quinta-feira, 24 de junho de 2010

Quarto prelúdio - Capítulo IV

CAPÍTULO IV
O quanto nos é fácil fazer inteira e rapidamente aquilo que o ambicioso Monarca [no texto latino, Nieremberg se refere a Alexandre, o Grande (356 a.C. – 323 a.C.), ou Alexandre Magno, ou ainda Alexandre III, da Macedônia; ndt] – que pensava que a terra não era suficiente para suas explorações – só fez pela metade e com bastante tempo e pena! O quanto nos é fácil conquistar o mundo e submeter todas as coisas ao nosso poder, desde que não as desejemos, ou ainda melhor, desde que as desprezemos! Certamente, sem fazer esforço ou muito barulho, sem nos tornarmos culpados pela ruína de tantos povos, e sem arrancar das mãos dos Reis seus cetros e seus tesouros, como fez esse Conquistador [refere-se a Alexandre Magno; ndt], somos mais poderosos e ricos do que ele foi, desde que regremos nossos desejos, desde que reprimamos nossa cobiça, desde que nos contentemos conosco mesmos. Tudo o que temos a mais serve de matéria para a nossa magnificência: abandonemos tudo isso aos outros; nós somos pródigos de tudo; nós temos uma rara vantagem em relação a Alexandre, que só podia dar Províncias e, no máximo, Reinos, e nós damos o mundo inteiro; nós não nos satisfazemos com menos do que o Universo inteiro. Ele [Alexandre Magno; ndt] teve, assim, o pesar de ver que um Filósofo [refere-se, no original latino, a Diógenes de Sínope (c. 404 a.C. – c. 323 a.C.), filósofo cínico que viveu na Grécia; ndt] antecipou todas as suas conquistas, teve o pesar de ver que ele, vencedor de tantas nações, foi constrangido a ceder a glória de seus triunfos àquele cuja ambição estava toda encerrada num barril; e para dizer em uma só palavra, teve o pesar de ver que Diógenes adquiriu muito mais coisas do que ele – que tudo adquiriu através de batalhas e do derramamento de tanto sangue –, de forma inocente e através da simples moderação de sua cobiça. O que mais nos acontece depois de uma longa posse das coisas, mesmo daquelas que são as mais charmosas, do que o desgosto e o tédio? Nós já temos esse desgosto e esse tédio mesmo antes de possuí-las. Não as querer nem estimar, não as tocar e só olhá-las com desprezo vale mais do que gozar delas por muito tempo. O que acontece quando possuímos e quando não possuímos é a mesma coisa. Quantos Heróis secretos essa excelente liberdade produz? Quantos Alexandres muito maiores ela faz, simplesmente desprezando o mundo como se fosse uma conquista indigna de sua ambição, e preferindo sua alegria mais do que tudo aquilo que ele tem de riquezas, de forma que não é em nada tentada, visto que nem sequer lança o olhar sobre elas, lançando-os em outras coisas mais dignas? É nisso que a avareza tem – por imitação, em alguma medida, da virtude – uma vantagem maior sobre a Fortuna; seja porque aquela deseja muito mais do que esta é capaz de dar, seja porque é preciso muito mais favores e liberalidades da última para que se iguale em desejos e satisfações à primeira. Por que não quereríamos que a virtude tivesse a mesma vantagem de poder desprezar mais coisas do que a Fortuna fosse capaz de dar, e de reinar sobre ela através de generosos desprezos, assim como a avareza reina através de desejos infinitos? É da natureza dessa última nunca se saciar, desejar ainda mais coisas, mesmo quando parece que nada lhe falta e que ela possui todas as coisas já. Nossos desejos são como os números: não há nenhum que não tenha outro em seguida. E, a este respeito, aplicaremos o que Sêneca [trata-se de Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), filósofo estóico romano, filho de Sêneca, o Velho. Foi preceptor de Nero (37-68), filho de Agripina (neta de César Augusto) e de Cneu Domício Enobarbo; ndt] disse a Nero [Nero Cláudio César Augusto Germânico foi imperador de Roma entre 54 e 68 da era cristã; ndt] ao ver o furor com o qual ele perseguia todos aqueles que ele suspeitava de aspirar ao Império: ainda que consigas matar a muitos, não conseguirás matar o teu sucessor [no original latino: “Licet plurimos occidas, attamen non potes sucessorem tuum occidere”; ndt]. Assim, mesmo que nossa cobiça obtenha muitas coisas, ela nunca se contenta, ela exige ainda mais coisas. Pelo contrário, a virtude é muito satisfeita de si mesma; ela delimita, ela encerra em sua própria posse todas as suas esperanças e todos os seus desejos. Será que isto não é suficiente para provar que a verdadeira alegria consiste somente na liberdade de amar e odiar as coisas? Sem dúvida, há muitas pessoas cuja felicidade seria maior se sua fortuna fosse menor, há muitas pessoas que seriam muito mais satisfeitas não tendo bem algum, do que há outras que o são por terem bens depois de terem trabalhado por muito tempo para desejá-los e adquiri-los.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 98-100.

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