segunda-feira, 3 de maio de 2010

Terceiro prelúdio - Capítulo VII

CAPÍTULO VII
E para nada subtrair da extensão dessa verdade, e para nada limitar do privilégio do homem, é preciso dizer ainda mais: quando todas as partes que compõem o homem forem não somente desconformes à sua natureza e inteiramente repugnantes, quando o homem tiver todos os seus membros como inimigos, seus nervos, suas artérias, suas veias como carrascos, quando tudo aquilo que trabalha para mantê-lo vivo começar a trabalhar para fazê-lo morrer, não se verá perecer nenhum um pouco de sua alegria, tudo isso não será capaz de arruinar sua felicidade. Este Filósofo que acusamos de ter feito consistir a alegria no prazer dos sentidos [no original latino, Nieremberg cita “Charidemus Cynici Chrysostomi”, sobre o qual não encontramos referência; a citação do filósofo em questão se encontra em grego no original: "Ξυγκέιός ό ήμάς έξ άυτών δή τ βασανιζόντων, ψυχής τέ, κό σώματό"; ndt], encontrando-se, no fim de seus dias, assolado por dores cruéis, que pareciam querer se vingar daquilo que ele sempre assumiu como Volúpia, suportava-as com uma admirável constância. Aquilo que lhe atormentava sem parar, aquilo que desolava seu corpo, não agitava em nada o seu espírito. Certamente que ele tentava colocar em prática suas máximas e seus sentimentos; ele justificava, com sua própria experiência, a doutrina em que sempre acreditou e que sempre ensinou, que o Sábio nunca será infeliz, mesmo se estiver sob tortura. Assim, qualquer que seja a agitação e a pena que chegue ao corpo, a paz de espírito permanece firme e não pode ser em nada abalada. Ela sai, ela triunfa de todas as tempestades que a Fortuna suscita; ela não pode ser violada por nenhum de seus atentados e esforços. Não é pelas pernas, mas pelo espírito que vivemos, respondeu sabiamente Espeusipo [filósofo grego, nascido em Atenas, por volta do ano 393 a.C. e falecido perto do ano 339 a.C., foi o sucessor de Platão na Academia; ndt] a Diógenes [sobre o qual já escrevemos em nota anterior; ndt], que o vendo pressionado pelas violentas dores da gota, o aconselhava a procurar um remédio para o remédio de todos os males. Sem dúvida o que faz viver o homem é o que permite que ele viva de forma feliz. É pela alma que vivemos, e por ela vivemos felizes, desde que vivamos segundo a razão. Tudo o que nos é suficiente para a vida nos é suficiente para a felicidade; e não pensemos que ter um corpo enfermo ou mutilado de qualquer uma de suas partes é um obstáculo para possuir a felicidade. Pelo contrário, é certo que, quando as dores afligem o corpo, a alma, ocupando-se menos dele, pode se retirar para o entendimento como que para a sua fortaleza, onde ela pode agir com mais vigor, bem como com mais dignidade. E é então que podemos dizer que ela está verdadeiramente onde deveria estar, onde ela faz suas mais nobres operações, onde ela as produz de forma ainda mais excelente e perfeita; estando totalmente recolhida em si mesma, e não estando, portanto, espalhada pelos sentidos, ela não se rebaixa e não se profana com atos indignos da grandeza de sua origem, ela se conserva límpida e pura das Volúpias que a poluem. Além do mais, espero que não se escandalizem com o fato de, aqui, eu fazer menção a Filósofos pagãos, e que ninguém ache estranho se eu repito sem vergonha alguma seus sentimentos. Tomo esta liberdade a fim de que tenhamos vergonha não apenas de não fazer o que eles fizeram, mas também de não fazer o que eles disseram; a fim de que tenhamos vergonha não apenas de não imitar seus exemplos, mas também de não praticar seus preceitos. Eu quero, com isso, que nos retiremos do vício e nos descubramos culpados de desprezo e ingratidão pela Graça, olhando para esses homens que só conheceram imperfeitamente o soberano bem, que não puderam ter uma imagem verdadeira do soberano bem, que possuíram uma sabedoria falsa. Mas por que é necessário que aquilo que eles fizeram em meio às trevas, iluminados apenas pelos lumes da Razão fortalecida pela ajuda e pelas luzes que vêm do Céu – o estudo da virtude – não tenha efeito sobre nós? Por que aqueles que veem claramente e que têm guias não podem caminhar de forma mais correta e segura do que aqueles que não veem nada e que estão cegos?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 81-83.

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