CAPÍTULO VIII
Nós lhes fazemos, no entanto, a injustiça de lançar sobre elas a causa de nossas infelicidades; nós lhes condenamos contra todo tipo de razão. E aqui nós também, como aqueles que não agravam seus crimes se desculpando, mas acusando os inocentes, e que se comportam como delatores para não serem cridos como culpáveis. Se não há nenhum motivo para atribuir a uma pintura os defeitos da mão que a fez e de tomar por ignorante o artesão, também não é razoável imputar às coisas que estão fora de nós o mal que elas não fazem, e que, na verdade, somos nós que cometemos. Não podemos imputar as desordens à vida que não vem, absolutamente, de nós. Tudo o que nos chega procede de nossa vontade, ela, sim, culpável e cúmplice. Como os furiosos e as crianças se machucam com o mesmo ferro com o qual querem ferir alguém, como eles só servem dele para a própria ruína, nós também recebemos danos de tudo aquilo de que nos servimos contra a Fortuna: tudo o que nela jogamos recai sobre nós, fazemos, por nossas próprias faltas, com que o antídoto se torne veneno. Certamente, apenas a nossa Vontade é criminosa: as coisas que estão fora de nós são não apenas inocentes, mas também nos são favoráveis; e podemos mesmo dizer que elas nos fazem o bem naquilo em que não são más. Seja lá de onde for que se as pegue, as coisas que estão fora de nós são tão unidas e iguais que não há nada que pare ou crie temor à mão. Nelas, a alegria se parece com a tristeza; elas não têm nem característica nem marca que as distinga umas das outras; e, sem dúvida, isto foi uma falsa visão de Epícteto [filósofo grego, que viveu entre c.55 a.C. e c.135 a.C. Era seguidor da escola estóica e viveu parte de sua vida como escravo em Roma; ndt] que imaginou que as coisas tinham duas asas – uma leve e fácil, a outra rude e pesada; esta a dor, aquela a alegria. Ele, seguramente, se enganou ao acreditar que, na medida em que as pegamos por uma ou outra das asas, elas nos podem trazer contentamento ou aborrecimento. Seu pensamento foi mais razoável ao dar dois braços à Vontade, um que torna pesado e desagradável tudo o que ele toca, e outro que a tudo torna leve e agradável; este é o Arquiteto de nossa felicidade, aquele é o operário de nossa miséria. E alguém também imaginou, sabiamente, que a Vontade traz uma chama em uma das mãos e um vaso cheio de água na outra. Com efeito, uma de suas mãos é defeituosa e infeliz e a outra, pelo contrário, é de tal forma feliz e bem composta que pode, sem se fazer mal algum, pegar as coisas mais rudes e desagradáveis justamente pelo lado em que nos machucam ou nos queimam. Ela pode tirar prazer de tudo o que causa dor. Ele converterá em bem para nós tudo o que ele toca, por uma propriedade mais maravilhosa e infalível ainda do que a desse famoso Rei dos Lídios [trata-se do rei Midas, citado expressamente no texto original latino: “Maior haec gratia, quam Midae, cuius digiti fodinae erant auri; cuius palma, India, aut Arabia aliqua”; ndt] que produzia ouro apenas tocando com as mãos, que eram como outras mãos da Índia e uma nova da Arábia [confira nota anterior para compreensão desse trecho, cuja tradução parece obscura; ndt]. Por esta feliz mão, a Vontade muda em ouro tudo o que lhe agrada. Ela faz uma coisa infinitamente mais nobre e preciosa, uma coisa que vale mais que todo o ouro do mundo e que nem mesmo ele nos poderia adquirir. Ela faz nosso soberano bem, ela é, verdadeiramente, para nós, as Índias e a Arábia [diz o texto latino: “Non minus manualis est laetitia, manum habet voluntas convertendi omnia, si non in aurum, in id, quod auro non emitur. Ipsa est sibi felix Arabia, ipsa India, ipsa aurisodina, & vena locupletis pacis, non indigae rebus laetitiae”; ndt].
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 60-62.
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