terça-feira, 4 de maio de 2010

Terceiro prelúdio - Capítulo VIII

CAPÍTULO VIII
Passemos agora àqueles de quem é ainda mais justo o exemplo, visto que sua sabedoria lhes vem do alto, visto que, além das luzes da Razão, têm ainda as luzes da Graça. Mirógenes [não encontramos referências acerca deste personagem; sabemos apenas de um certo Abade Mirógenes; ndt] feliz de ver seu corpo todo coberto de chagas, ou para dizer mais claramente, de ver seu corpo como uma terrível chaga, encontrava sua felicidade na sua miséria. Longe de pensar e de se lamentar de que ela [a miséria] fosse excessiva, ele desejava que ela fosse maior; ele exortava àqueles que testemunhavam compaixão por ele a pedir a Deus muito mais a saúde de suas almas do que a de seus corpos; ele lhes conjurava a desejar muito mais sua salvação que sua cura. Meu Deus, ele dizia, faz que eu sofra por muito tempo, prolonga a duração de minha aflição. Este era o objeto mais comum de seus votos e de suas orações, visto que ele sabia muito bem que não apenas as dores e os sofrimentos não eram capazes de destruir a alegria, mas são elas que a causam e estabelecem; visto que ele via que o espírito daquele corpo enfermo e apodrecido se conservava firme e vigoroso. De que mais ele precisaria para possuir a felicidade, quando sabia que seu corpo não era em nada necessário para obtê-la? Não nos surpreendamos em nada, depois disso, ao sabermos que ele considerava os bens do mundo como supérfluos, que ele não quis aceitar os bens que lhe foram oferecidos pelo Sofista Eustóquio [também não encontramos referências a um sofista com este nome; na antiguidade, encontramos apenas a referência ao médico de Plotino, que tinha este nome; ndt]. Barnabas Anacoreta [não encontramos referência a este personagem; ndt] tendo um espinho no pé, alegrava-se em si mesmo e nunca conseguiu encontrar razões para tirá-lo dali, respondendo àqueles que lhe solicitavam de tirar – cujas instâncias, inclusive, eram o mais incômodo espinho – que quanto mais se sofre com o mal que está fora, tanto mais se sente satisfação por dentro. Ainda que ele corresse o risco [o autor usa o termo "fortuna"] de perder o pé, ele não cuidava em nada disso, pois contava cada perda que sofria no corpo como um ganho para o espírito, pois ele amava tanto a sua dor que, nela, ele encontrava a segurança de sua alegria. Estéfano Libys [sobre o qual não encontramos referências; ndt], num estado muito mais miserável ainda, a tal ponto de podermos quase dizer que estava morto antes de morrer, antecipou a podridão e o fedor da tumba, sobrevivendo a si mesmo por sua paciência. Este grande homem, maior do que a Natureza, com uma constância, sem dúvida, acima do que se possa imaginar, e em quem os milagres da Graça não diminuem em nada a admiração que merece a sua virtude, não interrompeu o seu trabalho e não deixou suas mãos ociosas enquanto ocupava as mãos do Cirurgião: dobrava folhas de palmeira para fazer diversas obras, se entretinha familiarmente com sua assistência e, por mais excessiva que fosse a sua dor, ele não perdeu em nada o bom humor e não era ocioso nem lamentador. Tendo que ter membros inteiros cortados, ele não se emocionava mais do que quando lhe cortavam os cabelos, ou do que quando lhe tiravam as roupas. Não deveria ele ter, pelo menos, algum sentimento de complacência por aqueles que a piedade tornava mais sensíveis a seu mal e que sofriam ainda mais do que ele, visto que sofriam na parte mais tenra deles mesmos (eles recebiam golpes de tesoura no coração enquanto ele os sofria em seu corpo)? Ele estava bem senhor de si, ou melhor, muito em posse de sua dor, não desejando que ninguém tomasse parte dela. Não sei se posso dizer assim, mas acredito que havia muitos homens neste grande Homem, ao vê-lo fazendo ações tão diferentes e contrárias ao mesmo tempo: agir, falar, sofrer, se alegrar, se desfazer tão bem de todos os deveres da vida civil e, acima de tudo isso, fazer de suas dores apenas um jogo que apenas ele deveria enfrentar e que, por ele, era considerado tão leve. Recolhamos, após estes exemplos, aquele que nos apresenta um sexo frágil e tímido – uma Virgem – que, sem outras armas além de seu corpo sem pele e, em alguns pontos, sem carne, impressionou seus carrascos e lhe imprimiu temor e admiração por sua coragem. É a generosa Esperança [mártir cristã do segundo século; filha de Santa Sofia, irmã de Pistis (Fé) e Ágape (Caridade), chamava-se, na verdade, Elpis (Esperança, em grego), foi martirizada no ano 137, em Roma, quando tinha por volta de 10 anos de idade, lançada numa fornalha; ndt], cujo próprio nome era uma promessa da posse do Céu. Este esqueleto vivo e glorioso, tendo por máxima este paradoxo para aqueles que já tiveram em posse de uma tão grande constância, que não há nada de mais doce e agradável do que o sofrer, não foi forçada a sofrer os mais cruéis tormentos que o Tirano Antíoco lhe fez suportar [não encontramos referências a este personagem; no original latino, Nieremberg, faz referência a outros personagens e, na verdade, compara o sofrimento de Santa Esperança a de outros personagens: "Una vivens, ne dicam, cadaver fuit, sed sceletus carnibus denudata. Sine membris, nisi cum membrorum medullis, ossibus constabat, &, quod mireris, constans. Non potuit palinodiam extorquere Antiochus inauditi Stoicis, Cynicis, Gymnosophistis, patientiae iactatoribus, Paradoxi: Nihil iucundum quam pati, verissime cum pro Deo, & cum Deo"; ndt]. E certamente seu endurecimento, se assim podemos nomear o mais excelente efeito da virtude, foi grande assim porque ela sabia bem que a maior vantagem que este mundo pode dar é extremamente inferior à glória de sofrer por amor de Deus e de sofrer com Ele. Ela começou, naquele momento, a tomar posse do Céu estando ainda na terra. Ela adquiriu, ainda viva, uma herança da qual ela só teria direito após esta vida e de uma maneira contrária àquela do mundo, que deixa como herança apenas a morte mesma. E visto que não é a carne e o sangue que possuem o Reino do Céu, poderia ela encontrar algum obstáculo não tendo mais nem um, nem outro? É ainda melhor dizer que, antes de sua morte, o Céu foi sua herança e que, depois, ela foi a herança do Céu. O que mais nos é necessário para nos persuadirmos inteiramente desta verdade, que a constância se sobrepõe a todas as coisas, que não há nada de mais forte do que o espírito que possui sua felicidade, que nada é capaz de abalá-la ou de tirá-la de seu lugar? Será que nós daremos esta vantagem aos tormentos, cuja violência mais cruel é apenas destruir nosso corpo e que nada poderia fazer contra o estabelecimento da alegria? Tudo isso, até mesmo a morte, não deve nos fazer medo, visto que o maior mal que isso nos pode fazer equivale a tirar a roupa para deitar na cama.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 83-87.

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