segunda-feira, 3 de maio de 2010

Terceiro prelúdio - Capítulo VI

CAPÍTULO VI
Saibamos um pouco, eu vos peço, acerca de Antípatro, o Cireneu [não encontramos nada de consistente acerca deste personagem – no original latino aparece como “Antipater Cyrenaicus” –, a não ser uma referência a ele nas Tusculanas de Cícero; ndt]: a perda de sua visão significou sua ruína ou apenas a diminuição de sua alegria? Ele nos ensinou que não depende em nada da bela composição do corpo, nem do inteiro e livre uso de seus sentidos a produção da felicidade, mas tão somente da tranquilidade do espírito. Ele sabia bem que, por estar em trevas perpétuas, não deixamos de ser felizes. Ele não ignorava que a noite, como o dia, tem seus prazeres e suas delícias. Ele também se consolava com aqueles que se afligiam com sua cegueira, ele ria do fato de eles chorarem tendo olhos, sendo que ele, que não os tinha, não era, porém, nem triste nem cheio de dor, nem cria que sua felicidade tivesse sido diminuída de alguma forma. Os parentes e os amigos de Pardulfo [trata-se de São Pardulfo, monge eremita, conhecido por ser taumaturgo, que viveu no século VII, na França, num lugarejo conhecido como Guéret; ndt] sentiam um enorme desprazer ao vê-lo em tamanha desgraça, e ele, porém, sentia enorme alegria; podendo obter de Deus a graça de recuperar a vista, que ele rezava para que outros obtivessem, ele nunca pediu isso para si mesmo, visto ter recebido algo que nunca havia pedido: ele se contentava com o fato de possuir a felicidade que aliviava sua miséria. Saibamos também de Epícteto: por acaso, ele se afligiu desejando uma boa perna, esperando que dela dependeria sua alegria? Certamente, uma volúpia constante e, por assim dizer, bem assentada e repousada, tal como a que ele possuía, vale incomparavelmente mais do que estas Volúpias inconstantes que, cedo ou tarde, se afastam de nós mais rapidamente do que o mais veloz dos animais; que são sensuais e brutais como os animais; que, não sendo menos temíveis que os mais selvagens e mais cruéis animais, são mais perigosas e mais maléficas. Múcio Escévola [trata-se de Quinto Múcio Escévola (final do século III a.C.), político da antiga República Romana, que foi governador da Sardenha por cerca de três anos; ndt] não achava em nada que sua glória fosse imperfeita; a felicidade se comunica voluntariamente para os virtuosos. Ela vem até a eles de muito bom grado; eles não têm nenhuma necessidade de pegá-la à força. Com a mesma mão que Barlaam [trata-se de São Barlaam, mestre de São Josafá, que parece ter vivido no século III ou IV, na Índia; ndt], este nobre e generoso homem rústico, preferia abandoná-la ao fogo que prostitui-la oferecendo incenso aos Ídolos; por isso, ele mereceu a palma do martírio, ele se coroou de louros muito mais dignos do que os do famoso Romano [não está claro de que personagem trata Nieremberg nesse trecho; aparece assim no original latino: "Potuit & sine manu rapere gloriam Dei, quid mirum, si Romanam."; ndt]. Os céus olharam atentamente o sacrifício de um homem que só queria fazer por eles; para ele, eles abriram todos os olhos; eles pareciam testemunhar, por seu ardor, a alegria que sentiam por ver esta mão ardente. Antígono [não encontramos referências históricas acerca deste personagem; no original latino, aparece: "Antigonus colliso naso"; ndt], Filipe [também não encontramos referências históricas sobre este personagem; no original latino aparece como “Philippus oblaeso orure”; ndt] e Filopémen [trata-se de um importante estrategista grego, que viveu entre os anos 253 a.C. e 184 a.C.; segundo consta, foi condenado a beber veneno, depois de ter sido capturado pelos messênios, numa revolta estimulada por um seu opositor político. No original latino, Nieremberg se refere a “Philopoemenes sine ventre”; ndt], que carregavam marcas de defeito em seus corpos não puderam, no entanto, nunca ser felizes? E o corajoso Zenão [trata-se de Zenão de Eléia (c. 495 a.C. – 430 a.C.) que, após ter sido capturado e torturado pelo tirano que reinava em Eléia, a quem combatia abertamente, cortou com seus próprios dentes a língua e a cuspiu no rosto do tirano, para mostrar-lhe que jamais delataria seus companheiros; ndt] terá sentido alguma dor mesmo depois de ter cortado sua língua? Amón [não sabemos precisar a que Amón se refere Nieremberg; no texto latino aparece assim: "Anne aeternae miseriae se damnavit Ammonius praecisa auricula?"; ndt] terá se condenado a uma miséria perpétua depois que lhe arrancaram uma orelha? E Santa Águeda [Santa Águeda de Catânia (c. 230 – c. 254) foi martirizada durante as perseguições de Décio ou de Dioclesiano, tendo sido açoitada e torturada até à morte; segundo consta, teve os seios arrancados por tenazes; ndt] terá sido melancólica por toda a sua vida depois que perdeu, pelo martírio, uma graça, um ornamento natural do corpo tão caro às pessoas do seu sexo e que elas conservam com tanto cuidado? Apesar da violência dos suplícios que seus carrascos a fizeram sofrer ter sido muito acima de suas forças, ela não esteve abaixo de sua coragem: ela expôs com alegria seu corpo a todo tipo de pena e, pela constância maravilhosa com a qual ela suportou o opróbrio feito aos seus seios, ela deixou transparecer que carregava verdadeiramente um coração generoso. Ela se gloriou de suas cadeias, ela tornou a prisão causa de suas delícias [no original latino, Nieremberg cita um trecho do Papa Dâmaso I (305-384) que relata o martírio de Santa Águeda: "Fortier lies, trucibusque virtu, / Exposvit sua membra flagris; / Pectore quam fuerit valido, / Torta mammilla docet patulo, / Delicia eius carcer erut."; ndt]. Guardemo-nos bem de acreditar que seja um lugar onde a alegria não se encontra e de onde ela não ousa se aproximar. Os mais cruéis Tiranos não têm uma prisão tão estreita e tão rigorosa onde ela [a alegria] não se sinta à vontade e onde, se se quiser, ela não possa plenamente habitar. Certamente, se se pode ser feliz no mundo, se pode sê-lo também na prisão, já que ele [o mundo] também é uma prisão de onde a Justiça de Deus tira, todos os dias, criminosos para os fazerem responder diante de seu trono. Se minha prisão não é tão grande quanto a dos Príncipes, dizia de forma excelente o Católico e Ilustre Chanceler da Inglaterra [trata-se de São Thomas More (1478-1535), que foi martirizado no dia 6 de julho de 1534, após ter se negado a reconhecer Henrique VIII como cabeça da Igreja da Inglaterra; ndt], eu me acredito ainda mais feliz por ter escolhido, entre os males, o menor. Depois de tudo isso, o que importa se nos dilacerarem o corpo? E por que devemos nos preocupar quando o dividem em pedaços? Visto que nós sabemos que ele é a metade do homem que é supérflua para fazer sua alegria; visto que sabemos que é o espírito que lhe dá todo o necessário para isso. Paulino [trata-se de São Paulino de Nola (355-431), eremita que, antes de sua conversão era Cônsul; vendeu tudo o que tinha, deu aos pobres e, com sua esposa, fundou uma comunidade monástica em Nola, na Campania (Itália); ndt] e Serapião [trata-se de Serapião Sindonita, sobre o qual já escrevemos em nota anterior; ndt] se fizeram escravos; eles não tinham nenhuma parte de si mesmos em seu poder, seus corpos eram todos de outro, mas seus espíritos eram inteiramente seus; e mesmo que um poder alheio a eles lhes possuísse absolutamente, eles possuíam inteiramente sua felicidade.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 77-80.

Nenhum comentário:

Postar um comentário