CAPÍTULO III
Além do mais, se não podemos descobrir plenamente o sentido da Verdade, é preciso que nós o aprendamos daqueles que o possuíram eminentemente, que adquiriram sua inteira e perfeita inteligência. Sem dúvida, eles no-la poderiam dar suficientemente através das palavras. Isso, se nos fosse suficiente tirá-la de suas bocas; mas nós a tiramos muito melhor ainda de suas obras; nós nos instruímos com muito mais certeza através de suas ações – mais do que por seus discursos. Como fazemos muitas coisas com o testemunho de outros, atuaremos certas Verdades a partir do relatório daqueles que, as tendo conhecido felizmente, as praticaram utilmente em seguida. Abraçaremos o bem os imitando e tendo fé neles. Aqueles que uma alta Sabedoria e uma eminente piedade são considerados por nós como luzes e ornamentos do mundo. Diremos: “Os Filósofos e os Santos fizeram assim, por que eu não deveria também fazer o mesmo? Foi por meio disso que eles atingiram o ápice da Virtude; foi por meio disso que eles ganharam o Céu. Se esta Verdade que lhes fez fazer grande coisas, coisas que admiramos, não for capaz de me excitar, certamente o seu exemplo o fará. Por mais ligado que eu seja a meus próprios sentidos, me sentirei forçado de abandoná-los para seguir o seu [sentido; ndt]; conformar-me-ei, apesar de mim, talvez até mesmo com pesar. Sem dúvida, seus efeitos prevalecerão sobre minhas persuasões, e serão levados até mesmo sobre meus sentimentos; servir-me-ão de regra, manter-me-ão ligado à lei, com a qual será necessário que eu concorde. Pensarei no fato que não foram poucas as coisas que concederam a estes excelentes homens a graça de tão sublimes pensamentos e lhes fez produzir ações tão extraordinárias. Será que eu não consigo ver o quão constante é esta Verdade, segundo a qual as riquezas e os outros dons da Fortuna são extremamente contrários ao repouso do espírito? Ou a Verdade segundo a qual elas são perigosas a quem as ama? Que muito frequentemente elas causam infelicidade e ruína em quem as abraça? Será que esta verdade não é suficientemente forte para me comover? Ela o será na medida em que eu tiver presente aquilo que ela faz acontecer àqueles que a conheceram plenamente e penetraram até ao seu centro. Só tenho que imitá-los e seguir o caminho que eles seguiram. Só tenho que fazer o que eles fizeram, se eu não me tiver proposto ultrapassá-los e fazer melhor do que eles”. Esta Verdade que não me excita e não é capaz de me levar ao desprezo das riquezas inspirou a muitos Sábios, que, para se privarem inteiramente das riquezas e perdê-la sem a menor esperança de reavê-las, lançaram-nas no mar. Acerca disso, pensemos no Filósofo Crates [trata-se de Crates de Tebas (c. 365 a.C. - c. 285 a.C.); ndt] glorificando-se de haver evitado sua perda perdendo suas riquezas, e de se ter garantido de um naufrágio abandonando-as. Consideremos sua alegria por se haver livrado de um mau mestre como é o ouro, um mestre que mostra por seu falar e por seu rosto o mal que causa àqueles que o servem, e as contínuas apreensões que faz sofrer. Esta mesma Verdade fez com que Serapião [trata-se de Serapião Sindonita, monge egípcio que viveu no século IV; ndt] largasse todos os seus bens; esta Verdade o despojou tão absolutamente que podemos mesmo dizer que ela praticamente o deixou nu. E eis o mestre de todos os bens; aquele a quem todas as coisas pertencem soberanamente; o Senhor da Terra e do Céu, que ela [a Verdade; ndt] tornou tão pobre que não teve nem mesmo onde repousar a cabeça. Depois disso, será que podemos duvidar dela? Que espírito não ficaria persuadido e não se deixaria impressionar por ela? Certamente, onde as provas são assim tão manifestas, é supérfluo alegar testemunhas. Nomeamos três [Crates de Tebas, Serapião Sindonita e Jesus Cristo,que não aparece nomeado, mas é referido - "Senhor do Céu e da Terra", que não tinha "onde repousar a cabeça"; ndt]; mas nomearíamos trezentas, um número infinito. Eis como aquilo que não faríamos pela força da Razão, o fazemos pela força dos exemplos; eis como, por mais lânguido que seja o nosso Entendimento, eles [os exemplos; ndt] são fortes o suficiente para excitá-lo. Com isso, fica certo que, tão logo pensamos na virtude de outro, a imagem que se imprime em nosso espírito forma ali mesmo um secreto e salutar orgulho que nos faz crer que não somente somos capazes de nos igualar a eles, como também somos capazes de ir além deles. Muitas vezes, imaginamos que somente com fortes considerações e razões muito poderosas é que conseguimos formar em grandes desígnios que nos dão admiração. Persuadimo-nos que nunca é por pouca coisa, que estes homens excelentes que nos propomos imitar, e que excitam nossa emulação, tiveram todos os cuidados e aplicaram todos os seus esforços para conseguir vencer nessas coisas. Podemos, muito mais, conseguir um notável socorro em nós mesmos, excitando em nós uma generosa resolução de fazer o bem, bastando para isso que nos deixemos governar pela Razão e tão logo ela tenha sobre nós a potência absoluta que ela deve ter. É preciso nos lembrar deste feliz movimento que nos levou à prática da Virtude; pegar emprestado de nossa memória o vigor que falta ao nosso Entendimento, e aquecer este último através daquela: “No passado, eu me deixei tocar por esta Verdade; fui capaz de ser tocado por suas impressões; ela me persuadiu; por que, agora, ela não me toca? Se, antes, eu a deixei agir, o que me impede de deixá-la agora? Se, antes, fui algumas vezes virtuoso, certamente posso ser ainda; posso me dedicar para o bem, posso me dedicar, até mesmo, com mais segurança de que conseguirei, com mais certeza de que sou, para mim mesmo, um exemplo; de que não é sobre a promessa de outros que eu construo, mas sobre minha própria fé”.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 487-491.
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