terça-feira, 4 de maio de 2010

Quarto prelúdio - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO PRIMEIRO
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QUARTO PRELÚDIO
QUE cada um pode ser o Autor de sua alegria

CAPÍTULO PRIMEIRO
Ei-nos felizmente desenganados da crença que poderíamos ter de que as coisas que estão fora de nós produzem nossa alegria. Justificamos plenamente que um tão nobre efeito não lhes pertence e que deve vir absolutamente de nós; que elas [as coisas que estão fora de nós] não apenas não podem entrar na composição da alegria, como que também nosso corpo mesmo é supérfluo para este fim, e que apenas o nosso espírito é suficiente. O que temos que fazer agora é trabalhar em uma obra muito preciosa e necessária: levar todos os nossos pensamentos e todos os nossos cuidados para o estabelecimento de nossa felicidade. Devemos ficar encantados de aprender que o meio reside puramente em nós; podemos mesmo dizer que ele está nas nossas mãos. Mas ainda que sejamos certos disso, não aproveitamos nada, nós deixamos degenerar o único instrumento próprio para esta obra porque não o empregamos; nós o tornamos inútil por causa de nossa preguiça. Todos os outros instrumentos dos quais nos servimos são incapazes de uma operação tão alta, são defeituosos e inúteis. Por que é que deixamos ociosa a nossa Vontade – a verdadeira, a digna causa de um tão excelente efeito? Por que é que deixamos ociosa a nossa Vontade – a única a quem é dado o poder de fazer a alegria? Qual a vantagem em ser suficientemente poderoso sobre nós mesmos para querer as coisas que nos são motivo de salvação? Nós não devemos estimar menos a Vontade do que aquilo que a pode produzir. E, sem dúvida, na medida em que temos liberdade para amar, temos também o poder de produzir o objeto de nosso amor. Por esta excelente liberdade, nos tornamos os árbitros de nossa paz e de nossa alegria, nos tornamos os operários mesmos de nossa paz e de nossa alegria, adquirimos uma felicidade muito mais perfeita, pois vem de nós e não de outros, pois nós a temos como propriedade e não como empréstimo – como é a alegria que as coisas nos oferecem, que, podemos dizer, não valha mais do que a miséria. A alegria e a tristeza não vêm a nós com violência e não ocupam o nosso espírito forçosamente; elas acompanham a Vontade, elas são suas seguidoras, por assim dizer, mas elas não são menos livres do que a Vontade. Quem não poderá ser feliz? Eu vos pergunto. Quem não quererá estar na posse da alegria? Se ela se encontra mesmo no mais baixo e infeliz degrau da condição humana, nas mais audazes perseguições do desejo, em meio das maiores misérias e, para dizer tudo, se os Escravos a conservam para si nos incômodos e nos tormentos e só a perdem quando perdem a vida? Este Bárbaro, de quem não conhecemos o nome [no original latino, Nieremberg escreve: "Barbarus ille, (excidit aliud nomen, non potuit excidere gloria,) Hispanus ille obtruncator Asdrubalis, domini ultor, posthuma (rara avis) fide, qui retinavit nomen immortale sine nomine, comprehensus, inter cruciatus ipsos risu exultabat"; ndt], mas de quem a glória é tão conhecida, que, por um exemplo de fidelidade rara e sem igual, sacrificou sua vida para vingar a morte de seu senhor, não apenas não se espantou com os suplícios que lhe haviam preparado, mas espantou, por sua segurança, a crueldade mesma de seus carrascos. Quando eles colocaram as mãos sobre ele, ele estremeceu de alegria e começou a rir tão fortemente que parecia que eles eram bufões e o aparelho de sua morte uma comédia. Se um infeliz cheio de correntes, que não tinha nada de livre além de sua vontade, brincou com aquilo que há de mais terrível, se ele não temeu em nada a morte, se ele a desprezou, se ele a venceu apenas com a grandeza de sua coragem, qual é a calamidade, qual é a dor que nos poderá arrancar a alegria? Por qual rude e poderoso traço a má fortuna poderá nos abater, se resistirmos a ela corajosamente e opusermos a ela uma firme resolução? Passemos do mais baixo nível que possa existir entre os homens para um mais eminente: acrescentemos o exemplo de um soberano de nascença àquele de um sujeito abjeto e servil. Gelimero [general-rei de origem germânica que, com suas tropas, invadiu territórios que pertenciam ao Império Romano – a Hispânica Bética, que hoje equivale ao território espanhol. Foi derrotado no período do governo de Justiniano I (483-565), numa campanha liderada pelo general Flávio Belisário (505-565); ndt], Rei dos Vândalos, vencido pelo Imperador Justiniano, e levado por ele mesmo, junto com toda a sua família, em triunfo, conservou tão felizmente a tranquilidade de seu espírito que, tendo estourado de tanto rir quando lhe colocaram correntes, pensaram que a miséria de sua condição lhe tivesse perturbado os sentidos; mas ele deixou bem claro que estava perfeitamente são, dizendo que ele ria da extravagância da Fortuna que, de Rei, o havia feito um Escravo. Certamente, foi a gota d’água para a Fortuna ver-se ridicularizada por aquele que ela pensava ter colocado em desespero. O que poderemos nós, depois disso, temer dela, visto que seus mais violentos esforços fazem com que ela nos pareça ridícula e nos force a rir não somente quando ela ri de nós, mas também quando ela nos persegue? Para não mentir em nada, visto que seu furor é, para nós, muito mais matéria de desprezo que de temor, não nos será nada difícil conservar nossa alegria nas mais fortes tempestades que ela possa nos suscitar.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 88-91.

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