sexta-feira, 23 de abril de 2010

Terceiro prelúdio - Capítulo V

CAPÍTULO V
Deus não tem nenhum tesouro como o têm os homens. O Mestre de todas as riquezas do mundo não possui nenhuma fora de si mesmo. Ele compreende, Ele encerra em si tudo o que pode haver de bens; Ele sozinho é todos os bens juntos. Sua felicidade é pura e não recebe nada de estranho, nada a compõe além dela mesma. A beatitude rejeita o luxo; ela é frugal, ela ama a simplicidade. É sobre isso que está fundada a Filosofia: na resolução que ela tomou de dar a um dos seus a glória de poder disputar a felicidade com Júpiter, porque ele não tinha necessidade de nenhuma outra coisa além de si mesmo. Será ainda mais adequado dizer que Deus basta a si mesmo; mas que, por mais imensa e infinita que seja a Sua riqueza, ela não é em nada superabundante, ela é, todavia, sem superfluidades. Tudo o que a compõe é necessário. Assim, o homem é suficientemente rico de si - assistido, porém, pela graça de Deus, fora da qual seria pobre no meio de todas as riquezas do mundo. Mas, há muito mais coisas de que ele não precisa. Ele tem muito de seu corpo; seu espírito sozinho lhe é suficiente. Julguemos, a partir disso, quão fácil é para ele se tornar feliz, visto que ele o pode ser não apenas sem o benefício da Fortuna, mas ainda sem as vantagens que vêm da Natureza. Que ele possa perder, se quisermos, uma boa parte de si mesmo, que separemos seus membros de seu corpo, que arranquemos suas mãos e seus pés, que o privemos das funções mais nobres dos seus sentidos, da ajuda da visão, ainda assim não arrancaremos nada daquilo que serve para torná-lo feliz; ele salvará dessa ruína a tranquilidade de seu espírito. Ele não deixará, depois de tudo isso, de ser inteiro. Seus olhos, seus pés, suas mãos, não são em nada necessários para a sua verdadeira perfeição. Eles podem muito bem lhe faltar, sem que a felicidade lhe falte. O que pertence à Fortuna não é em nada capaz de fazer a nossa alegria. O que podemos perder não pode, verdadeiramente, ser considerado como algo que nos pertence; porque, como um grande Santo disse [no texto latino, aparece a referência a São Próspero (c.390-c.465), que foi discípulo de Santo Agostinho; ndt], a sabedoria conserva seu bem, sem diminuição e sem dano. Tudo o que ela tem lhe vem dela mesma, ela não toma emprestado de ninguém. Esta foi a opinião de um Filósofo [o texto latino faz referência a um certo Automedón, poeta da antiguidade grega; ndt]: o cúmulo da felicidade é não dever a ninguém. Não teria ele mais razão em dizer que é não dever em nada à Fortuna, estando certos de que o menos feliz é aquele que lhe deve tudo o que possui, mesmo que possuísse o mundo inteiro? Seguramente, os que têm tudo dela podem muito bem dizer que nada têm ou que, pelo menos, que possuem muito pouca coisa. E podemos muito bem ser felizes sem a ajuda de outros, visto que não temos quase necessidade nenhuma de nós para isso, e visto que podemos muito bem nos servir apenas da metade de nós mesmos.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 75-77.

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