrancado por ninguém, não será levado por ninguém. Com esta dor, que mal evitas? E contra qual queres impor o desdenho? Ou tu não amas a virtude, ou deves afastar de ti a tristeza: estes afetos, certamente, não conveem ao amor. Considera atentamente e busca um afeto que seja conveniente, e que se adeque ao teu amor. Eu acredito que será o contrário daqueles que foram acenados antes. Para quem ama a Deus, as injúrias não são palavras de opróbrio, mas de doutrina: são treinos para a vida, são preceitos de virtude. O homem mau e o teu rival são, para ti, Mestres de probidade: não acontece que se considere a pessoa que declara os ensinamentos, mas quais são as admoestações. Se suportardes aquelas com paciência de homem, elas te levarão a Deus. Se tu as sofrerdes, elas te erguerão. Tu já gozas da mesma virtude que amaste. A paciência é virtude: e não há paciência sem padecimento. Por isso, o bem que amaste está presente, e a sua presença quer que toda dor seja banida, e quer ser arrastado pela alegria. Por isso, tu te deves alegrar quanto ao teu amor. A injúria exige do amante da virtude este afeto feliz, não os outros afetos que deixam o homem triste e infeliz, da mesma maneira que o avaro não encontra sofrimento quando acha um tesouro. Sofres algo de doloroso e de grave quanto ao cargo que exerces? Anima-te: pensa no afeto de que seja oportuno se valer, naquela contingência, para o teu amor, recolhe este afeto e valha-te dele. Quem sabe o temor? Engana-te. Não há ameaça alguma da Fortuna que te colocará em risco de perder a Deus; não há violência que seja capaz de arrancar de ti a virtude, se tu não quiseres. Talvez a esperança? Quem sabe a virtude já esteja te admitindo em meio à sua família, já tens a marca dos bons, já te matriculaste como aluno dos melhores. A virtude sem a paciência é órfã, fraca, ou melhor, é nada, é como se fosse o catálogo dos honestos escrito com muito trabalho. Entre os amantes não haverá nenhum verdadeiramente feliz se estiver distante do objeto amado, se o objeto amado, com alguma entrega de si mesmo, não o favorecer, ou se não lhe chegar com graciosidade e semblante grato, ou o fascine com alguma esperança de si mesmo. O sofrer com a virtude e pela virtude é uma espécie de promessa do amor divino, uma espécie de favor e de inclinação do Céu, uma espécie de sorriso divino: vamos, deixa a tua confiança crescer, pois tudo há de ficar bem. Teu rival tirou tuas faculdades? Foram roubadas pelo ladrão? Nem mesmo isto solicita o indigno afeto do ódio; pois nenhum deles te roubou Deus; Ele continua sendo teu e em todos os lugares. Nada te é retirado, mas estás oprimido pelos encargos. Muito te restou, se a virtude não te foi levada embora. É assim. Tu encontraste aquele único bem que não é desejado pelos assaltantes, não invejado, não enfraquecido. Tu gozas por ter amado um bem livre dos males, a quem nem mesmo os malvados conseguem ofender, a quem os invejosos são benignos, todos perdoam. Da mesma maneira, sirvamo-nos de afetos que são consequências do amor, pois eles servem ao seu Senhor, de modo que o nosso coração se endireitará com resultado dos votos, para que não haja nada de áspero e desigual.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669, pp. 378-381.