terça-feira, 22 de junho de 2010

Quarto prelúdio - Capítulo II

CAPÍTULO II
O que estimaremos mais, eu vos pergunto, a liberdade de amar e de odiar as coisas; ou o poder de as fazer e de possuir, em seguida, o que seria o objeto de nosso amor? Se desejássemos um lindo Palácio e não tivéssemos necessidade de outro Arquiteto que nosso desejo e nossa própria imaginação para construi-lo, como se fosse o raro efeito das mais sublimes ideias da Natureza e da Arte, como se fosse seu milagre que, pela riqueza de sua matéria, pela beleza, pela variedade de seus ornamentos, ultrapassasse tudo o que se vê de mais magnífico entre os edifícios. Se quiséssemos que ele fosse acompanhado de um delicioso jardim, onde a diversidade dos compartimentos, enriquecidos de todo tipo de flores, disputasse com as fontes, as alamedas e os canais, a ponto de encher os olhos. Se desejássemos tesouros e, ao mesmo tempo, desejássemos que a terra produzisse tão abundantemente para nós que nos fosse até mesmo difícil transportar tudo o que produzisse, a ponto de nos sobrecarregar. Em uma palavra, se nossas conquistas fossem muito maiores do que nossas expectativas. Fiquemos sabendo que este tão inesperado e tão absoluto poder de tudo realizar, este Caduceu que acreditamos ser responsável por trazer a paz ao nosso espírito seria infinitamente menor do que esta excelente liberdade de amar e de odiar as coisas. Não existe nada além da nossa vontade que seja absolutamente capaz de nos satisfazer. Ela, sozinha, constrói nossa alegria e, de maneira rara e maravilhosa, ela a compõe exclusivamente a partir da moderação. Não é necessário, para isso, nem palácios nem tesouros; ela não precisa ajuntar bens, pois todas as coisas do mundo lhe são supérfluas. A regra que Deus lhe prescreveu faz com que ela tenha a posse de tudo. Este é o verdadeiro caduceu que põe fim, que acaba com a guerra que a cobiça excita em nós. E se diz, muito corretamente, a respeito de nosso Salvador Jesus Cristo, que ele despojou Mercúrio de sua vara de ouro e de seus calcanhares alados; ele fez sair de Sião a vara de seu poder. Certamente que aqueles que desprezam as coisas do mundo podem se crer muito mais ricos – mesmo que, aparentemente, não pareçam merecer tal título – do que aqueles que, efetivamente tudo possuem. Eles possuem as coisas integralmente, eles gozam, sem algazarra e sem nenhuma inveja, de uma felicidade pura e perfeita. Foi uma muito pequena glória a desse Imperador Romano [no texto latino, Nieremberg refere-se a Lúcio Septímio Severo (146 – 211), que foi imperador de Roma entre os anos de 193 e 211; ndt] que se vangloriava de ter sido tudo. Aquele que sabe regrar seus desejos pode, muito mais justamente, dizer isso de si, visto ser de fato tudo e, de tal forma encerrado em si mesmo, que nada lhe falta. Este Imperador acrescentava: eu fui tudo, mas isso me é inútil. Digamos o contrário: eu sou tudo e isto me é muito vantajoso. Hípias [refere-se ao sofista Hípias de Elis, que viveu no século V a.C., contemporâneo de Sócrates e Protágoras. Tudo o que se conhece sobre esse filósofo se encontra em alguns diálogos de Platão – Hípias menor e Hípias maior. Era também matemático; ndt], esse famoso Sofista que, por um sentimento bastante razoável, estabeleceu a alegria no se contentar com o que é suficiente para a vida, tendo ido aos jogos Olímpicos em Pisa [esse era o nome de uma antiga cidade grega, na região de Elis. Em Pisa – ou Pisatis – ficava Olímpia, famosa por causa de seus jogos; ndt], deixa ver a inteligência que tinha de todas as Artes ao mostrar publicamente as provas de que ele mesmo havia feito, com suas próprias mãos e sem recorrer à ajuda de nenhum artesão, suas roupas e todas as coisas que cobriam sua pessoa. Nós não precisamos de forma alguma dessa capacidade universal, visto que nossa vontade sozinha nos dá tudo. Por ela, temos todos os bens, e com ainda maior vantagem, já que não nos custa nenhum esforço. Ela nos abastece, ela nos enriquece de todas as coisas; ela pode nos preparar uma festa ainda mais magnífica do que aquelas que os antigos Persas faziam para o Sol. A glória desse Sofista foi não ter precisado da ajuda de ninguém; ele foi louvado por ter sido sozinho o autor de tão diversas obras; mas será que ele pode dizer de si mesmo que não pegou emprestado de ninguém a capacidade industriosa de fazer essas coisas? Será que a Fortuna não lhe terá fornecido matéria? Será que ele não recebeu da Natureza o tempo necessário para se dedicar a isso? Certo, nós nos damos muito mais coisas do que, de fato, queremos. Temos, a partir disso, sem nenhuma atenção mais acurada, aquilo que solicita demais, aquilo que não se conserva sem inquietude, aquilo cuja posse é cheia do temor da perda. Aquele que, tendo se elevado de uma baixa condição a uma alta fortuna, se lamentava do favor de seu Príncipe como se lamenta de uma conspiração feita contra seu repouso, esse não ignorava em nada essa verdade. E, para falar de forma mais saudável, pergunto: no que aqueles que possuem as riquezas são diferentes dos que temem as emboscadas de seus inimigos, já que aqueles, como estes, vivem numa constante desconfiança, já que uns e outros são sempre impedidos de dormir? O que mais poderíamos esperar da magnificência dos Palácios, da beleza dos jardins, da abundância dos tesouros, do que a alegria? Nossa vontade, porém, a adquire para nós, não somente sem nada dessas coisas, como também livre dos cuidados que, normalmente, acompanham a posse dos bens. E tenhamos claro que quem se liga ao amor pelas coisas perecíveis não conseguirá evitar, por uma fatal necessidade de sua condição, ser duplamente infeliz, mesmo que ele as deseje e delas goze, mesmo que ele obtenha, ou não, a realização de seus desejos; quando ele as tem em posse, o que ele tem a dizer entre ardendo de ambição e paralisado de medo? Pouco importa se o veneno pareça bonito numa taça de ouro ou num vaso de argila; a cobiça não dá menos trabalho para quem é por ela possuído do que a apreensão dá a quem possui. É por isso que a vontade bem dirigida e pura, que não deseja nada, vai, sem dúvida, muito mais diretamente para a felicidade do que aquela desregrada e que goza do efeito de seus desejos. Muitas vezes, a primeira está segura de atingir o objetivo, enquanto que esta última não chega nunca. Não pensemos que é sempre feliz aquela que é plena, mas, pelo contrário, aquela que é vazia, quer ser assim e não pretende se preencher.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 91-95.

Nenhum comentário:

Postar um comentário