terça-feira, 4 de maio de 2010

Quarto prelúdio - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO PRIMEIRO
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QUARTO PRELÚDIO
QUE cada um pode ser o Autor de sua alegria

CAPÍTULO PRIMEIRO
Ei-nos felizmente desenganados da crença que poderíamos ter de que as coisas que estão fora de nós produzem nossa alegria. Justificamos plenamente que um tão nobre efeito não lhes pertence e que deve vir absolutamente de nós; que elas [as coisas que estão fora de nós] não apenas não podem entrar na composição da alegria, como que também nosso corpo mesmo é supérfluo para este fim, e que apenas o nosso espírito é suficiente. O que temos que fazer agora é trabalhar em uma obra muito preciosa e necessária: levar todos os nossos pensamentos e todos os nossos cuidados para o estabelecimento de nossa felicidade. Devemos ficar encantados de aprender que o meio reside puramente em nós; podemos mesmo dizer que ele está nas nossas mãos. Mas ainda que sejamos certos disso, não aproveitamos nada, nós deixamos degenerar o único instrumento próprio para esta obra porque não o empregamos; nós o tornamos inútil por causa de nossa preguiça. Todos os outros instrumentos dos quais nos servimos são incapazes de uma operação tão alta, são defeituosos e inúteis. Por que é que deixamos ociosa a nossa Vontade – a verdadeira, a digna causa de um tão excelente efeito? Por que é que deixamos ociosa a nossa Vontade – a única a quem é dado o poder de fazer a alegria? Qual a vantagem em ser suficientemente poderoso sobre nós mesmos para querer as coisas que nos são motivo de salvação? Nós não devemos estimar menos a Vontade do que aquilo que a pode produzir. E, sem dúvida, na medida em que temos liberdade para amar, temos também o poder de produzir o objeto de nosso amor. Por esta excelente liberdade, nos tornamos os árbitros de nossa paz e de nossa alegria, nos tornamos os operários mesmos de nossa paz e de nossa alegria, adquirimos uma felicidade muito mais perfeita, pois vem de nós e não de outros, pois nós a temos como propriedade e não como empréstimo – como é a alegria que as coisas nos oferecem, que, podemos dizer, não valha mais do que a miséria. A alegria e a tristeza não vêm a nós com violência e não ocupam o nosso espírito forçosamente; elas acompanham a Vontade, elas são suas seguidoras, por assim dizer, mas elas não são menos livres do que a Vontade. Quem não poderá ser feliz? Eu vos pergunto. Quem não quererá estar na posse da alegria? Se ela se encontra mesmo no mais baixo e infeliz degrau da condição humana, nas mais audazes perseguições do desejo, em meio das maiores misérias e, para dizer tudo, se os Escravos a conservam para si nos incômodos e nos tormentos e só a perdem quando perdem a vida? Este Bárbaro, de quem não conhecemos o nome [no original latino, Nieremberg escreve: "Barbarus ille, (excidit aliud nomen, non potuit excidere gloria,) Hispanus ille obtruncator Asdrubalis, domini ultor, posthuma (rara avis) fide, qui retinavit nomen immortale sine nomine, comprehensus, inter cruciatus ipsos risu exultabat"; ndt], mas de quem a glória é tão conhecida, que, por um exemplo de fidelidade rara e sem igual, sacrificou sua vida para vingar a morte de seu senhor, não apenas não se espantou com os suplícios que lhe haviam preparado, mas espantou, por sua segurança, a crueldade mesma de seus carrascos. Quando eles colocaram as mãos sobre ele, ele estremeceu de alegria e começou a rir tão fortemente que parecia que eles eram bufões e o aparelho de sua morte uma comédia. Se um infeliz cheio de correntes, que não tinha nada de livre além de sua vontade, brincou com aquilo que há de mais terrível, se ele não temeu em nada a morte, se ele a desprezou, se ele a venceu apenas com a grandeza de sua coragem, qual é a calamidade, qual é a dor que nos poderá arrancar a alegria? Por qual rude e poderoso traço a má fortuna poderá nos abater, se resistirmos a ela corajosamente e opusermos a ela uma firme resolução? Passemos do mais baixo nível que possa existir entre os homens para um mais eminente: acrescentemos o exemplo de um soberano de nascença àquele de um sujeito abjeto e servil. Gelimero [general-rei de origem germânica que, com suas tropas, invadiu territórios que pertenciam ao Império Romano – a Hispânica Bética, que hoje equivale ao território espanhol. Foi derrotado no período do governo de Justiniano I (483-565), numa campanha liderada pelo general Flávio Belisário (505-565); ndt], Rei dos Vândalos, vencido pelo Imperador Justiniano, e levado por ele mesmo, junto com toda a sua família, em triunfo, conservou tão felizmente a tranquilidade de seu espírito que, tendo estourado de tanto rir quando lhe colocaram correntes, pensaram que a miséria de sua condição lhe tivesse perturbado os sentidos; mas ele deixou bem claro que estava perfeitamente são, dizendo que ele ria da extravagância da Fortuna que, de Rei, o havia feito um Escravo. Certamente, foi a gota d’água para a Fortuna ver-se ridicularizada por aquele que ela pensava ter colocado em desespero. O que poderemos nós, depois disso, temer dela, visto que seus mais violentos esforços fazem com que ela nos pareça ridícula e nos force a rir não somente quando ela ri de nós, mas também quando ela nos persegue? Para não mentir em nada, visto que seu furor é, para nós, muito mais matéria de desprezo que de temor, não nos será nada difícil conservar nossa alegria nas mais fortes tempestades que ela possa nos suscitar.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 88-91.

Terceiro prelúdio - Capítulo VIII

CAPÍTULO VIII
Passemos agora àqueles de quem é ainda mais justo o exemplo, visto que sua sabedoria lhes vem do alto, visto que, além das luzes da Razão, têm ainda as luzes da Graça. Mirógenes [não encontramos referências acerca deste personagem; sabemos apenas de um certo Abade Mirógenes; ndt] feliz de ver seu corpo todo coberto de chagas, ou para dizer mais claramente, de ver seu corpo como uma terrível chaga, encontrava sua felicidade na sua miséria. Longe de pensar e de se lamentar de que ela [a miséria] fosse excessiva, ele desejava que ela fosse maior; ele exortava àqueles que testemunhavam compaixão por ele a pedir a Deus muito mais a saúde de suas almas do que a de seus corpos; ele lhes conjurava a desejar muito mais sua salvação que sua cura. Meu Deus, ele dizia, faz que eu sofra por muito tempo, prolonga a duração de minha aflição. Este era o objeto mais comum de seus votos e de suas orações, visto que ele sabia muito bem que não apenas as dores e os sofrimentos não eram capazes de destruir a alegria, mas são elas que a causam e estabelecem; visto que ele via que o espírito daquele corpo enfermo e apodrecido se conservava firme e vigoroso. De que mais ele precisaria para possuir a felicidade, quando sabia que seu corpo não era em nada necessário para obtê-la? Não nos surpreendamos em nada, depois disso, ao sabermos que ele considerava os bens do mundo como supérfluos, que ele não quis aceitar os bens que lhe foram oferecidos pelo Sofista Eustóquio [também não encontramos referências a um sofista com este nome; na antiguidade, encontramos apenas a referência ao médico de Plotino, que tinha este nome; ndt]. Barnabas Anacoreta [não encontramos referência a este personagem; ndt] tendo um espinho no pé, alegrava-se em si mesmo e nunca conseguiu encontrar razões para tirá-lo dali, respondendo àqueles que lhe solicitavam de tirar – cujas instâncias, inclusive, eram o mais incômodo espinho – que quanto mais se sofre com o mal que está fora, tanto mais se sente satisfação por dentro. Ainda que ele corresse o risco [o autor usa o termo "fortuna"] de perder o pé, ele não cuidava em nada disso, pois contava cada perda que sofria no corpo como um ganho para o espírito, pois ele amava tanto a sua dor que, nela, ele encontrava a segurança de sua alegria. Estéfano Libys [sobre o qual não encontramos referências; ndt], num estado muito mais miserável ainda, a tal ponto de podermos quase dizer que estava morto antes de morrer, antecipou a podridão e o fedor da tumba, sobrevivendo a si mesmo por sua paciência. Este grande homem, maior do que a Natureza, com uma constância, sem dúvida, acima do que se possa imaginar, e em quem os milagres da Graça não diminuem em nada a admiração que merece a sua virtude, não interrompeu o seu trabalho e não deixou suas mãos ociosas enquanto ocupava as mãos do Cirurgião: dobrava folhas de palmeira para fazer diversas obras, se entretinha familiarmente com sua assistência e, por mais excessiva que fosse a sua dor, ele não perdeu em nada o bom humor e não era ocioso nem lamentador. Tendo que ter membros inteiros cortados, ele não se emocionava mais do que quando lhe cortavam os cabelos, ou do que quando lhe tiravam as roupas. Não deveria ele ter, pelo menos, algum sentimento de complacência por aqueles que a piedade tornava mais sensíveis a seu mal e que sofriam ainda mais do que ele, visto que sofriam na parte mais tenra deles mesmos (eles recebiam golpes de tesoura no coração enquanto ele os sofria em seu corpo)? Ele estava bem senhor de si, ou melhor, muito em posse de sua dor, não desejando que ninguém tomasse parte dela. Não sei se posso dizer assim, mas acredito que havia muitos homens neste grande Homem, ao vê-lo fazendo ações tão diferentes e contrárias ao mesmo tempo: agir, falar, sofrer, se alegrar, se desfazer tão bem de todos os deveres da vida civil e, acima de tudo isso, fazer de suas dores apenas um jogo que apenas ele deveria enfrentar e que, por ele, era considerado tão leve. Recolhamos, após estes exemplos, aquele que nos apresenta um sexo frágil e tímido – uma Virgem – que, sem outras armas além de seu corpo sem pele e, em alguns pontos, sem carne, impressionou seus carrascos e lhe imprimiu temor e admiração por sua coragem. É a generosa Esperança [mártir cristã do segundo século; filha de Santa Sofia, irmã de Pistis (Fé) e Ágape (Caridade), chamava-se, na verdade, Elpis (Esperança, em grego), foi martirizada no ano 137, em Roma, quando tinha por volta de 10 anos de idade, lançada numa fornalha; ndt], cujo próprio nome era uma promessa da posse do Céu. Este esqueleto vivo e glorioso, tendo por máxima este paradoxo para aqueles que já tiveram em posse de uma tão grande constância, que não há nada de mais doce e agradável do que o sofrer, não foi forçada a sofrer os mais cruéis tormentos que o Tirano Antíoco lhe fez suportar [não encontramos referências a este personagem; no original latino, Nieremberg, faz referência a outros personagens e, na verdade, compara o sofrimento de Santa Esperança a de outros personagens: "Una vivens, ne dicam, cadaver fuit, sed sceletus carnibus denudata. Sine membris, nisi cum membrorum medullis, ossibus constabat, &, quod mireris, constans. Non potuit palinodiam extorquere Antiochus inauditi Stoicis, Cynicis, Gymnosophistis, patientiae iactatoribus, Paradoxi: Nihil iucundum quam pati, verissime cum pro Deo, & cum Deo"; ndt]. E certamente seu endurecimento, se assim podemos nomear o mais excelente efeito da virtude, foi grande assim porque ela sabia bem que a maior vantagem que este mundo pode dar é extremamente inferior à glória de sofrer por amor de Deus e de sofrer com Ele. Ela começou, naquele momento, a tomar posse do Céu estando ainda na terra. Ela adquiriu, ainda viva, uma herança da qual ela só teria direito após esta vida e de uma maneira contrária àquela do mundo, que deixa como herança apenas a morte mesma. E visto que não é a carne e o sangue que possuem o Reino do Céu, poderia ela encontrar algum obstáculo não tendo mais nem um, nem outro? É ainda melhor dizer que, antes de sua morte, o Céu foi sua herança e que, depois, ela foi a herança do Céu. O que mais nos é necessário para nos persuadirmos inteiramente desta verdade, que a constância se sobrepõe a todas as coisas, que não há nada de mais forte do que o espírito que possui sua felicidade, que nada é capaz de abalá-la ou de tirá-la de seu lugar? Será que nós daremos esta vantagem aos tormentos, cuja violência mais cruel é apenas destruir nosso corpo e que nada poderia fazer contra o estabelecimento da alegria? Tudo isso, até mesmo a morte, não deve nos fazer medo, visto que o maior mal que isso nos pode fazer equivale a tirar a roupa para deitar na cama.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 83-87.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Terceiro prelúdio - Capítulo VII

CAPÍTULO VII
E para nada subtrair da extensão dessa verdade, e para nada limitar do privilégio do homem, é preciso dizer ainda mais: quando todas as partes que compõem o homem forem não somente desconformes à sua natureza e inteiramente repugnantes, quando o homem tiver todos os seus membros como inimigos, seus nervos, suas artérias, suas veias como carrascos, quando tudo aquilo que trabalha para mantê-lo vivo começar a trabalhar para fazê-lo morrer, não se verá perecer nenhum um pouco de sua alegria, tudo isso não será capaz de arruinar sua felicidade. Este Filósofo que acusamos de ter feito consistir a alegria no prazer dos sentidos [no original latino, Nieremberg cita “Charidemus Cynici Chrysostomi”, sobre o qual não encontramos referência; a citação do filósofo em questão se encontra em grego no original: "Ξυγκέιός ό ήμάς έξ άυτών δή τ βασανιζόντων, ψυχής τέ, κό σώματό"; ndt], encontrando-se, no fim de seus dias, assolado por dores cruéis, que pareciam querer se vingar daquilo que ele sempre assumiu como Volúpia, suportava-as com uma admirável constância. Aquilo que lhe atormentava sem parar, aquilo que desolava seu corpo, não agitava em nada o seu espírito. Certamente que ele tentava colocar em prática suas máximas e seus sentimentos; ele justificava, com sua própria experiência, a doutrina em que sempre acreditou e que sempre ensinou, que o Sábio nunca será infeliz, mesmo se estiver sob tortura. Assim, qualquer que seja a agitação e a pena que chegue ao corpo, a paz de espírito permanece firme e não pode ser em nada abalada. Ela sai, ela triunfa de todas as tempestades que a Fortuna suscita; ela não pode ser violada por nenhum de seus atentados e esforços. Não é pelas pernas, mas pelo espírito que vivemos, respondeu sabiamente Espeusipo [filósofo grego, nascido em Atenas, por volta do ano 393 a.C. e falecido perto do ano 339 a.C., foi o sucessor de Platão na Academia; ndt] a Diógenes [sobre o qual já escrevemos em nota anterior; ndt], que o vendo pressionado pelas violentas dores da gota, o aconselhava a procurar um remédio para o remédio de todos os males. Sem dúvida o que faz viver o homem é o que permite que ele viva de forma feliz. É pela alma que vivemos, e por ela vivemos felizes, desde que vivamos segundo a razão. Tudo o que nos é suficiente para a vida nos é suficiente para a felicidade; e não pensemos que ter um corpo enfermo ou mutilado de qualquer uma de suas partes é um obstáculo para possuir a felicidade. Pelo contrário, é certo que, quando as dores afligem o corpo, a alma, ocupando-se menos dele, pode se retirar para o entendimento como que para a sua fortaleza, onde ela pode agir com mais vigor, bem como com mais dignidade. E é então que podemos dizer que ela está verdadeiramente onde deveria estar, onde ela faz suas mais nobres operações, onde ela as produz de forma ainda mais excelente e perfeita; estando totalmente recolhida em si mesma, e não estando, portanto, espalhada pelos sentidos, ela não se rebaixa e não se profana com atos indignos da grandeza de sua origem, ela se conserva límpida e pura das Volúpias que a poluem. Além do mais, espero que não se escandalizem com o fato de, aqui, eu fazer menção a Filósofos pagãos, e que ninguém ache estranho se eu repito sem vergonha alguma seus sentimentos. Tomo esta liberdade a fim de que tenhamos vergonha não apenas de não fazer o que eles fizeram, mas também de não fazer o que eles disseram; a fim de que tenhamos vergonha não apenas de não imitar seus exemplos, mas também de não praticar seus preceitos. Eu quero, com isso, que nos retiremos do vício e nos descubramos culpados de desprezo e ingratidão pela Graça, olhando para esses homens que só conheceram imperfeitamente o soberano bem, que não puderam ter uma imagem verdadeira do soberano bem, que possuíram uma sabedoria falsa. Mas por que é necessário que aquilo que eles fizeram em meio às trevas, iluminados apenas pelos lumes da Razão fortalecida pela ajuda e pelas luzes que vêm do Céu – o estudo da virtude – não tenha efeito sobre nós? Por que aqueles que veem claramente e que têm guias não podem caminhar de forma mais correta e segura do que aqueles que não veem nada e que estão cegos?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 81-83.

Terceiro prelúdio - Capítulo VI

CAPÍTULO VI
Saibamos um pouco, eu vos peço, acerca de Antípatro, o Cireneu [não encontramos nada de consistente acerca deste personagem – no original latino aparece como “Antipater Cyrenaicus” –, a não ser uma referência a ele nas Tusculanas de Cícero; ndt]: a perda de sua visão significou sua ruína ou apenas a diminuição de sua alegria? Ele nos ensinou que não depende em nada da bela composição do corpo, nem do inteiro e livre uso de seus sentidos a produção da felicidade, mas tão somente da tranquilidade do espírito. Ele sabia bem que, por estar em trevas perpétuas, não deixamos de ser felizes. Ele não ignorava que a noite, como o dia, tem seus prazeres e suas delícias. Ele também se consolava com aqueles que se afligiam com sua cegueira, ele ria do fato de eles chorarem tendo olhos, sendo que ele, que não os tinha, não era, porém, nem triste nem cheio de dor, nem cria que sua felicidade tivesse sido diminuída de alguma forma. Os parentes e os amigos de Pardulfo [trata-se de São Pardulfo, monge eremita, conhecido por ser taumaturgo, que viveu no século VII, na França, num lugarejo conhecido como Guéret; ndt] sentiam um enorme desprazer ao vê-lo em tamanha desgraça, e ele, porém, sentia enorme alegria; podendo obter de Deus a graça de recuperar a vista, que ele rezava para que outros obtivessem, ele nunca pediu isso para si mesmo, visto ter recebido algo que nunca havia pedido: ele se contentava com o fato de possuir a felicidade que aliviava sua miséria. Saibamos também de Epícteto: por acaso, ele se afligiu desejando uma boa perna, esperando que dela dependeria sua alegria? Certamente, uma volúpia constante e, por assim dizer, bem assentada e repousada, tal como a que ele possuía, vale incomparavelmente mais do que estas Volúpias inconstantes que, cedo ou tarde, se afastam de nós mais rapidamente do que o mais veloz dos animais; que são sensuais e brutais como os animais; que, não sendo menos temíveis que os mais selvagens e mais cruéis animais, são mais perigosas e mais maléficas. Múcio Escévola [trata-se de Quinto Múcio Escévola (final do século III a.C.), político da antiga República Romana, que foi governador da Sardenha por cerca de três anos; ndt] não achava em nada que sua glória fosse imperfeita; a felicidade se comunica voluntariamente para os virtuosos. Ela vem até a eles de muito bom grado; eles não têm nenhuma necessidade de pegá-la à força. Com a mesma mão que Barlaam [trata-se de São Barlaam, mestre de São Josafá, que parece ter vivido no século III ou IV, na Índia; ndt], este nobre e generoso homem rústico, preferia abandoná-la ao fogo que prostitui-la oferecendo incenso aos Ídolos; por isso, ele mereceu a palma do martírio, ele se coroou de louros muito mais dignos do que os do famoso Romano [não está claro de que personagem trata Nieremberg nesse trecho; aparece assim no original latino: "Potuit & sine manu rapere gloriam Dei, quid mirum, si Romanam."; ndt]. Os céus olharam atentamente o sacrifício de um homem que só queria fazer por eles; para ele, eles abriram todos os olhos; eles pareciam testemunhar, por seu ardor, a alegria que sentiam por ver esta mão ardente. Antígono [não encontramos referências históricas acerca deste personagem; no original latino, aparece: "Antigonus colliso naso"; ndt], Filipe [também não encontramos referências históricas sobre este personagem; no original latino aparece como “Philippus oblaeso orure”; ndt] e Filopémen [trata-se de um importante estrategista grego, que viveu entre os anos 253 a.C. e 184 a.C.; segundo consta, foi condenado a beber veneno, depois de ter sido capturado pelos messênios, numa revolta estimulada por um seu opositor político. No original latino, Nieremberg se refere a “Philopoemenes sine ventre”; ndt], que carregavam marcas de defeito em seus corpos não puderam, no entanto, nunca ser felizes? E o corajoso Zenão [trata-se de Zenão de Eléia (c. 495 a.C. – 430 a.C.) que, após ter sido capturado e torturado pelo tirano que reinava em Eléia, a quem combatia abertamente, cortou com seus próprios dentes a língua e a cuspiu no rosto do tirano, para mostrar-lhe que jamais delataria seus companheiros; ndt] terá sentido alguma dor mesmo depois de ter cortado sua língua? Amón [não sabemos precisar a que Amón se refere Nieremberg; no texto latino aparece assim: "Anne aeternae miseriae se damnavit Ammonius praecisa auricula?"; ndt] terá se condenado a uma miséria perpétua depois que lhe arrancaram uma orelha? E Santa Águeda [Santa Águeda de Catânia (c. 230 – c. 254) foi martirizada durante as perseguições de Décio ou de Dioclesiano, tendo sido açoitada e torturada até à morte; segundo consta, teve os seios arrancados por tenazes; ndt] terá sido melancólica por toda a sua vida depois que perdeu, pelo martírio, uma graça, um ornamento natural do corpo tão caro às pessoas do seu sexo e que elas conservam com tanto cuidado? Apesar da violência dos suplícios que seus carrascos a fizeram sofrer ter sido muito acima de suas forças, ela não esteve abaixo de sua coragem: ela expôs com alegria seu corpo a todo tipo de pena e, pela constância maravilhosa com a qual ela suportou o opróbrio feito aos seus seios, ela deixou transparecer que carregava verdadeiramente um coração generoso. Ela se gloriou de suas cadeias, ela tornou a prisão causa de suas delícias [no original latino, Nieremberg cita um trecho do Papa Dâmaso I (305-384) que relata o martírio de Santa Águeda: "Fortier lies, trucibusque virtu, / Exposvit sua membra flagris; / Pectore quam fuerit valido, / Torta mammilla docet patulo, / Delicia eius carcer erut."; ndt]. Guardemo-nos bem de acreditar que seja um lugar onde a alegria não se encontra e de onde ela não ousa se aproximar. Os mais cruéis Tiranos não têm uma prisão tão estreita e tão rigorosa onde ela [a alegria] não se sinta à vontade e onde, se se quiser, ela não possa plenamente habitar. Certamente, se se pode ser feliz no mundo, se pode sê-lo também na prisão, já que ele [o mundo] também é uma prisão de onde a Justiça de Deus tira, todos os dias, criminosos para os fazerem responder diante de seu trono. Se minha prisão não é tão grande quanto a dos Príncipes, dizia de forma excelente o Católico e Ilustre Chanceler da Inglaterra [trata-se de São Thomas More (1478-1535), que foi martirizado no dia 6 de julho de 1534, após ter se negado a reconhecer Henrique VIII como cabeça da Igreja da Inglaterra; ndt], eu me acredito ainda mais feliz por ter escolhido, entre os males, o menor. Depois de tudo isso, o que importa se nos dilacerarem o corpo? E por que devemos nos preocupar quando o dividem em pedaços? Visto que nós sabemos que ele é a metade do homem que é supérflua para fazer sua alegria; visto que sabemos que é o espírito que lhe dá todo o necessário para isso. Paulino [trata-se de São Paulino de Nola (355-431), eremita que, antes de sua conversão era Cônsul; vendeu tudo o que tinha, deu aos pobres e, com sua esposa, fundou uma comunidade monástica em Nola, na Campania (Itália); ndt] e Serapião [trata-se de Serapião Sindonita, sobre o qual já escrevemos em nota anterior; ndt] se fizeram escravos; eles não tinham nenhuma parte de si mesmos em seu poder, seus corpos eram todos de outro, mas seus espíritos eram inteiramente seus; e mesmo que um poder alheio a eles lhes possuísse absolutamente, eles possuíam inteiramente sua felicidade.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 77-80.