quarta-feira, 30 de junho de 2010

Quarto prelúdio - Capítulo V

CAPÍTULO V
Por que nós nos lamentamos com o fato de que as coisas mudam e passam? É certo que aquelas que mais nos alegram nos seriam desagradáveis se fossem fixas e permanentes. Imaginemos um homem com quem a boa sorte [o autor utiliza a palavra fortuna; ndt] tenha se associado de forma perpétua e não se separasse dele de forma alguma, mais cedo ou mais tarde, ela lhe seria importuna e, sem dúvida, ele teria problemas com ela. O famoso Tirano de Samos [Samos é uma das ilhas gregas. Não encontramos, porém, referências acerca do nome desse tirano a que se refere o autor; ndt] possuía o favor da boa sorte no mais alto grau que se possa desejar; teve razão quem afirmou que ela tinha por ele as ternuras que uma Mãe tem por seu filho único; que ela o tratava da mesma maneira; e que o resto daqueles para quem ela fez algum bem era considerado apenas como filhos de outro leito; enquanto que a ele, ela tratava como uma criança para ser amamentada. Um tratamento tão bom e constante o aborrecia, lhe dava desgosto; uma felicidade tão constante e equânime era um peso para ele; ele quis ou se desfazer da boa sorte ou, pelo menos, interromper o seu curso: ele jogou no mar um de seus mais preciosos anéis, a fim de que a evidente impossibilidade de o reaver lhe desse, pelo menos uma vez, o prazer de não ser feliz. Mas, ele não pode ter esse prazer: o anel voltou para suas mãos, tendo sido encontrado no ventre de um peixe que devia ser servido em sua mesa. Ele o tinha perdido voluntariamente, mas ele o reencontrou contra a sua vontade. Ele tentou, inutilmente, lutar contra a Fortuna: ela se reservou, inclusive, o direito de mostrar-lhe outra vez os seus efeitos. De todos os homens que já houve dos quais ela se encarregou de cuidar, ele foi o único que, contra o seu costume, ela procurava publicamente, ela perseguiu e correu atrás com todas as suas forças, por assim dizer. Porque, costumeiramente, ele quer que aqueles que pretendem receber suas boas graças, e que podemos chamar de seus amantes, lhe rendam todos os cuidados e deveres, que eles a sigam e a busquem. Às vezes, ela lhes decepciona, ela mistura um pouco de amargura às suas esperanças, para lhes fazer, em seguida, achar que suas carícias e favores são mais doces. Imaginemos ainda que ela tenha sido obrigada por alguém a conseguir o sucesso de seus desígnios pessoais; seria uma espécie de miséria ver que sua felicidade está ligada a si mesmo e às coisas, portanto, que vêm de fora de nós, e não poder nunca mais se separar delas. Certamente seria uma tremenda má sorte não poder ser triste. Muitas pessoas sofreriam com muita dor uma felicidade perpétua. Muitas pessoas sentiriam como algo infeliz e insuportável aquilo que o mundo estima como o máximo da felicidade, como comandar soberanamente, carregar uma coroa... Essas pessoas entendem como uma grande tristeza uma felicidade desse tipo, elas se creriam miseráveis por se tornarem Reis. A vontade livre vale, portanto, mais do que a prosperidade necessária, e a felicidade é ainda maior quando desprezamos a Fortuna mais do que os Reinos. Muitos recusaram os Reinos; outros, não tendo podido recusar, se descobriram extremamente infelizes, ao mesmo tempo em que o foram de fato. A miséria não engana ninguém, ela se encontra verdadeiramente onde se acredita que ela esteja; e sem dúvida é-se miserável desde que se imagine que o seja. Por que não acreditamos que a miséria é mais feliz – se é que podemos dizer dessa forma – do que a felicidade necessária? Sobretudo nós que sabemos – como já sabemos – que Genúcio [não foi possível identificar qual dos muitos Genúcios da história de Roma é aquele a que se refere Nieremberg – Lúcio Genúcio Aventinense, Lúcio Genúcio Clepsina, Caio Genúcio Clepsina, Tito Genúcio Augurino etc.; ndt] preferia se banir de Roma do que reinar sobre ela; ou que Gordiano [há, pelo menos, três Gordianos na história de Roma, todos imperadores que se destacaram pelo curto período de seus governos; ndt] só aceitou o Império sob muita pressão e com o punhal na garganta. Ele cria que o comando soberano era a pior coisa do mundo, e que a boa sorte [no original ele usa a palavra fortuna; ndt] era a maior infelicidade. Ele teve que decidir entre o punhal e o Cetro, entre a morte e a Realeza; sobre aquilo que ele deveria fazer ele duvidava do partido que deveria tomar. Para dizer de forma mais saudável – e não pararmos no sentido corrompido do homem – é exatamente aqui onde há lugar para deliberação e dúvida, e isso não pode ser diferente de uma grande tristeza: ver o destino e o Império concorrer em uma só pessoa com uma igual necessidade.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 100-103.

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