terça-feira, 18 de outubro de 2011

Primeira escolha moral - Capítulo X


CAPÍTULO DÉCIMO
Será de grande benefício a disciplina de manter os afetos crianças; pois quando crescem e se estabelecem suas forças, o espírito não conseguirá oprimi-los e talvez, algumas vezes, antes nos extinguirão que serão extintos. Barcelona, cidade nobilíssima da Espanha, é um exemplo disso. Nesta cidade um Leão domesticado seguia, com mansidão, o seu dono. Um jovenzinho da feira não se deu conta ao encontrá-lo e bateu nele, como que por desprezo, uma só vez, nas nádegas. Ele então se recordou de si mesmo, tendo sido chamado à atenção de si pela afronta recebida e pela índole soberba de sua natureza, revoltou-se subitamente contra quem nele bateu, apressando-se para vingar com um rugido horrível; com voz solicita, o Mestre o segurou, ordenando-lhe que parasse. Porém, sua bile se havia acendido tanto, e fez tanta força para deter o ímpeto, que tendo sido impedido de se manifestar plenamente, caiu ali mesmo de morte repentina e desanimada. É disso que são capazes os afetos sufocados, e tanto mais quanto mais ferozes forem, e não menos se forem abandonados. Isto aconteceu semelhantemente em Valladolid, onde uma pessoa, querendo matar uma outra que lhe havia ultrajado injustamente, tirou a espada de sua bainha e já estava para atacar, quando muitos acorreram a fim de impedir o atentado, retendo-o para que ele não afundasse a lâmina no outro; mas, não podendo desafogar o seu ímpeto, aquele homem expirou ali mesmo. Segundo o juízo de todos os Médicos, se a sua fúria não tivesse sido impedida, teria vivido. À vista do polvo, a lagosta morre de medo. Somente entre os Animais os afetos têm tanto poder, nos quais o pouco vale muito: se não matarem, se atormentam. O Tirano da Babilônia ao perguntar a Apolônio [não encontramos referências seguras acerca deste personagem; ndt] qual o suplício deveria ser aplicado para punir um Eunuco que havia sido encontrado se divertindo com uma de suas concubinas ouviu a seguinte resposta: Que outra maior pena do que o deixar vivo? E acrescentou ao Rei que se maravilhava com uma resposta como aquela: Se ele viver, sofrera, por causa do amor, todo tipo de suplício. Caim [primogênito de Adão e Eva, irmão de Abel; sua história é narrada no capítulo 4 do livro de Gênesis; ndt], cuja inveja foi a primeira parteira da morte, digno de suplício mais grave do que o dano que causara, foi deixado em vida, condenado a um tremendo temor. A morte é a punição mais amarga para uma paixão: talvez ganhe renome quem a tolere.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669, pp. 383-385.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Primeira escolha moral - Capítulo IX


CAPÍTULO NONO
Esta diligência proposta exige, além de uma poda constante dos afetos que brotam como fruto da Fortuna, uma capina cuidadosa: Blandior ad falcem messor perducit aristas, / si rastris segetem pectere continuet [em latim no original italiano, citando um texto de Magno Félix Enódio (474-521) que pode ser traduzido assim: Elogia a foice do ceifeiro que leva as espigas, se ele continua com seu rastelo cultivando o campo; ndt]. A natureza, na infância e na puberdade, cultiva suas plantas e dobras as que quer. Enódio diz com doçura: Exprimit in spicas tellus iam facta papillas / Lacte maritatis turgida cespitibus. / Stringitur in prolem sparsus per gramina succus, / De guttis faciens progeniem solidam. / Vestitus gemmis, praetendit brachia palmes / De gremio ligni pampinus ecce viret. / Iussa per augmentum nunc sylvam prodere vitis, / Frugibus ut crescat vulnera conciliat. / Evocat, inquirit gaudens infantia Mundi / Nutricem tepidi quam dedit aura poli. / Ludit per faciem camporum rustica pubes, / Respiciens duri dulce laboris onus [trata-se da sequência do mesmo poema de onde foi extraída o verso citado anteriormente; ndt]. Tende medo do naufrágio da razão quando já forem adultos [os afetos desordenados, as paixões; ndt]; inchados e orgulhosos os afetos sopram mais forte e tu não serás capaz de detê-los ou a ti mesmo; da mesma maneira que nem mesmo o Marinheiro experiente consegue segurar os sopros impetuosos do irritado vento do norte, nem tampouco tirar o navio com segurança da procela. Há, porém, esta diferença: lisonjeiro e suave comandante não pode amarrar os ventos mais impetuosos, que doravante não podem mais se exasperar; o mar calmo e amansado não pode segurar os ventos desenfreados para que não afundem o navio, não pode segurar dentro de suas barreiras o tufão, não pode mitigar as ondas da raiva que se batem até mesmo contra as rochas. A nós é permitido, no Céu sereno e tranquilo, manter distanciadas as nuvens prenhes de tempestade; na mesma tranquilidade, nos é permitido dissipar a procela, zombar dos turbilhões, escapar dos fulgores, não temer os dilúvios ameaçadores das nuvens de chuva, as concupiscências – eu digo –, monstros da natureza [no original latino, Nieremberg, antes de falar das cobiças (cupiditates), elenca uma série de monstros da natureza, com os quais pretende comparar os afetos desordenados, as concupiscências; ndt]. Tu reputarias como muito feliz a arte do Marinheiro que conseguisse segurar, com suas próprias forças, os ventos e, com seu arbítrio, as ondas. Tu navegarias calmo e com segurança, se o Piloto fosse Éolo [trata-se do deus dos ventos; ndt] ou Netuno [o deus dos mares; ndt], guiando o barco da forma como tu quisesses. Mas, são piores os ventos do coração. Se oprimirdes, logo que nascerem, os primeiros ventos, se dissipardes a primeira fumaça da concupiscência, tu serás, para ti mesmo, Éolo dos afetos: serás capaz de acalmar as ondas tumultuosas da tua Fortuna e de ser imune a qualquer naufrágio. Se a paixão for submergida, a razão não o será.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669, pp. 382-383.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Primeira escolha moral - Capítulo VIII


CAPÍTULO OITAVO
O benefício desta instituição e deste estabelecimento do principal afeto vai além da simples instrução do coração, mas serve também para a sua alegria; mais poderosa é a força do espírito quando concentrada no amor, ou na inveja e no ódio que surgem da expressão da alegria e da tristeza consequentes, do que a que nasce de uma violência extrínseca ao tormento; entram com maior veemência, penetram; estão, inclusive, nos corpos e na família, e mais íntimos do que os afetos dos afetos; por isso, atormentam com mais eficácia o espírito, e o tornam mais atento a eles; insinuando-se, ou seja, inserindo-se mais internamente do que conseguem os órgãos externos responsáveis pela alegria ou pela tristeza. Uma grande dor não diminui nada mesmo se colocada entre todos os instrumentos da volúpia, entre as lascívias das mais luxuosas ceias, entre os espetáculos mais deleitosos dos Anfiteatros. O espírito só está seguro e contente entre as rodas e as correntes, se for sustentado por uma força interior que seja capaz de resistir a todo encontro com calamidades mais atrozes. Cada afeto deve estar fundado sobre coisas boas e felizes, de maneira que não precise de nada de fora como alimento. Traga toda a provisão de alegria não mais de longe, mas de si mesmo.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669, pp. 381-382.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Primeira escolha moral - Capítulo VII


CAPÍTULO SÉTIMO
Mas, serão ordenados todos os afetos apenas na medida em que tu regulares aquele que a todos regula, e que torna o ímpeto dos outros justo, ou seja, o amor, que, em primeiro lugar, deve-se advertir que seja colocado sobre uma base digna de seus auspícios, imune a todos os choques da impetuosa e imóvel Fortuna. Esta base é Deus e a virtude. Uma vez, porém, escolhida a matéria para colocar como fundamento para o amor, é preciso que aí se estabeleça com constância, para que também firmemente fiquem os outros afetos. É muito importante eleger o Amor ou o Caso: já que, estando aquele defendido e seguro das agitações da Fortuna, os outros ficaram à salvo, como se fossem anexos, a saber, da sua imunidade. Se alguns se dobram, devem já ter sido reformados pela sua regra de caridade. Adivinha-se, com isso, o uso que eles fazem do amor, e como cada um deles é regulado pela norma do amor. Por acaso, Deus é eleito pelo teu amor e virtude? Tu te serves dos afetos convenientes para esta eleição? Será que estás fora de juízo? Alguém te ofende com injúrias: o que não mais prevalecia, que mais querias, que menos deverias ter sido? Examina a que afeto tu deves aderir que seja mais conforme à intenção, qual convenha mais ao amor: o triste, ou o corajoso e alegre? Quem sabe a ira? Talvez a tristeza? Erras, se não erraste amando. Se amas a Deus, o bem está seguro: aquilo que amas não será arrancado por ninguém, não será levado por ninguém. Com esta dor, que mal evitas? E contra qual queres impor o desdenho? Ou tu não amas a virtude, ou deves afastar de ti a tristeza: estes afetos, certamente, não conveem ao amor. Considera atentamente e busca um afeto que seja conveniente, e que se adeque ao teu amor. Eu acredito que será o contrário daqueles que foram acenados antes. Para quem ama a Deus, as injúrias não são palavras de opróbrio, mas de doutrina: são treinos para a vida, são preceitos de virtude. O homem mau e o teu rival são, para ti, Mestres de probidade: não acontece que se considere a pessoa que declara os ensinamentos, mas quais são as admoestações. Se suportardes aquelas com paciência de homem, elas te levarão a Deus. Se tu as sofrerdes, elas te erguerão. Tu já gozas da mesma virtude que amaste. A paciência é virtude: e não há paciência sem padecimento. Por isso, o bem que amaste está presente, e a sua presença quer que toda dor seja banida, e quer ser arrastado pela alegria. Por isso, tu te deves alegrar quanto ao teu amor. A injúria exige do amante da virtude este afeto feliz, não os outros afetos que deixam o homem triste e infeliz, da mesma maneira que o avaro não encontra sofrimento quando acha um tesouro. Sofres algo de doloroso e de grave quanto ao cargo que exerces? Anima-te: pensa no afeto de que seja oportuno se valer, naquela contingência, para o teu amor, recolhe este afeto e valha-te dele. Quem sabe o temor? Engana-te. Não há ameaça alguma da Fortuna que te colocará em risco de perder a Deus; não há violência que seja capaz de arrancar de ti a virtude, se tu não quiseres. Talvez a esperança? Quem sabe a virtude já esteja te admitindo em meio à sua família, já tens a marca dos bons, já te matriculaste como aluno dos melhores. A virtude sem a paciência é órfã, fraca, ou melhor, é nada, é como se fosse o catálogo dos honestos escrito com muito trabalho. Entre os amantes não haverá nenhum verdadeiramente feliz se estiver distante do objeto amado, se o objeto amado, com alguma entrega de si mesmo, não o favorecer, ou se não lhe chegar com graciosidade e semblante grato, ou o fascine com alguma esperança de si mesmo. O sofrer com a virtude e pela virtude é uma espécie de promessa do amor divino, uma espécie de favor e de inclinação do Céu, uma espécie de sorriso divino: vamos, deixa a tua confiança crescer, pois tudo há de ficar bem. Teu rival tirou tuas faculdades? Foram roubadas pelo ladrão? Nem mesmo isto solicita o indigno afeto do ódio; pois nenhum deles te roubou Deus; Ele continua sendo teu e em todos os lugares. Nada te é retirado, mas estás oprimido pelos encargos. Muito te restou, se a virtude não te foi levada embora. É assim. Tu encontraste aquele único bem que não é desejado pelos assaltantes, não invejado, não enfraquecido. Tu gozas por ter amado um bem livre dos males, a quem nem mesmo os malvados conseguem ofender, a quem os invejosos são benignos, todos perdoam. Da mesma maneira, sirvamo-nos de afetos que são consequências do amor, pois eles servem ao seu Senhor, de modo que o nosso coração se endireitará com resultado dos votos, para que não haja nada de áspero e desigual.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669, pp. 378-381.

Primeira escolha moral - Capítulo VI


CAPÍTULO SEXTO
O amor é Monarca, da mesma forma, destes afetos e, em última instância, é Chefe supremo: ele traz todos atrás de si e os estimula. A primeira engrenagem do relógio, à qual está ligado o peso, move todas as demais. A última esfera do Mundo gira as inferiores, como nos ensina a Filosofia vulgar. O imã, depois que toca um determinado lado da agulha, a faz girar. Da mesma forma os afetos se viram para um lado ou para outro na medida em que são manuseados e regulados pelo amor. Acontece também que sejam contrários os movimentos do ódio, da ira, da tristeza e do temor, pois estes afetos se relacionam ao mal; e o objeto do amor é o bem, de forma que, mesmo esta contrariedade, também é originada pelo amor. Ninguém odiará alguma coisa a não ser porque ame outra coisa. Duas engrenagens do relógio giram em direções opostas: enquanto uma gira, a outra roda no sentido oposto. Diz-se, da mesma forma, que as Estrelas giram em direção contrária das Esferas, ainda que sejam guiadas por um mesmo orbe. Este é, portanto, um empreendimento da vontade: se aparelha de tantos instrumentos, se arma com tantos princípios de alegria, e tem uma abundante oficina de paz, para que não peque por falta de ação ou para que não seja infrutífero o trabalho da tranquilidade. Porém, é necessário que todos os instrumentos sejam conectados e ordenados, para que aquilo que seja destinado para o alívio não seja causa de tormento. Os relógios estragados são inúteis.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669, pp. 377-378.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Primeira escolha moral - Capítulo V


CAPÍTULO QUINTO
Estes afetos são regulados com o oráculo que o amor oferece e que quase são uma ordem de sua voz, visto que inclinam ao bem diretamente e a nenhum outro permite que administre em seu lugar: ele estima tanto o bem que não permite que nenhum outro cuide dele. Há também alguns movimentos oblíquos, como são aqueles que dizem respeito ao mal como rival daquele bem que o Amor publicou, que, ainda que obedeçam ao mesmo amor, e sejam obrigados por suas leis (o mal não empreende guerra alguma ou foge de quem não tenha o bem em causa), estando ao seu lado, não o ajudam, mas o substituem pelo ódio como comandante, para que os modere imediatamente. Ele se afasta para bem longe do mal, a quem não se digna favorecer com sua presença. Exercendo o cargo de Procônsul, o ódio combate contra aquele e toma conhecimento. O ódio, vice-rei do amor, empreendendo uma funesta guerra contra os males, guia sob suas bandeiras os afetos lúgubres, incita aqueles que são atos que deveriam ser combatidos, para que conservem o bem seguro para o Rei amor, seja com a fuga, seja com a luta. Contra este soldado enérgico, é que a ira se dirige, num corpo a corpo decisivo: quam strage multa bellicosus spiritus portenta cordis servientis vicerit [em latim no original italiano; e pode ser traduzido assim: antes que o espírito corajoso tenha derrotado com massacre imenso os monstros do coração escravizado. Trata-se do trecho de um poema de Aurélio Clemente Prudêncio chamado Psychomachia, ou Batalha das Almas, que descreve a luta da fé, apoiada pelas virtudes cardeais, contra a idolatria e seus vícios; ndt]. A audácia prepara os mantimentos e tudo o que é necessário para as guerras futuras. Entre aqueles que preveem sem o conflito estar presente, é a tristeza que se coloca contra o mal próximo, e contra o mal remoto é o temor que se apresenta.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669, pp. 376-377.

Primeira escolha moral - Capítulo IV


CAPÍTULO QUARTO
O Amor guia a todos eles como um Maestro, da mesma forma que Apolo preside as Musas [Apolo é tido pela mitologia greco-romana como uma das divindades mais importantes, assumindo uma série de papéis, entre eles o de líder do coro das Musas. É Homero, no seu Hino a Apolo, que o mostra, no Olimpo, tocando a lira para presidir o coro; ndt]; é do Amor que todos os outros afetos dependem, na medida em que devem servir à alma, proporcionando-lhe os cuidados de que precisa. Porém, com a injustiça, a ordem ajustada é perturbada, a união é desfeita, e a Monarquia se muda em tumulto, e a República em povo. O Amor, Reis dos afetos, comanda a partir do trono do Coração: todos os outros obedecem prontamente, servem e agem a partir de cada aceno seu. Ele rege todos os outros: se o amor está faltando, ele rege as promessas; se ele está em perigo, vem a dor; se ele estiver presente, vêm as alegrias. Ele decreta as leis e promulga que se deve seguir o bem: os outros se preparam para as obras, a fim de exercerem as funções de seu próprio encargo. A cobiça se prepara a fim de buscar o bem, difundindo e levando a vontade para longe e para o futuro. A esperança é enviada a se esforçar no sentido de sustentar, para benefício próprio, a demora da expedição. A alegria é aquela que, por seu próprio privilégio, dispõem de festivos espetáculos para aplaudir a chegada do bem, recebendo-o com festas alegres, solenemente, dando-lhe alojamento quando o recebemos.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669, pp. 375-376.

Primeira escolha moral - Capítulo III


CAPÍTULO TERCEIRO
Basta ter enumerado estes, pois todos os demais se regulam pelas normas destes: corrigidos estes, os demais serão emendados. Erradamente, porém, alguns Estoicos colocam entre os afetos também a serenidade da alma e a tranquilidade do coração, a mansidão e a segurança. Não são afetos, mas efeitos dos mais modestos e comuns afetos. Além do mais, os afetos universalmente têm seu nome derivado do ímpeto. O Oceano é perturbado por diversas ondas. Ora uma brisa agradável o encrespa suavemente; ora um sopro mais veemente o agita; ora uma tempestade cruel agita as ondas, o açoita com o Austral enfurecido; privando o Timoneiro da arte, do Navio e dos marinheiros; e aqui e ali, ferindo a madeira, finalmente, ou o afunda nos turbilhões, ou o empurra para que se parta ao meio nos rochedos. A alma muda, semelhantemente, de três maneiras: ou com amenidade, ou com maior rigor, ou com extrema violência. Aqueles movimentos que se acalmam, e se parecem com nascentes, são chamados afetos; na medida em que crescem, e ficam fortes, passam a se chamar paixões; quando atacam com impetuosidade e perturbam a razão, são chamados perturbações. Há outros afetos mais domésticos, e que podemos dizer que obtiveram uma espécie de jus de cidadania na vontade, que são conhecidos por sua frequência, familiaridade, proximidade e treino, que acabaram conquistando o nome de costume. Todos estão unidos e juntos: uns derivam dos outros, se sucedem alternadamente ao nascerem, são mutuamente pais e filhos de si mesmos, às vezes, chegam mesmo a ser também ao mesmo tempo destruidores de si mesmos, uns oprimem os outros. Uma onda, às vezes, é rompida por outra onda que vem; outras vezes, ela fica maior; da mesma forma é um afeto, que pode ser enfraquecido por outro afeto que vem, como é o caso da alegria que é diminuída pela dor, ou pode ser enfurecido, como é o caso das promessas de amor, ou como é o caso do desejo que se enfurece por meio do amor. Eles são os adornos da paz, a família da vontade, o principado do coração.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669, pp. 374-375.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Primeira escolha moral - Capítulo II


CAPÍTULO SEGUNDO
Antes de ensinar com que arte se deve regular cada um dos afetos, deve-se considerar a índole universal do coração, e refletir atentamente sobre a estrutura dos principais afetos, e tirar do prumo, por assim dizer, o artifício; em seguida, recolocaremos cada um no seu lugar. Enumerarei aqueles com distinção mais clara do que aquilo que foi feito pelos Estoicos, e de forma mais completa do que fizeram os Peripatéticos. Aristóteles se recordou de todos aqueles que bastam para os Políticos, eu falarei daqueles que são necessários ao Cristão. Não pode reparar um relógio defeituoso quem é ignorante daquele difícil e excelente ofício; da mesma forma, aqueles que querem regular a vontade, precisam conhecer sua estrutura. Assim, todo o movimento da alma ou é dirigido para o bem, ou para o mal: e o mal é ausência do bem. O ímpeto da alma reta está sempre dirigido para o bem. O movimento do malvado é de dois tipos: às vezes se retira, outras se aproxima, ou seja, evita o mal, fugindo dele, recebendo-o, ou esbanjando dele e atacando-o. Pelo resto, o bem e o mal ou nos surpreende face a face, ou nos provoca de longe, ou nos chama; ou seja, ou ele é presente, ou passado, ou futuro, ou possível. Buscando o repouso, em toda a parte, a vontade perturba o bem; e, por todos os lados, é perturbada pelo mal. Portanto, os afetos se distribuem segundo a obtenção ea segurança do bem e do mal. O amor reto e de olhar simples corre em direção ao bem, quando o vê presente, se transforma em alegria; quando o pensa como futuro, se transforma em esperança; quando passado ou possível, se difunde em desejo. Mas também a inclinação para o mal se distribui assim: aquela que simplesmente com aspecto turvo diz respeito ao mal, se chama ofensa; a que está enraizada se transforma em ódio; quando se subtrai do dano presente, se transforma em tristeza; vinculada ao passado, se chama arrependimento; relacionada com o futuro, se contrai em medo. Esta variedade serve para dar segurança e fazer o mal fugir. Há alguns outros efeitos guerreiros e atos de combate que se insurgem contra o mal e o atacam: a ira se arma quando o mal esta presente; a confiança e a coragem se preparam contra o futuro.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669, pp. 372-374.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Primeira escolha moral - Capítulo I


A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO QUARTO
_______________________

PRIMEIRA ESCOLHA MORAL*
Considera-se e prescreve-se o uso dos afetos

CAPÍTULO PRIMEIRO
Agora, vou me dedicar a preceitos particulares, para regular todos, um a um, os ímpetos da vontade, que devem ser ordenados como na República, para não causar  confusão a muitos, a fim de que, corrigindo-se o vulgo de seus afetos, se restitua a sua Monarquia, o seu Principado de alegria, o seu Domínio de paz; ainda mais, para que se restitua o mérito da Vontade, o decoro da Natureza. Zenão [aqui, trata-se do estóico Zenão de Cítio (334 a.C.-262 a.C.); ndt] pareceu injusto, e se dermos crédito a Jerônimo [trata-se de São Jerônimo (347-420); ndt], também Pitágoras [trata-se de Pitágoras de Samos (c. 571 a.C.-c. 496 a.C.); ndt], porque, para mostrar os afetos como repreensíveis, os chamou de malvados. Elogiaram, segundo Pirro [trata-se do filósofo cético Pirro de Élis (c. 360 a.C.-c. 270 a.C.); ndt], segundo Estílpon [Estílpon de Mégara (c. 360 a.C.-c. 280 a.C.) foi discípulo de Diógenes de Sínope, sobre quem já comentamos em nota anterior, é um dos representantes mais importantes da chamada Escola Megárica, que criticava a filosofia platônica, especialmente no particular sobre a imitação que a realidade sensível faz do Ser; ndt], sua vacuidade. Condenaram, os que perteceram ao Liceu [trata-se da escola fundada por Aristóteles em 335 a.C., também conhecida como escola peripatética; ndt], seu excesso. Todos com erro, a não ser que tivessem o mesmo desejo de Agostinho [trata-se de Santo Agostinho (354-430); ndt]. Os adornos da natureza não são maus nem supérfluos. Por que cortar os braços e os membros da alma? Se tirarmos da alma o afeto, com que pés correria para adquirir a virtude se não com os desejos? Com que mãos a reteria, se não com a esperança? Com que braços a abraçaria, se não com a alegria? Também os Peripatéticos [escola fundada por Aristóteles que, em grego, significa “os que passeiam”, designando a forma como as aulas eram dadas no Liceu: os filósofos ensinavam ao ar livre, caminhando; ndt] erram quando condenaram a superabundância. A grandeza do afeto não é nociva, mas é a causa: não tanto ímpeto, quanto erro. O viajante não precisa ser corrigido porque está com pressa, se estiver na estrada certa: mas se se desviar dela, mesmo que seja uma viagem de lazer. A cobiça e o amor, mesmo sendo afetos muito impetuosos, se são virtudes e se são de Deus, seguem por caminho direito e são ótimos; se se dobram para a terra, mesmo que sejam lentos, perdem a via e se desviam do caminho direito. O Pórtico [trata-se da Escola Estóica, que tirou seu nome da palavra stoà que, em grego, significa “pórtico”, em referência ao fato que Zenão de Cítio, fundador da escola, ensinar sob o pórtico da Ágora, em Atenas; ndt] difamou o medo como maior de todos os vícios: é verdade, quando, por causa dele, tu te abaixas em direção à terra; mas se tu o reduzires ao Céu, será uma grande vitude, a maior segurança, a maior fortaleza. Quem teme a Deus, não teme nada. Tanto os frágeis, quanto os ferozes afetos são bons, se forem regulados pela virtude e forem colocados por ela no caminho certo. Se, por outro lado, forem degenerados, por mais justo que seja o ritual de todas as coisas, quanto mais veementes, mais prejudicias serão. O sangue puro e refinado é veículo da alma, e causa da saúde; corrompido e sujo, causa de doença; se superanbundar, apressa a morte. Os afetos também são sustento para a virtude: a fortaleza enfraquece sem a a ira, a prudência sem o temor; serão virtudes se forem moderados. Modera a cobiça e terás justiça; a volúpia e terás temperança. Em torno desses e nesses consiste a virtude, de que são sujeito e matéria. Colhe os vícios, bons frutos nascerão com a fecundidade da natureza. Só são ruins por causa da nossa negligência. Por descuido do Agricultor, o jardim crescerá selvagem. E o terreno não pode ser dito péssimo só porque, não tendo sido cultivado, germinam nele as plantas daninhas: é tudo culpa do Colono. Espinhos do coração não cultivado são os vícios, rosas do cultivado as virtudes, que germinam da haste dos afetos. Teages [é um dos personagens do diálogo platônico Teages. Nesse diálogo, Demódoco, pai de Teages, preocupado com o futurodo filho, quer saber de Sócrates qual é o melhor tipo de sabedoria; ndt] disse com razão: Quamobrem opus est, affectus ita inesse virtuti, ut umbrae, et linea sunt in pictura, quam vivam quodammodo, blandam, et ad rem ipsam efficiunt. Sic etiam affectus animae fecundum naturam se habentis, cum ad virtutem divino quodam impetu rapiuntur, vitam continere videntur. Sane virtus ex affectibus et nascitur, et nata rursum cum ipsis constat: ut quod suaviter concinnum est ex acuto, et gravi: quod recte temperatum ex calido, et frigido compositum est. Qua propter affectus ex anima tollendi non sunt, quod inutile foret: sed cum decore, et modi ratione conciliandi [no original latino, a citação aparece em grego, com a tradução na margem – como, inclusive, é o caso em todas as vezes em que há uma citação em grego ou hebraico. No entanto, a grafia utilizada no original e a qualidade da cópia não permite uma transcrição do texto grego; ndt]. De onde se tira que não é preciso cancelar todos os afetos, mas os regular. Não se cortam todos os ramos da videira: alguns são endireitados e alongados para que, ali, brotem as folhas. O solitário Filipe [certamente se trata do Abade Felipe de Harveng, que foi abade em Notre-Dame de l'Aumône (Nossa Senhora da Esmola), abadia cirteciense. Era arquidiácono de Liège em 1146, quando Bernardo de Claraval solicitou sua companhia para pregar a cruzada na Alemanha. Não há muitos dados acerca desse personagem. Sabe-se, porém, que em 1179 ainda era vivo (cf. Migne, 1855, p. 566); ndt] disse de forma elegante: prole belíssima da cobiça é a temperança; do cálice da ira se derrama a fortaleza. Estes afetos, como nos disse, são mães das virtudes e dos vícios. Assim é: dão à luz as virtudes, quando a razão é a obstetra; abortam os vícios, quando é a opinião. A cobiça, embora seja tida em péssimo conceito, e seja reputada prejudicial pela temperança, se, porém, dirige seus ímpetos para Deus, restaurará sua honra, se tornará Mãe da continência. Quem deseja as coisas divinas, despreza todas as terrenas.

* No original latino, Nieremberg optou por nomear cada parte inicial deste quarto livro do DAV com o título geral "Proaeresis", seguido de um subtítulo. Trata-se de um conceito fundamental no Estoicismo e aparece muito na Ética a Nicômaco de Aristóteles, que pode ser traduzido como volição, intenção, escolha moral, desejo, livre arbítrio, escolha deliberada. Trata-se da junção do verbo airén (pegar) com a preposição pró (adiante). Traduzi por "escolha moral" devido ao contexto do manual que pretende ser um manual de filosofia moral. Importante observar que, na versão italiana, o tradutor optou por não usar o conceito, preferindo apenas traduzir os "subtítulos" de cada uma das partes que compõem este início do quarto livro.

NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669.

Referência:
MIGNE, M. L'Abbé. Nouvelle encyclopédie théologique, ou nouvelle série de Dictionnaires sur toutes les parties de la Science Religieuse, offrant, en français et par ordre alphabétique, la plus claire, la plus facile, la plus commode, la plus variée et la plus complète des théologies. Ces dictionnaires sont ceux: de biographie chrétienne en anti-chrétienne, des persécutions, d'éloquence chrétienne, de littérature id., de botanique id., de statistique, id., d'anecdotes id., d'archéologie id., d'héraldique id., de zoologie, de médecine pratique, des croisades, des erreurs sociales, de patrologie, des prophéties et des miracles, de décrets des congrégations romaines, de indulgences, d'agri-silvi viti-horticulture, de musique id., d'épigraphie id., de numismatique id., des conversions au catholicisme, d'éducation, des inventions et découvertes, d'ethnographie, des apologistes involontaires, ds manuscrits, d'anthropologie, des mïstères, des merveilles, d'ascétisme et des invocations a la Vierge, de paléographie, de cryptographie, de dactylologie, d'hiéroglyphie, de sténographie et de télégraphie, de paléontologie et de cosmogonie, de l'art de vérifier les dates, des confréries et corporations, et d'apologétique catholique. Publiée par M. L'Abb. Migne, éditeur de la Bibliothèque Universelle du Clerge, ou Des Cours Complète sur chaque branche de la Science Ecclésiastique - Tome Vingt-Troisième: Dictionnaire de Patrologie. Paris: J.-P. Migne, Editeur, 1855.

Retomando o projeto


Dando continuidade à tradução do De Arte Voluntatis, dessa vez tomando por base a versão italiana (de 1669) que, diferentemente da versão francesa usada até aqui, é uma tradução completa do original latino, pretendo, nos próximos meses dar sequência ao trabalho, dedicando-me aos três últimos livros da obra que, segundo o próprio Nieremberg (1631), "numa notável continuação, prova como é conveniente e natural algum uso do afeto: ensina especialmente o uso do amor genuíno, e mostra como, sem partir dos dados da natureza, se poderá chegar à desordem", no Livro Quarto; "prossegue apresentando outros usos dos afetos – felicidade, esperança, desejos, ira, temores, tristeza. Prova como todos esses afetos são úteis e como nos foram dados pela natureza para defender a felicidade da alma. Demonstra que quem não os sabe usar recai na desordem", no Livro Quinto; e "descreve-se e recorda-se, em particular, o que diz respeito ao legítimo e verdadeiro juízo, contra as falsas crenças que impedem o uso natural dos afetos. Na continuação, isoladamente, compara e examina o bem e o mal, a riqueza e a carência, o prazer e a dor, a honra e a ignomínia, a vida e a morte; e mostra de que maneira uma vida muito bem instruída pelo espírito invade o fazer legítimo e natural da vontade", no Livro Sexto.

Se alguém se interessar em acompanhar esse trabalho e divulgá-lo, serei muito grato... mais grato ainda ficarei se receber daqueles que acompanharem ou que, por ventura, esbarrarem por aqui, comentários e contribuições acerca da obra e do autor.
É isso!
Paulo Roberto de Andrada Pacheco

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Oitavo preceito - Capítulo V

CAPÍTULO V
Além do mais, como o conhecimento de Deus nos confere a maravilhosa vantagem de não ficarmos descontentes na estima das coisas; como ela nos serve, nisso, de luz e de guia, sem dúvida, esta estimação mesma das coisas nos servirá de aguilhão; e, ao mesmo tempo, será uma grande ajuda para nos excitar e nos levar ao conhecimento de Deus. É através disso que as coisas, perdendo a aparência e o lustro sobre o qual se sustentam e que a Opinião lhes empresta, condenam-se a si mesmas suficientemente, se mostram bastante indignas de nossa afeição e de nossa estima, e nos fazem ver que elas merecem mesmo é nosso desprezo. Certamente, nosso espírito não seria capaz de se elevar ao Céu e se aplicar na contemplação das coisas divinas sem se separar da matéria, sem se divorciar do corpo, e, para dizer mais claramente, sem desprezá-lo. Sendo que não há nenhum caso contrário quanto a isso, em seguida, será infalivelmente necessário que quem chegou a este alto ponto de Sabedoria não se vincule a seu corpo, não tema a morte em nada, não ame nem busque as delícias, tanto menos aquilo que as produz e as mantém – as Riquezas. Como sabemos que nosso corpo é um perpétuo obstáculo para o conhecimento da Verdade, envidaremos todos os esforços possíveis para nos desembaraçarmos dele; vamos lutar ainda para romper todo comércio com ele, visto não ignorarmos que ele a causa dos males que cometemos e daqueles que nos é necessário suportar, dos males que vêm de nós e daqueles que vêm da Fortuna. Sabemos que as guerras e as desordens que existem entre os homens são feitas por causa das riquezas; sabemos que é por causa da posse do Ouro que os homens empregam o ferro para sua ruína comum; sabemos que elas causam as rapinas e as violências que eles exercem uns contra os outros. Não ignoramos também que as riquezas são para o corpo. Se, portanto, desprezamos este, por que estimamos aquelas? Pelo desprezo das riquezas, adquirimos dois bens inestimáveis, a inocência e a liberdade; tornamo-nos Mestres de nós mesmos. E, a partir disso, conseguiremos nos devotar fortemente à contemplação das coisas divinas; através dela [dessa contemplação; ndt], possuindo o Céu, e às vezes possuindo até mesmo a Deus, não teremos mais nem paixões nem sentimentos pelas coisas, as estimaremos pouco, visto que, sem elas, seremos soberanamente satisfeitos e felizes. Ora, sendo que isso é o objetivo a que todos visamos, sendo que não a ninguém que não aspire à felicidade, e sendo que ela é o alvo comum de todos os homens, ser-nos-á muito fácil chegar até a ela, desde que coloquemos em prática aquilo que este discurso e os precedentes acabaram de nos ensinar. Dediquemos, portanto, nisso, todos os nossos cuidados; empreguemos, nisso, toda a nossa força; visto que este é o trabalho mais nobre, o mais importante e o mais necessário com o qual poderíamos nos ocupar [no original latino, Nieremberg termina o terceiro livro do De Arte Voluntatis citando uma frase de São Paulino de Nola: “Nihil de mundi sumere censu / Mens opulenta Deo voluit”; ndt].

Fim do Terceiro Livro.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 548-550.

Oitavo preceito - Capítulo IV

CAPÍTULO IV
Portanto, é indubitável que, tendo o conhecimento de Deus, teremos as luzes necessárias para dar o justo preço das coisas; corrigiremos as falsas impressões que a Opinião nos deu sobre elas; não nos deixaremos mais surpreender por sua aparência e seu brilho. Assim, seja que as possuamos, seja que sejamos despojados delas, sempre teremos presente em nós que não há nada de bom nelas além de seu uso; que elas só valem pela escolha e pela estima que nosso espírito faz. Da mesma forma que as crianças só cuidam das pedrinhas com as quais brincam na medida em que lhes é útil para alguma coisa e, depois, as desprezam; também nós só devemos estimar as coisas na medida em que nos servem para chegar a um fim que nos foi proposto; não temos que cometer a infelicidade de tomá-las como fins em si mesmas e não devemos ligar nosso amor a elas; é preciso temer incorrer na justa censura de ter menos razão e prudência que as crianças. Como sabemos que todas elas procedem de Deus, ficaremos mais à vontade de remetê-las sempre a Ele. Elevando nosso espírito para o Céu, saberemos que há Volúpias infinitamente mais encantadoras do que todas aquelas que buscamos juntas e que saboreamos apenas através dos sentidos; Volúpias muito mais perfeitas, na medida em que não têm mais relação com os sentidos. E disso, sem dúvida, não nos dedicaremos mais a preferir aquelas [Volúpias; ndt] do corpo; não ignorando o quanto ele nos é pouco necessário para saborear as verdadeiras delícias, visto que Deus, que não tem corpo, possui uma soberana felicidade. Não tomaremos mais como sinal de satisfação e de alegria tudo aquilo que tem a aparência [de satisfação e de alegria; ndt], aquilo que os homens fazem rindo; lembrando-nos de que os insensatos e os frenéticos riem mesmo quando um furor mais violento os transporta, mesmo quando eles se ferem com suas próprias mãos e quebram a própria cabeça contra as paredes. Certamente, por mais agradável que seja a fantasia que temos sobre as Volúpias sensuais, ela não nos tocará e não nos tentará. Pelo contrário, teremos piedade, teremos horror daqueles cuja vida é uma contínua devassidão; que, dia e noite, se enchem de vinho e de carne; que, por uma loucura semelhante àquela dos Bárbaros, adoram aquilo que os destrói; que, por uma desordem extrema, sujeitam sua alma e sua razão a seu ventre; que se estupidificam voluntariamente pelos excessos da boca e por outras dissoluções. Que grandes e remarcáveis vantagens mais podemos esperar do conhecimento de Deus? Da mesma forma como ele [esse conhecimento; ndt] nos eleva acima dos eventos humanos, também faz com que eles não nos toquem; ou, pelo menos, faz com que eles não causem uma tão grande impressão em nós a ponto de incomodar nosso repouso, a ponto de alterar nossa alegria. Esse conhecimento nos permite adquirir uma constância, uma firmeza, que não é abalada pelos violentos ataques que recebemos da Fortuna. Através dele, aprendemos a não temer a morte; a não amar a vida; vida que só é preciso temer na medida em que, para dizer a verdade, sendo má, fará com que a morte seja também má. O que mais eu poderia dizer? Esse conhecimento nos inspira uma alta resolução; coloca nosso coração no lugar certo, a ponto de, qualquer perigo que se nos seja apresentado, nós nos expomos com coragem, por pouco que reconheçamos nisso alguma glória da Virtude. Consideramos a vida e a morte indiferentemente; não elegemos nem temos paixão por uma mais do que pela outra, para além daquilo que um respeito tão nobre nos obriga. Se nos for necessário morrer, não apenas não resistiremos a isso, como também agiremos com alegria; e, então, não saberemos mais o que é temer o ferro e o fogo; nada de tão terrível nos assustará. Aquele que retomou a Seita dos Estóicos e reconstruiu o Pórtico, Epícteto [Epícteto (55-135); ndt], exortando seus discípulos para a prática desta Filosofia, segundo o testemunho de Arriano [trata-se de Lúcio Flávio Arriano Xenofonte (c. 92 – c. 175), que foi historiador da Roma antiga; ndt], seu intérprete, lhes propunha o exemplo dos Cristãos; e, para dizê-lo com em suas palavras, construía o modelo de sua Sabedoria sobre sua loucura. Ele dava esse nome [loucura; ndt] à segurança com a qual ele os via abraçarem os suplícios e se apresentarem à morte. Ele chamava loucura a mais eminente Sabedoria, a Sabedoria mesma de Deus; verificando aquilo que havia predito o divino Apóstolo [São Paulo; ndt], que ela seria tomada, pelos homens, como loucura. Mas, como ele achava admirável aquela loucura! Tanto que ele propunha a imitação deles àqueles que queriam se instruir na Sabedoria! Podemos dizer, aqui, a mesma coisa: quem se curar dos erros que reinam no mundo, quem assumir sentimentos contrários àqueles da multidão enganada, não será visto como Sábio, mas certamente estará entre aqueles que não o são.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 544-547.

Oitavo preceito - Capítulo III

CAPÍTULO III
Mas, por que tardamos tanto a dizer em alto e bom som? Todo aquele que conhece a Deus, infalivelmente se tornará sábio; quem for sábio, zombará dos enganos que a Opinião introduziu e autorizou entre os homens; ele rirá das falsas persuasões que ela lhe colocou no espírito. Não será mais possível dissimular; esta inimiga perigosa do bom senso e da Razão os seduziu e corrompeu a todos; ela os possui, e os domina; quase não há ninguém que possa se dizer isento de suas imposturas e de sua tirania. Queremos provas maiores do que suas ações públicas e ordinárias? Do que ver que eles afetam com adornos e ornamentos aquilo que, por seus sentimentos, se transforma em desonra; aquilo que sobrecarrega e incomoda? Do que ver que eles empregam as marcas da miséria para representar sua felicidade? Estranha e deplorável loucura! As pessoas de condição não apenas livre, como também felizes; aquelas que não somente não dependem dos outros, mas de quem muitos outros dependem; os Grande e os Ricos se sobrecarregam de correntes; eles não têm vergonha de rebaixar tanto a ponto de se tornarem escravos voluntariamente, privando a si mesmos da liberdade, do maior bem que recebemos da Natureza. Eles não enrubescem com a infâmia de sua servidão, porque suas correntes são de ouro; como se não fosse não ser mais escravo estar amarrado por ouro ao invés de por ferro; e como se as cadeias não fossem mais estreitas e fortes do que são brilhantes e preciosas. De qualquer forma, nisso, podemos dizer que eles são razoáveis, ao condenar publicamente sua loucura e se punirem por sua avareza, acorrentando-se por suas próprias mãos, como se fossem criminosos ou pessoas estão fora de si. Um deles, cuja loucura era mais ambiciosa que a dos outros, tendo sido, um dia, encontrado por um homem galante, lhe ofereceu motivo para fazer esta zombaria: “O resto dos loucos se deixa prender por uma única corrente, mas, no caso desse, são precisas muitas correntes” [no original latino, Nieremberg se refere a um certo Nicolau, de quem não conseguimos maiores dados; ndt]. Há aqueles a quem não apenas o ouro acorrenta, como prega; que se vangloriam de serem perfurados, terem as orelhas rasgadas, e que gostariam muito bem de poder introduzi-lo em outras partes do próprio corpo. Que Tirano bárbaro e tão cruel [no original latino, Nieremberg nomeia como exemplo de homem perverso e cruel o tirano Fálaris (?-554 a.C.), que instaurou o Touro de Perilo como instrumento de tortura; ndt] poderia praticar um meio mais estranho para fazer parar e reter os culpados? Quem mais poderia ter inventado a ideia de inserir as cadeias em seus membros? Quem mais poderia ter pensado em misturar e confundir as cadeias na carne e no sangue dos culpados? É isso que a avareza faz, mais cruel e engenhosa do que todos os Tiranos juntos; seguramente mais cruel; visto que, não estando contente em nos amarrar o corpo, ele nos amarra também a alma; ela nos sujeita justamente a partir daquela parte que se conserva livre em meio às mais duras provações. Estas mesmas pessoas tiram vantagem da riqueza e da pompa de suas roupas; elas fazem consistir nas roupas a sua glória. Mas, eu vos pergunto, sobre o que elas estabelecem a sua glória? Sobre um fundamento certamente muito vil e frágil, sobre o restolho vomitado por um verme, sobre o pêlo supérfluo que foi arrancado de um animal, sobre fios de seda e de lã, tecidos sutilmente e delicadamente trabalhados. Muitas vezes, chega-se mesmo a este extremo engano de julgar, através disso, os homens; de medir a nobreza e o mérito pelo seu vestuário; e, sendo mais ou menos rico, de estimar mais ou menos a pessoa que o veste. Recebemos a custa de nada e sem pena alguma a pura e a natural claridade do dia; a luz do Sol não nos custa nada; e aceitamos comprar a preço muito alto o brilho que, se não for falso, é pelo menos duvidoso, de uma pedra preciosa. Não há nada de mais belo do que o azul do Céu, que a verdura dos campos; e preferimos, no entanto, a estas duas cores, tão vivas e brilhantes, um pedaço de pedra que só tem uma tintura que representa aquelas cores tão imperfeitamente. Um engano semelhante colocou a honra em meio à abundância dos bens; ligamo-la à posse de riquezas. Disso procede que aqueles que têm muito recebem o respeito e a submissão de todos; são o objeto da reverência pública e são considerados com veneração. E, para vós, quem são essas pessoas a quem rendemos respeito e submissão? Àqueles que sabem muito bem que não são dignos; àqueles que não ignoram que os avaros são abjetos e vis; àqueles a quem tudo o que se faça para honrá-los não os toca de forma alguma e é incapaz de tirar um centavo que seja de suas mãos. Numa palavra, àqueles que esperam que nada escape dele, de uma tão grande e vasta fonte. No entanto, são honrados como pessoas de excelente mérito, se não for apenas pelo fato, talvez, de crermos que eles têm tanto, a ponto de ter impedido, pelo ardor de deglutir o bem, que outros o tivessem adquirido, e não se tornassem malvados e injustos como eles; ou, quem sabe, sejam dignos de estima, por terem agido no sentido da salvação de outros, perdendo a si mesmos. A Opinião não nos deu mais verdadeiros sentimentos da morte do que do restante das coisas, no-la tendo apresentado como má, visto que ela [a morte; ndt], por si mesma, não o é de forma alguma, e somos somente nós que a tornamos assim. Nós nos enganamos sem dúvida ainda mais quando a imaginamos dura e terrível, porque, algumas vezes, ela é inesperada e repentina; e baseados nesta falsa persuasão, tememos o ferro, ficamos com medo do relâmpago. Certamente, teremos muito mais motivo para temer uma fruta crua; um cogumelo, um melão que nos causam cólica e, nos causando uma doença, prolongam em nós o sentimento da morte e, disso, nos faz acreditarmos que ela seja mais incômoda do que realmente é; enquanto que um golpe de espada, um raio, ao nos darem a morte logo, no-la dão sem dor e não nos deixa sentir mal algum. E, eu vos pergunto, quem é que não prefere engolir prontamente um remédio para não ter que sentir seu amargor? É ainda um engano deplorável estimar a vida mais pelos anos do que pelas obras; pela longa duração do que pelas boas ações. E este engano nos causa a tristeza extrema de não ver chegar inesperadamente a morte; de sermos surpresos antes que tenhamos tempo para pensar nisso; antes que tenhamos nos preparado para recebê-la. O mais ordinários e mais violento de nossos desejos é gozar a vida por muito tempo. E negligenciamos incessantemente as coisas que, sendo praticadas, causarão o efeito desse desejo. Queremos viver eternamente, e nunca pensamos naquilo que é preciso para isso; ou só pensamos para protelar isso, dia após dia. Deixamos para começar a viver, quando a morte já está à porta, quando já não somos mais capazes de fazer não apenas o bem, como também o mal; quando as forças do corpo e do espírito, vindo a falhar, nos deixarão inábeis para a Virtude, como também para o vício. Sem dúvida, possuímos a menor porção da vida; elegemos aquela porção que é a pior. Nós nos lamentamos da prontidão e da subtaneidade com a qual o tempo passa; mas não fazemos nada mais voluntária e ordinariamente do que perdê-lo. Dizemos que é muito curto; mas nos enganamos, pois ele não é curto de forma alguma; ou, se o for, é apenas por causa do pouco cuidado que temos em bem empregá-lo. Não arrumemos desculpas quanto a isso; a vida dura o suficiente, ela é suficientemente longa, para quem não é ocioso. Queremos começar a bem viver quando não temos mais tempo para isso, quando está na hora de pensar em bem morrer, quando já estamos na velhice. Certamente, se formos sábios, pensaremos nela antes que ela chegue; e quando ela tiver chegado, nossos pensamentos serão todos destinados para nos prepararmos para a morte.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 539-544.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Oitavo preceito - Capítulo II

CAPÍTULO II
Julgaremos falsa e enganadora a Opinião que temos das coisas; reformaremos nossos pensamentos e nossos sentimentos, se viermos a considerar a grandeza de nossa condição, se lembramo-nos que somos a imagem de Deus; será soberanamente feliz, sem riquezas e sem Volúpia; será cheio de glória, sem luxo e sem fausto; sua alegria precederá puramente de si; não buscará nada fora de si; e somente ele bastará. Depois disso, será que ainda somos tão pouco razoáveis a ponto de chamar de bens aquelas coisas que não pertencem a Deus e, sem as quais, ele permanece em sua suprema beatitude? Que coisas? Aquelas que são abundantes entre os malvados, possuindo as quais eles são miseráveis; as coisas que os animais mesmos possuem, e que não lhes fazem mais felizes. Será que ainda encontraremos alguém que, vendo que o soberano bem nos é proposto como a regra de todos os movimentos de nosso espírito e o fim ao qual devem aspirar todas as potências de nossa alma, ainda esteja tão enganado a ponto de acreditar que seja necessário buscar essa regra no vício? Ou que acredite que se chegue a esta regra através de más ações, pela infidelidade, pela fraude, pelo desregramento e pelas desordens que produzem, ordinariamente, as riquezas e as Volúpias? Verdadeiramente, esperar a felicidade da miséria é saber muito mal de onde ela vem; se prometer a felicidade pelas coisas onde ela não está, coisas que são absolutamente incapazes de no-la dar, que nunca serão capazes de estabelecê-la, e que, pelo contrário, a destroem; tudo isso, é saber muito mal de onde pode vir a verdadeira felicidade. No entanto, é um bem tão precioso e raro, desejado por todos, buscado mesmo pelos malvados – e, às vezes, o que é igualmente maravilhoso e deplorável é o fato de eles se tornarem malvados justamente para obtê-lo; eles renunciam ao bem para chegar até a ele; eles se tornam injustos e criminosos para se tornarem felizes. Mas, quão frustrados eles são quanto ao efeito de seu desejo? Quão vã é a sua expectativa? Certamente, eles se afastam tanto mais de seu objetivo, quanto mais imaginam se aproximar. Por um inevitável desprezo, crendo ir direto rumo à felicidade, eles irrompem e caem na miséria. Eu vos pergunto, de onde pode proceder isso, se não do fato de eles não irem pela boa via e nem sequer saberem qual é o verdadeiro caminho para a felicidade? Ora, será sabê-lo e mantê-lo sem dúvida, ir direto para Deus; considerá-lo como nossa suprema e última felicidade; buscar a abraçar a Virtude, que é uma felicidade que nos leva a outra, e que nos permite adquirir essa felicidade desde já, nesta vida. Para dizê-lo em uma só palavra, nos restringirmos à posse dos bens que dependem puramente de nós é estar em vista da chegada ao soberano bem. Talvez, me dirão: mas no que eles consistem? Certamente, em se submeter em todas as coisas à Vontade de Deus, e em lhe render uma inteira obediência; em amá-lo de todo coração; em buscar com todo o nosso poder os meios para agradá-lo e servi-lo. Através disso, adquiriremos infalivelmente a felicidade; e talvez até com a rara vantagem de nos tornarmos semelhantes a ele [a Deus; ndt]; de partilhá-la com ele. Através disso, aprenderemos a não nos ligarmos aos bens temporais e perecíveis. E da mesma forma como a linha não cresce pelos pontos, nem a superfície cresce pelas linhas, a felicidade também não aumenta pela quantidade de coisas que buscamos nesta vida. Considerando que Deus, que é o soberano bem, é constante e imutável; que ele é sempre o mesmo, que é eterno; nós excitaremos em nós a escolha pelos bens que são da natureza e da condição deste; que não são, mais do que ele, sujeitos à corrupção e ao perecimento; visto que não é pela posse dos bens da Fortuna que seremos felizes; visto que a alegria não está no meio do incômodo que ordinariamente a acompanha; visto que ela não se encontra absolutamente na inquietude que é uma seguidora infalível dela. E não pensemos que nos seja uma vantagem não conhecer seus defeitos, não creiamos que não saber que eles são caducos seja capaz de causar a nossa felicidade, que nossa ignorância possa estabelecê-la. Aqueles que embarcam num navio cujas madeiras são frágeis ou mal encaixadas não estão em segurança simplesmente por não saberem dos perigos aos quais estão se expondo. Não podemos também ser felizes apenas conhecendo sua instabilidade, na medida em que a certeza que temos disso nos mantém, finalmente, numa contínua apreensão pela perda. Dir-me-ão que, se ela chegar, não será preciso que eu tome cuidado; que, pelo contrário, é preciso que eu me console com o pensamento que, sendo, como são, vis, não vale a pena que eu me aflija. Sendo assim, como pode parecer que a felicidade, a mais nobre e mais preciosa de todas as coisas, possa ser encontrada em meio àquelas que não são dignas de nossa estima e merecem apenas o nosso desprezo?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 535-539.

Oitavo preceito - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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OITAVO PRECEITO
QUE o conhecimento das coisas Divinas aperfeiçoa o Entendimento


CAPÍTULO PRIMEIRO
Mas, enfim, eis o ponto aonde todos esses preceitos devem chegar; há um que compreende todos; é preciso reduzi-los todos a seu princípio. É do Céu que o Entendimento recebe sua mais alta e mais pura luz; aquela que repara seus descontentamentos; que o traz de volta de sua cegueira; que corrige todos os seus enganos [no original latino, Nieremberg cita nominalmente o político e pensador grego Teágenes (? – c. 480 a.C.); ndt]. É pelo conhecimento de Deus e das verdades eternas que vêm dEle, que é soberanamente esclarecido; é por ele [o conhecimento de Deus; ndt] que o Entendimento chega à perfeição ou a ela aspira. Ele afasta, ele dissipa as sombras e as nuvens que ofuscam a sua claridade; ele é a causa infalível de tudo aquilo que temos de alegria; é dele que vem absolutamente nossa satisfação; é de onde procede todo o nosso bem. Certamente, quem quer que conheça a primeira Verdade é, desde esse momento, perfeitamente instruído acerca de todas as outras Verdades; visto que, para bem dizer, elas são nada mais do que ramos dessa vara, riachos dessa fonte. Esta verdade suprema as produz e as governa. Ela lhes dá o movimento, como a Engrenagem Mestra dá movimento a todas as outras engrenagens. Elas se ajustam a ela como se fosse a sua regra. Ela é a medida das outras e o nível. Diócles, aquele Sábio Filósofo, porém mais sábio pelo estudo e pela prática da doutrina de JESUS CRISTO, do que daquela de Platão e de Aristóteles, disse de forma muito excelente que quem se afasta do conhecimento de Deus se encontra em meio à extrema malícia, ou em meio à extrema estupidez [trata-se de Diócles de Cnido, um filósofo platônico que só nos chegou graças a Eusébio de Cesareia, não encontramos informações precisas sobre este personagem; ndt]; é, para bem dizer, um Demônio ou um animal. Ele [Diócles; ndt] acreditou muito justamente, sem dúvida, sendo – como é – o fundamento sobre o qual se sustentam aquelas coisas que fazem a grandeza e a dignidade do homem – quero dizer, seu Entendimento – ele decai de sua dignidade, perde todas as suas prerrogativas e todas as suas vantagens, não possui mais nada do que possa se vangloriar, se este fundamento lhe faltar; ele cai na baixeza dos animais; ele se torna inferior a tudo o que há de mais vil. Dessa forma, se eleva a revolta da cobiça contra a Razão; dessa forma também, chega a revolta da parte animal contra a parte espiritual; chegam a desobediência e o transbordamento das paixões. Ora, eu vos pergunto, em que estado nos coloca esta desordem? Pode haver servidão mais vergonhosa e cruel do que aquela a que nos reduzimos? O meio infalível para evitá-la é ter o conhecimento de Deus. Ele causa a salvação do Espírito; ele coloca, ele conserva o Entendimento no mais sublime nível; ele lhe faz adquirir uma plena e perfeita luz. Mas, da mesma forma como é preciso ter os olhos sãos, a fim de ver com clareza; como é preciso purgá-los e curá-los de suas manchas e de suas doenças; é preciso, também, purgar nosso Entendimento de suas falsas persuasões e de seus erros; é preciso curá-lo da Opinião, que causa suas doenças e suas manchas; que o impede de agir com conhecimento, que lhe arranca o discernimento e se opõe, sem cessar, à liberdade de suas funções. A isso devemos, sem dúvida, dedicar todos os cuidados, pois é através disso que vemos ou, eu ousaria mesmo dizer, é através disso que vivemos; visto que ele [o Entendimento; ndt] faz a diferença entre aquilo que nos é salutar e aquilo que não o é; pois é ele que, estando são ou doente, nos dá boas e más habilidades; ele mantém o bom ou o mau estado de nossa vida; ele nos faz amar e seguir o bem; ele nos faz detestar e fugir do mal. Assim como é pela claridade do dia que vemos os objetos distintamente, é também pelo conhecimento de Deus que julgamos de forma sã as coisas. Mas, será nossa infelicidade, será nossa malignidade, para bem dizer, estimar menos a visão do espírito do que aquela do Corpo; não nos esquecermos de nada desta última e descuidarmos daquela; achar que é indiferente tê-la como não a ter [no original latino, Nieremberg diz mais literalmente: "Valetudinem corporis ii aestimant, qui carent; sanitatem animi, qui habent", ou seja, "Estimam a saúde do corpo aqueles que são privados dela; a saúde da alma, aqueles que gozam dela"; ndt].

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 533-535.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Sétimo preceito - Capítulo II

CAPÍTULO II
Ficamos contentes por conhecer o curso e a influência dos Astros. Aprendamos que, por mais sublime e excelente que seja o conhecimento a que chegarmos, nunca poderemos nos gloriar razoavelmente de sermos sabedores e, muito menos, de sermos Sábios, se não conhecermos nossa enfermidade natural, se ignorarmos os defeitos a que está sujeita a nossa condição. Certamente é por este conhecimento que deve começar nosso saber. E, sobretudo, porque, sem ele, tudo será imperfeito e inútil. Somos curiosos por novidades; corremos atrás de coisas extraordinárias e raras. E eu vos pergunto, pode haver algo de mais novo, de mais extraordinário e raro do que ver que largamos o vício e abraçamos a Virtude? Agrada-nos conciliar os diversos e contrários sentimentos dos Outros. Não faríamos, porém, melhor conciliando nossos próprios sentimentos? Arrancando a repugnância e a contrariedade de nossos votos e de nossos desejos? Queremos instruir e corrigir os outros, e não pensamos em nos instruir e nos corrigir. Afetamos saber aquilo que se faz no mundo, e não cuidamos daquilo que devemos fazer. Estudamos tudo, menos aquilo que nos permite conhecermo-nos melhor, menos aquilo que mais nos importa. Que julgamento se fará de nós e se poderá fazer além de um julgamento muito desvantajoso, se, sabendo que nossa casa pegou fogo e vendo que várias pessoas correm de várias direções para apagá-lo, nós não corrêssemos, e nos divertíssemos considerando a forma das asas de uma mosca, contando as patas de uma lagarta, distinguindo as cores da concha de um caramujo? Insensatos que somos! Nosso coração queima de cobiça; a ambição, a avareza e o resto das paixões são fogos que o consomem; e, no entanto, nosso pensamento não se dedica a remediar isso! Não deixaríamos a casa de nosso vizinho pegar fogo; correríamos para adverti-lo, e não o faríamos perder tempo contando absurdos. E não sentiríamos vergonha, num perigo mais eminente, de nos entreter com visões e sonhos, de não nos advertir dos males intestinos que nos afligem, e não pensar de forma alguma em prevenir e em entreter aqueles pelos quais somos ameaçados. Nós dissimulamos e escondemos de nós mesmos a Sentença de morte pronunciada irrevogavelmente contra nós, na pessoa de nossos primeiros parentes. Escondemos de nós mesmos as emboscadas que a Fortuna nos prepara incessantemente; as imperfeições e as misérias inseparáveis de nossa condição. É disso que precisamos nos informar, e sobre o que devemos conversar antes de todas as coisas: se nos é permitido satisfazer à inclinação natural que temos pelo saber, se nos é permitido adquirir outros conhecimentos, se antes não formos instruídos neste. Não deixemos nosso espírito correr atrás de coisas que só podem lhe causar dor; mas empreguemo-lo na busca por meios de evitar aquilo que nos pode causar a dor. Aprendamos a sofrer com constância as infidelidades e as malícias da Fortuna, que são devidas apenas a ela, sem excitar contra ela, como costumamos fazer, nosso ódio. Aprendamos a ser pessoas de bem; a nos fazermos amar por aqueles que o são; a nos conformarmos absolutamente à Vontade de Deus; a evitarmos, o máximo que pudermos, irritar sua justiça; a nos tornarmos dignos de sua graça. Para dizer em uma só palavra, é preciso estudar a Sabedoria. É o verdadeiro estudo, para não dizer o único, que o Entendimento deve abraçar. Pelo menos, é aquilo no que, preferentemente, ele deve se aplicar. Certamente, as mais sublimes ciências, sem esta, são inúteis e vãs, são más e perniciosas.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 530-532.

Sétimo preceito - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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SÉTIMO PRECEITO
QUE é preciso nos abster do estudo das ciências vãs e das curiosidades inúteis


CAPÍTULO PRIMEIRO
Visto que nosso desígnio sempre foi de reparar as desordens e as faltas que levam o Entendimento a pecar em relação à vontade, e de fazer esse Ministro absolutamente capaz das funções que essa Rainha espera que ele cumpra; chamaremos atenção, agora, a respeito de suas principais faltas, e em seguida vamos nos dedicar cuidadosamente a corrigi-las. Como se não fosse suficiente que ele se deixasse, de repente, surpreender pelas imposturas da Opinião, agir covardemente na conquista da Verdade, imaginá-la apenas sob Imagens falsas e lânguidas, ele ainda cai na infelicidade de correr atrás de sombras e fantasmas, encher-se de curiosidades inúteis, ocupar-se com especulações das quais, em geral, ele só tira o lamento de não ter encontrado aquilo que procurava, que são sem fundamento e não têm nem certeza nem solidez. Que loucura a nossa! Que nos leva a diverti-lo com empregos tão vãos e tão pouco dignos dele! Que nos leva a ocupar por nada aquilo que nasceu para as mais sublimes e nobres ocupações, aquilo que deve se elevar ao Céu e se ligar a Deus mesmo! Que erro! Aplicarmo-nos com tão grandes cuidados em uma ciência cujo fruto será nos tornar ociosos e preguiçosos! Que nos desviará daquilo que é absolutamente necessário que saibamos, ou seja, conhecer e fazer o bem! Que nos lançará, ou pelo menos nos entreterá na preguiça! O estudo da Virtude não é, de forma alguma, infrutífero, não é vão; é útil, é proveitoso. Para falar mais adequadamente, é não saber nada, saber apenas as coisas que não têm uso algum na vida; ser sabedor daquilo que não serve a nada é muito próximo de ser ignorante; ter vontade de aprender isso é faltar com a capacidade de julgamento e de razão, é não ser sábio. Não fingiremos em dizer que a ciência inútil não apenas não é boa, como também é má e perniciosa. E, ainda mais, ela é um obstáculo para aquela de que realmente tiramos proveito; ela nos torna negligentes na prática do bem, e nos faz, finalmente, cair no desprezo de nossa salvação. Sem mentir, o saber que só é bom para passar, e como se diz, para mandar, para enganar o tempo, é suficientemente falso e enganador. Seria entender mal o preço e a dignidade da ciência, pensar que ela só sirva para o deleite do espírito; ela não é feita somente para recreá-lo, mas também para curá-lo; seu verdadeiro uso não é para dissipar a dor, mas para corrigir o vício; ela não nos deve ser um divertimento, mas um remédio. Existirá algum doente que busca mais o prazer do que a saúde? É preciso que nos preparemos para a vida, da mesma forma como nos preparamos para uma viagem; visto que nós somos todos viajantes nesse mundo, e tudo o que fazemos é passar por aqui para irmos ao Céu. Não temos que nos sobrecarregar com equipamentos preciosos, mas tão somente do mais útil e do mais necessário. É preciso nos prover de salutares conhecimentos, que nos preservem dos ultrajes da Fortuna, da mesma forma como nos provemos de roupas que nos garantem das injúrias do ar. É ser sábio ao mais alto grau compreender a maneira de bem empregar o tempo, saber administrá-lo, não perder nenhum momento sequer, empregar até a menor parte de tempo; assim como conseguir impedir a sua prontidão e a sua ligeireza através da constância e da firmeza de nossa dedicação. A ciência tem como objetivo as coisas úteis e honestas; ela é do mesmo nível e obra mesma da Virtude. Ora, ela decai dessa honra, assim como se afasta de seu objetivo, se ela se dedicar a ocupações frívolas e inúteis. A Virtude a repudia e a bane do número das coisas que lhe pertencem; ela a subtrai do seu meio e de sua família, por assim dizer. Sem dúvida, a Sabedoria é o mais precioso ornamento do espírito, é o mais belo, o mais precioso e mais rico adorno. Mas, no entanto, adquiri-la não nos será difícil se quisermos ser realmente sábios, e não nos contentarmos em sê-lo apenas aparentemente; se buscarmos uma virtude real e sólida, e não uma virtude de amostra e de ostentação. As coisas de que realmente temos necessidade não nos custam nada para serem encontradas, se não nos distrairmos buscando aquelas que nos são inúteis. Aquilo que nos é necessário consiste em muito poucas coisas; e a aquisição delas não é difícil. Assim como a Vontade não será mais feliz por desejar muito, também o nosso espírito não será mais satisfeito por saber muito. Esta avareza de conhecimentos não é menos perigosa do que aquela das riquezas de objetos. Aquele é sábio não na medida em que sabe muitas coisas, mas na medida em que sabe aquelas que servem e das quais se tira algum proveito. Aprendamos a viver e não a falar; façamos fundos de boas e salutares ações, e não de belas e delicadas palavras. Protejamo-nos, assim, desse tipo de estudo que nos leva à ociosidade. Apliquemo-nos àquele estudo que produz e que mantém a Virtude; que nos faz conhecer a diferença entre o bem e o mal, que nos faz odiar e fugir deste, que nos faz amar e abraçar a outra.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 526-530.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Sexto preceito - Capítulo II

CAPÍTULO II
Quanto aos males cuja amargura passa com o tempo, que os moderou e matou, sem dúvida a lembrança nos será muito útil também; dela colheremos esta infalível vantagem: ressentir bem pouco daqueles que nos afligirem, pela comparação que faremos com aqueles do passado, que só eram tão grandes por causa de nossa Opinião, sendo, às vezes, até mesmo muito menores, não somente por não nos causar nenhuma dor, como também por nos dar alguma alegria, pela segurança que teremos de sofrermos menos e poder sofrê-los com mais facilidade. Através disso, aprendemos que o verdadeiro caráter do Sábio é ser capaz de se lembrar das coisas passadas, se dedicar às presentes e se preparar para aquelas que virão [no original latino, Nieremberg cita, nesse ponto, um trecho de Ésquilo; ndt]. É preciso, portanto, que façamos uma exata consideração sobre o passado, para não cair no inconveniente de perder o inestimável fruto que deve vir disso; e não incorrer na censura de ter envelhecido inutilmente e não ter adquirido conhecimento maior do que aquele com o qual viemos ao mundo. É preciso prever o futuro e nos prepararmos para ele, para não encurtar voluntariamente a nossa vida, visto que viver sem estudar e sem conhecer as coisas futuras é morrer antes do tempo; é cortar, por nossa falta, aquela porção da vida que nos resta ainda. É, para bem dizer, nos encerrar vivos na tumba. Devemos nos lembrar que somos mortais, mas não é necessário que nos imaginemos já mortos. Certamente, se nos preparamos para sofrer, aprendemos a não sofrer. Se estudamos a maneira correta de suportar a infelicidade, nós nos garantiremos e iludiremos nossa miséria. Pensemos que os males que não nos afligem agora e que não estão presentes nesse momento, já estiveram antes, e que alguém já os ressentiu. Pelo contrário, imaginemos que aqueles que nos fazem sofrer hoje, passarão como todos os outros passaram, que, algum dia, eles não existirão mais. Ora, se eles foram vencidos pelo tempo, será que não deveriam ser ainda mais seguramente vencidos pela Razão? Será que ela não é mais forte do que ele? Será que nós acreditamos que ela tenha menos potência do que ele? Tendo colocado no esquecimento muitos males, seríamos muito fracos de nos deixarmos vencer pela apreensão de tão pouco. Como perdemos a memória desses males, não nos será difícil perder o temor. Aqueles que nos acolhem agora não são mais estranhos do que eram aqueles que nos acolheram no passado; o tempo que nos livrou daqueles nos livrará, nos curará destes; eles passarão e irão embora por si mesmos.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 524-526.

Sexto preceito - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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SEXTO PRECEITO
QUE podemos fazer bom uso de nossa memória para não sermos surpreendidos pelos males

CAPÍTULO PRIMEIRO
Em seguida [no texto que vimos usando, o tradutor nomeou este preceito como sequência dos "preceitos particulares contra a opinião", no entanto, no original latino, Nieremberg nomeia este como sequência do "Quinto preceito"; optamos, portanto, por manter a proposta do autor; ndt], vamos nos instruir acerca de um novo remédio que não tem menor eficácia do que o precedente no que diz respeito a impedir de sermos surpreendidos pelos males, e para nos dar meios de ressenti-los pouco quando eles nos chegarem. Trata-se de pensar naqueles que sofremos antes, de colocá-los em parte outra vez na memória e, em parte, bani-los, suprimi-los, enterrá-los num eterno esquecimento. Como há aqueles que não são de forma alguma enfraquecidos pelo tempo, que não passam com ele, e que só fazem se endurecer quanto mais duram, sem dúvida é preciso, para sempre, condenar o pensamento sobre eles, defender nosso espírito absolutamente de nunca mais representá-los. Se, por uma certeira e infeliz comichão de nos afligirmos a nós mesmos não conseguirmos deixar de pensar em nossas infelicidades passadas, sentimos algum prazer em descobrir nossas chagas e chega mesmo a parecer que queiramos torná-las incuráveis e mortais, então, certamente, é preciso fazer com que nossa Razão aja poderosamente, a fim de dissipar nossa dor; é preciso que ela se dedique com todas as suas forças no sentido de esclarecer as nuvens que se elevaram em nosso espírito, e se dedique também a apagar as malvadas imaginações que nos são suscitadas. Se ela não conseguir, que tenhamos a habilidade de opor a elas outras imagens agradáveis, combatendo nossa tristeza presente através da lembrança de nossa alegria passada, pensando nas coisas que felizmente conseguimos e das quais recebemos consolação e prazer. O feliz efeito deste artifício é suficientemente justificado pelo exemplo daquele famoso Escravo que tremia de alegria nos tormentos, e que suavizou o rigor de seu suplício pela satisfação de ter vingado a morte de seu Mestre [o original latino faz referência a um certo Asdrúbal, mas não está claro a qual se refere, visto haver uma grande quantidade de personagens da história de Cartago com esse nome; ndt]. Mas, esse remédio só serve para os espíritos fracos e tímidos, para aqueles que não têm a coragem de sustentar a abordagem e a presença dos males. Ser-nos-á muito útil também formar a imagem das prosperidades que podem nos chegar, deixar que nosso espírito passeie por toda a extensão dos, por assim dizer, vastos campos da esperança; concedendo-lhe um prelúdio dos bens que pode receber no futuro. E é nisso que terá seu uso, mas um uso inocente e legítimo, a doutrina daquele engenhoso artesão das Volúpias, Epicuro, que queria que não tivéssemos nem lembranças nem pensamentos acerca dos males, mesmo quando fôssemos o mais fortemente afligidos por eles. E que, em meio às cruzes e às perseguições da Fortuna, nosso espírito concebesse incessantemente a Ideia de coisas prazerosas e se entretivesse com aquelas que podem enchê-lo de regozijo. E, para dizer a verdade, quem nos pode impedir de prolongar nossa alegria para além de seus limites naturais? Visto que o podemos, muito facilmente, fazer através da lembrança e dos discursos. Sirvamo-nos desse meio infalível que temos para saborear dela outras tantas vezes quanto nos aprazer; esse meio de fazê-la voltar todas as vezes que quisermos; visto que este meio é tão fácil de empregar que, para praticá-lo, só nos é preciso a imaginação e o pensamento.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 522-524.

III Preceito particular contra a opinião - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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PRECEITOS PARTICULARES CONTRA A OPINIÃO
TERCEIRO PRECEITO
QUE é preciso sentir apreensão através da razão e não imaginar motivos de temor

CAPÍTULO PRIMEIRO
Mas, é preciso sobretudo tomar bastante cuidado para que esta previdência dos males que nós recomendamos tão expressamente, e que é um soberano antídoto, proceda da reta persuasão do Entendimento e não de seu erro; que ela venha da razão pura e sã e não da imaginação desordenada e corrompida. Sem dúvida, há diferença entre o que é e o que somente parece ser; entre a verdade e a mentira. É preciso exatamente premeditar tudo aquilo que a Fortuna tem de meios para nos causar alguma pena; tudo o que sua injustiça e sua malignidade podem colocar em prática para nos afligir. Mas, levar nossa previdência e nossa apreensão para além disso é certamente nos atormentarmos voluntariamente, é encontrar com prazer motivos para nossa tristeza e nossa dor. Como o mais excelente remédio praticado fora de hora não apenas não faz bem como é capaz de causar o mal; da mesma maneira, só sofreríamos muito com as apreensões que nosso espírito conceberia sem necessidade; e a previdência das infelicidades, nos sendo muito salutar quando vemos que seremos acolhidos por elas, é muito prejudicial quando é fora da aparência com a qual elas nos chegam realmente. É preciso, portanto, que nossa apreensão seja justa, seja judiciosa, tenha um fundamento legítimo e que seja declarada pela Razão. De outra maneira, qual seria a nossa pena por estarmos perpetuamente alarmados pelas ilusões e pelas quimeras? Temermos todos os fantasmas que uma imaginação ferida e doente pode formar? É disso que nasce a necessidade, pelo contrário, de desviar nosso espírito muito cuidadosamente; de evitar a premeditação onde não temos nenhum motivo de apreensão, onde aquilo de que se tem apreensão é vão, na medida em que é imaginário e não vem de nós, e por isso vai embora do mesmo jeito que chegou, passa e se destrói a si mesmo; o remédio não é de forma alguma necessário para quem se porta bem, para quem só está doente pela imaginação. Será que não temos piedade alguma por aquele Grego cuja vida foi apenas um contínuo horror por tudo aquilo que não é capaz de causar horror algum? Que sentia apreensão, indiferentemente, por todas as coisas? Para quem o ruído do vento, o movimento das folhas de uma árvore, o latido de um cão, o canto de um galo, o relincho de um cavalo, e outras motivações ainda mais ligeiras lhe davam febre e eram percebidas por ele como desígnios e conspirações contra a sua pessoa? Que não se cria em segurança num quarto bem fechado, e sob um manto de ferro com o qual ele se cobria dia e noite? [no original latino, Nieremberg escreve: "Artemonem infelicem fecit stulta inanium periculorum formido. Plus laceravit illum supervacua cura, quam ipsa discrimina vexatent. Cassandrum examinavit timor statuae". O que poderia ser traduzido da seguinte forma: "Artemão ficou infeliz por causa de um temor louco por vãos perigos. Mais infeliz é aquele que se atormentou por uma diligência supérflua do que o foi de fato vexado pelos mesmos perigos. Cassandro desanimou com medo de uma estátua". Estamos, pois, diante de dois personagens: um é Artemão, um engenheiro grego que viveu no século V a.C.; o outro é Cassandro da Macedônia (350 a.C. – 297 a.C.), filho do general macedônio Antípatro (397 a.C. – 319 a.C.), foi Rei da Macedônia entre 305 a.C. e o ano de sua morte, tendo fundado a dinastia Antipátrida. Segundo o historiador Plutarco, Cassandro, tendo passado perto de uma estátua de Alexandre o Grande, em Delos, teve sensação de desmaio; ndt]. Sem dúvida, ele sofreu muito mais com esta perpétua e vã apreensão, do que ele teria sido se tivesse sido atingido por todos os males que ele imaginava. O que diremos daquele outro infeliz que não conseguia se sentir seguro diante da visão de uma Estátua? Sua imaginação é que lhes causava pena; ela os persuadiu que eles não poderiam encontrar segurando em lugar algum, que as Cidadelas mais fortes, as torres de bronze, por assim dizer, os asilos mais invioláveis, não o eram para eles, visto que todas essas coisas não conseguiam defendê-los deles mesmos, e visto que eles não conseguiam preservá-los do mal que sua fantasia desordenada lhes suscitava. E verdadeiramente como só ela está doente, somente ela deve ser tratada, somente ela precisa de remédio. E, sem dúvida, é suficiente remediá-la, mais do que se encher de cuidados; principalmente quando a cura será tão difícil, visto que, aparentemente, não há nenhuma segurança nesse empreendimento, e visto também que por mais poderosa que seja a Razão, ela parecerá sempre incapaz de conseguir vencer. Porque, que resistência e que pena lhe causam um espírito que entra na sombra de todas as coisas? E, além do mais, não saberemos nós que é quase por milagre que se curam aqueles que são possuídos por uma Opinião envelhecida e fortalecida pelos tempos? Assim, por mais cuidado que se possa ter para lhes fazer conhecer a injustiça de suas suspeitas, por mais que se lhes faça ver que suas apreensões são vãs e sem fundamento, não conseguimos vencer seu espírito [da Opinião; ndt] e, então, eles se abandonam a isso mais fortemente, eles o temem e o multiplicam. Por mais que se lhes mostre as coisas evidentemente seguras e inocentes, eles as têm todas por suspeitas e por perigosas; sempre há, para eles, algum acidente sinistro que os ameaça; algum incômodo encontro que deve acontecer infalivelmente. Na verdade, se há algum remédio para eles, ele só vem do tempo; tudo o que é preciso esperar é o Médico das doenças desesperadas. E é isso que, agora, iremos fazer: não fazer coisa alguma a esse respeito, deixá-los até ao ponto de sua loucura passar e que eles voltem a si e que se tornem capazes de receber os conselhos da Razão. Se acontecer, portanto, que nosso espírito se ligue a uma imaginação triste e funesta, cuidemos de nos divertir tentando contradizê-la e combatê-la; nisso, é preciso que nos governemos da mesma maneira como fazemos com os impertinentes, que disputam obstinadamente sobre qualquer coisa e não conseguem parar com nenhuma razão. Como se deixa que falem tudo sem responder a nada, e como se vence melhor a eles pelo silêncio do que pelo discurso, não precisamos nos dedicar a refutá-la e convencê-la [à imaginação triste e funesta; ndt]; mas, de fato, tudo o que é preciso fazer é desviar nosso espírito dela, com medo de que, vindo a escutar e se prender a alguma de suas palavras, ele se deixe persuadir por ela. É preciso sufocá-la ao invés de respondê-la; tratá-la como se tratam os frenéticos, que são amarrados e trancados para que não façam mal algum. É preciso reduzi-la até ao ponto de ser vencida pelo tempo, se não puder ser vencida pela Razão. Eis o verdadeiro remédio contra esses terrores vãos e pânicos, que nos fazem não saborear os desígnios generosos, que nos desviam das boas ações, e nos impedem de progredir na Virtude. Eles [esses terrores vãos e pânicos; ndt] se ligam, ordinariamente, aos espíritos enfermos e doentes. Depois de lhes ter abalado os sentidos, eles abatem tão fortemente sua coragem que, para levantá-la outra vez e mantê-la na posição direita, é preciso apresentar-lhes um valor artificial, esconder-lhes o perigo, para que, não o conhecendo, eles ajam com mais resolução e não sintam nenhuma apreensão. Sem dúvida, há muitos homens que não são valentes, porque são temerários; e há homens que não têm medo porque que não têm julgamento. Este artifício não deve, porém, excluir inteiramente a assistência da Razão; é preciso empregá-la, quando o espírito voltar do terror que lhe havia feito sair de si mesmo. Porque, enquanto ela não o possui, será inútil empregá-lo. É inútil agir pela via dos conselhos e das exortações com um homem que está violentamente transportado pela cólera; é preciso esperar que ela passe, que seu sangue esfrie, e que o tumulto que se levantou em seu espírito se acalme.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 517-521.

sábado, 8 de janeiro de 2011

II Preceito particular contra a opinião - Capítulo III

CAPÍTULO III
O soldado, em meio à guerra, o que mais espera além das feridas? O que mais poderia esperar além de golpes, um Atleta que está no liceu? Mas, as Armadas escaramuçam antes de se encontrarem no campo de batalha; elas fazem como que ensaios de suas forças antes de combaterem seriamente. Não se tira da bainha a espada que não se sabe usar; não se vai ao campo, se antes não se esteve nos lugares de esgrima. A Fortuna é uma poderosa e perigosa adversária contra a qual devemos combater; temos que esperar dela apenas feridas; mas, antes de entrar no combate com ela, é preciso que aprendamos a nos defender de seus golpes, é preciso que saibamos a forma de nos desviarmos e de nos defendermos. Um Ateniense tendo que se bater num duelo contra um Coríntio, e que se cria muito inferior em força e em habilidade ao rival, pintou-o para si mesmo tão furioso que parecia que ele nunca poderia dar conta. Quando eles se apresentaram um ao outro, vendo-o muito menos terrível em pessoa do que havia pintado, e muito inferior àquilo que ele se havia figurado do rival, ele não teve nenhuma apreensão e se tornou corajoso até ao ponto de não ter dificuldade alguma para vencê-lo [no original latino, Nieremberg não refere esse fato; ndt]. Outro, não podendo se persuadir de ir à guerra, porque havia pensado nos perigos tão grandes e tão frequentes da guerra, a ponto de imaginar que sempre se morre na guerra e que toda e qualquer flechada derruba todo e qualquer homem, tendo se desenganado através de uma experiência contrária, tirou esta vantagem de seu erro: se não a vantagem de desprezar o perigo, pelo menos a de não o temer [também esse exemplo não consta do original latino; ndt]. Devemos pintar a Fortuna para nós da forma mais furiosa e temível que ela possa ser, para que não nos assustemos com ela quando se apresentar diante de nós, e para que adquiramos a coragem através da diferença que encontraremos entre aquilo que pensamos e aquilo que ela é verdadeiramente. Da mesma forma como acontece na prática que temos com os animais mais selvagens, a verdade é que, lidando com eles, eles se tornam tratáveis e familiares. Da mesma forma acontece com o objeto mais desagradável e hediondo: ele deixa de sê-lo e não nos dá mais medo quando nós o temos frequentemente diante da vista. Não teremos medo algum dos males que uma séria premeditação nos tiver frequentemente representado. Sem dúvida, aquilo que eles têm de terrível, não o é; eles o retiram de nossa Opinião; é somente ela que lhes dá esta aparência e esta máscara que nos assusta [no original latino, Nieremberg termina essa argumentação dizendo: “Hanc merito Lamiam vocavit Socrates”, que poderia ser traduzido assim: “esta mereceu ser chamada, por Sócrates, de Lâmia”. Trata-se de uma referência a um monstro da mitologia grega, que tem bela aparência, mas ataca os jovens e lhes suga o sangue; ndt]. A armada do último Rei da Macedônia que foi vencida e levada em triunfo pelos Romanos, perdeu inteiramente a coragem à vista de uma grande obscuridade que cobriu repentinamente o Céu e fez como que uma noite em pleno dia [no original latino, Nieremberg, nomeia a armada de Perseu; ndt]. Os Romanos, pelo contrário, que já haviam sido avisados por seu Capitão da causa desse efeito, que era apenas uma falta da luz do Sol por causa da interposição da Lua entre ele e a Terra, não somente não se alarmaram, mas souberam muito bem fazer bom uso dessa situação. Por um acidente semelhante, e por uma ignorância semelhante acerca da causa que o produzia, a Armada de Nícias [trata-se do general ateniense Nícias (c. 470 a.C. – 413 a.C.), que atuou na Guerra do Peloponeso; ndt], um dos maiores homens da Grécia, tendo se assustado e fugido, obscureceu e eclipsou a glória desse Capitão. Certamente, como o favor da Fortuna desaparece e se esconde repentinamente; como ela tem suas falhas e seus eclipses, não nos será menos vantajoso preveni-los, como o é para os Astrólogos que preveem os eclipses do Sol. E quando nós os virmos acontecer, não nos surpreenderemos e não cairemos em desordem.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 514-516.