CAPÍTULO IV
Portanto, é indubitável que, tendo o conhecimento de Deus, teremos as luzes necessárias para dar o justo preço das coisas; corrigiremos as falsas impressões que a Opinião nos deu sobre elas; não nos deixaremos mais surpreender por sua aparência e seu brilho. Assim, seja que as possuamos, seja que sejamos despojados delas, sempre teremos presente em nós que não há nada de bom nelas além de seu uso; que elas só valem pela escolha e pela estima que nosso espírito faz. Da mesma forma que as crianças só cuidam das pedrinhas com as quais brincam na medida em que lhes é útil para alguma coisa e, depois, as desprezam; também nós só devemos estimar as coisas na medida em que nos servem para chegar a um fim que nos foi proposto; não temos que cometer a infelicidade de tomá-las como fins em si mesmas e não devemos ligar nosso amor a elas; é preciso temer incorrer na justa censura de ter menos razão e prudência que as crianças. Como sabemos que todas elas procedem de Deus, ficaremos mais à vontade de remetê-las sempre a Ele. Elevando nosso espírito para o Céu, saberemos que há Volúpias infinitamente mais encantadoras do que todas aquelas que buscamos juntas e que saboreamos apenas através dos sentidos; Volúpias muito mais perfeitas, na medida em que não têm mais relação com os sentidos. E disso, sem dúvida, não nos dedicaremos mais a preferir aquelas [Volúpias; ndt] do corpo; não ignorando o quanto ele nos é pouco necessário para saborear as verdadeiras delícias, visto que Deus, que não tem corpo, possui uma soberana felicidade. Não tomaremos mais como sinal de satisfação e de alegria tudo aquilo que tem a aparência [de satisfação e de alegria; ndt], aquilo que os homens fazem rindo; lembrando-nos de que os insensatos e os frenéticos riem mesmo quando um furor mais violento os transporta, mesmo quando eles se ferem com suas próprias mãos e quebram a própria cabeça contra as paredes. Certamente, por mais agradável que seja a fantasia que temos sobre as Volúpias sensuais, ela não nos tocará e não nos tentará. Pelo contrário, teremos piedade, teremos horror daqueles cuja vida é uma contínua devassidão; que, dia e noite, se enchem de vinho e de carne; que, por uma loucura semelhante àquela dos Bárbaros, adoram aquilo que os destrói; que, por uma desordem extrema, sujeitam sua alma e sua razão a seu ventre; que se estupidificam voluntariamente pelos excessos da boca e por outras dissoluções. Que grandes e remarcáveis vantagens mais podemos esperar do conhecimento de Deus? Da mesma forma como ele [esse conhecimento; ndt] nos eleva acima dos eventos humanos, também faz com que eles não nos toquem; ou, pelo menos, faz com que eles não causem uma tão grande impressão em nós a ponto de incomodar nosso repouso, a ponto de alterar nossa alegria. Esse conhecimento nos permite adquirir uma constância, uma firmeza, que não é abalada pelos violentos ataques que recebemos da Fortuna. Através dele, aprendemos a não temer a morte; a não amar a vida; vida que só é preciso temer na medida em que, para dizer a verdade, sendo má, fará com que a morte seja também má. O que mais eu poderia dizer? Esse conhecimento nos inspira uma alta resolução; coloca nosso coração no lugar certo, a ponto de, qualquer perigo que se nos seja apresentado, nós nos expomos com coragem, por pouco que reconheçamos nisso alguma glória da Virtude. Consideramos a vida e a morte indiferentemente; não elegemos nem temos paixão por uma mais do que pela outra, para além daquilo que um respeito tão nobre nos obriga. Se nos for necessário morrer, não apenas não resistiremos a isso, como também agiremos com alegria; e, então, não saberemos mais o que é temer o ferro e o fogo; nada de tão terrível nos assustará. Aquele que retomou a Seita dos Estóicos e reconstruiu o Pórtico, Epícteto [Epícteto (55-135); ndt], exortando seus discípulos para a prática desta Filosofia, segundo o testemunho de Arriano [trata-se de Lúcio Flávio Arriano Xenofonte (c. 92 – c. 175), que foi historiador da Roma antiga; ndt], seu intérprete, lhes propunha o exemplo dos Cristãos; e, para dizê-lo com em suas palavras, construía o modelo de sua Sabedoria sobre sua loucura. Ele dava esse nome [loucura; ndt] à segurança com a qual ele os via abraçarem os suplícios e se apresentarem à morte. Ele chamava loucura a mais eminente Sabedoria, a Sabedoria mesma de Deus; verificando aquilo que havia predito o divino Apóstolo [São Paulo; ndt], que ela seria tomada, pelos homens, como loucura. Mas, como ele achava admirável aquela loucura! Tanto que ele propunha a imitação deles àqueles que queriam se instruir na Sabedoria! Podemos dizer, aqui, a mesma coisa: quem se curar dos erros que reinam no mundo, quem assumir sentimentos contrários àqueles da multidão enganada, não será visto como Sábio, mas certamente estará entre aqueles que não o são.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 544-547.
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