quarta-feira, 23 de junho de 2010

Quarto prelúdio - Capítulo III

CAPÍTULO III
A mesma alegria que ela recebe da posse das coisas, ela pode extrair do desprezo dessas mesmas coisas, na medida em que elas não estão em seu poder; na medida em que ela muda de paixão, ela mudou de felicidade. Ainda que, aparentemente, ela não tenha aquilo que é necessário para estabelecer a felicidade – e, com efeito, ela não tem menos – ela tem tudo aquilo que é necessário para se recompor e se satisfazer. Certamente, a Fortuna não seria capaz de nos causar a dor para a qual não encontraremos, aqui, o pronto e infalível remédio. Na medida em que a Fortuna se declara contra nós, e em que nós a vemos preparada a nos fazer mal, pratiquemos esta excelente estratégia: passar de um desejo a outro, formando um desígnio contrário àquele que ela atravessa, mudando a guarda, por assim dizer. Assim, nós a faremos perder suas medidas, nós a colocaremos fora da esgrima, ela se encontrará na desordem onde ela pensava nos colocar. Permaneçamos inteiramente persuadidos desta verdade: que quando estamos diante das coisas, está em nosso poder igualmente amá-las ou odiá-las. Temos a liberdade de tomar o partido que quisermos. Podemos ficar contentes tanto de não as ter, quanto de obtê-las. Se não está em nosso poder as ter, não temos que as possuir; e isso deve ser, para nós, igual que as possuir. A moderação da nossa cobiça pode ser, para nós, um grande bem que a Fortuna nos concede – ela não tem outro tesouro comparável a este. Nós já não teremos experimentado que, frequentemente, é mais ruim perder um bem do que não conquistá-lo, que é mais fácil desprezar um bem que adquiri-lo? Por que, então, somos tão cegos a ponto de não ver que é melhor escolher aquilo que nos faz menos mal, aquilo que não apenas não nos incomoda como também nos é mais vantajoso? Ainda que a maldade da Fortuna possa agir contra nós, sempre nos resta um caminho para ir até à felicidade; o acesso a ela nunca nos é impedido; se o caminho que conduz à posse das coisas está fechado – como é o mais frequente –, nós temos a via do desprezo que está sempre aberto e livre. Não é verdade que saboreamos melhor a doçura da fruta sem sua casca? Por que, então, não saborearíamos a alegria sem as coisas? Estando seguros, como já estamos, de que não é nelas que ela [a alegria; ndt] consiste, e de que não podemos pretender nada delas, podemos dizer que as coisas são apenas o envelope, a casca, a cobertura. Sem dúvida, o prazer se segue à paixão e não está em nada ligado às coisas. Não está, pois, na posse ou na privação das coisas a consistência da vontade, pois ela nem as abraça nem as rejeita. Se existisse um homem tão feliz a ponto de adquirir tudo o que visse, ele não seria mais feliz do que aquele que não desejasse nada do que visse. Certo, possuir é uma verdadeira felicidade na medida em que a posse fosse firme e constante, e que não fosse seguida dos movimentos da fortuna, e portanto não estivesse à mercê de seus caprichos e ligeirezas. Que necessidade é essa que nos faz correr atrás do primeiro objeto que nos apresenta a nossa cobiça? Não vale mais a pena nos ligar a uma alegria tranquila? Àquela alegria que não teme nenhuma agitação nem problemas; àquela alegria que temos dentro de nós, que vem da paz do espírito, que nos eleva até ao Céu e nos torna companheiros mesmo de Deus. Em poucas palavras: àquela alegria que um grande Santo [no original latino, Nieremberg se refere a São Justo – “Non sine magno sacramento apostolicus, & caelestis Vir, S. Iustus; cuius meminit divinus Lucas...” – que viveu no século VII da era cristã, tendo falecido provavelmente no ano de 631. É conhecido como São Justo de Canterbury; ndt] nomeou de forma muito excelente como uma imobilidade a todo tipo de ação [a citação aparece, no original latino, em grego. Porém, a qualidade da impressão não permite uma transcrição correta do trecho citado; ndt], como se ele quisesse dizer que aquele que a possui não vê nada além dela que mereça que ele se mova e interrompa, ainda que por um pouco, a tranquilidade perfeita de que ele goza. Com efeito, o que é a felicidade senão um repouso que nada pode incomodar, senão o último termo e, para tudo dizer em poucas palavras, a perfeição da quietude?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 95-97.

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