CAPÍTULO IX
Alguém poderia ainda se persuadir de que ela nos obrigaria muito mais nos revestindo de pêlos, agulhas, escamas ou penas, como ela revestiu os animais, e nos dando armas e defesa como deu a eles, mais do que deixando-nos nus, sem defesa e sem cobertura? Que aqueles que têm este pensamento saibam que é sobretudo nisso que ficou evidente sua sabedoria e sua bondade. Ela fez aos homens o favor de permitir que o gosto do espírito fosse tão livre quanto o gosto do corpo; não foi sua intenção que o homem fosse mais constrangido em um que em outro. Ela previu que a maior parte deles não queria portar vestimentas; como, com efeito, a metade do mundo não porta; e previu também que o resto queria não apenas usar vestimentas, mas afetaria graça e ornamento no uso dessas vestimentas. Ela julgou muito bem que haveria homens que se agradariam de estar sempre armados, e outros que desejariam nunca estar; que haveria caprichos de uns em não terem nem defesa nem cobertura, e de outros haveria divertimento no buscá-las [a defesa e a cobertura] em cavernas e florestas. A fim de que nós pudéssemos nos formar como bem nos parecesse, e que pudéssemos escolher o partido que mais estimássemos, ela não assumiu nenhum direito sobre a liberdade de nossa condição; ela quis dar a cada um sua inclinação própria como guia e, como lei, quis dar sua própria fantasia. E, de fato, nos é necessária outra razão, além da experiência cotidiana, para justificar que todas as coisas não são agradáveis a todos; e que elas não satisfazem o tempo todo às mesmas pessoas? Imaginai que incômodo seria estar sempre vestidos e armados, não poder sair de casa, como as tartarugas e as ostras não saem das suas! Certamente, como durante uma guerra, seria necessário e bem adequado portar armas; mas seria inútil e ridículo carregá-las durante a paz. Os forros que o rigor do inverno nos obrigam a procurar com tanto cuidado, se tornam importunos tão logo a bela estação chega, e todo mundo, então, faz o possível para se aliviar desses forros. Como há um tempo para se vestir, há um para se colocar nu. É preciso ficar nu, pelo menos, para apreciar adequadamente a doçura do repouso ou tomar banho. Se consideramos seriamente com quanta prudência a Natureza se comportou conosco, e a razão que ela teve de nos deixar no estado em que nos encontramos, encontraremos razões para acreditar que ela satisfez perfeitamente a todos os nossos desejos, e para acreditar também que possuímos gratuitamente tudo o que nos custaria muito procurar. Nossas casas nos garantem contra as injúrias do ar: nós entramos nelas quando ele se complica e nos ameaça com uma tempestade; nós nos trancamos nelas, sem sermos seus prisioneiros; elas nos cobrem sem que as precisemos carregar; a comodidade que delas recebemos não tem nada importuno e servil. É-se também, algumas vezes, contente de estar no campo e se maravilhar na contemplação das diversas belezas da Natureza. Nesses momentos, parece-nos estar saboreando, por antecipação, a felicidade da outra vida, tendo, desde a terra mesma, como que a inteira posse do Céu. A Natureza nos tornou mestres de todos os bens, não nos dando nenhum daqueles que ela partilhou com os animais. Ela deixou seu emprego à Razão, e seu direito à nossa liberdade. Ela submeteu todas as coisas ao espírito, a fim de que, buscando-as todas, ele se cultive, ele se embeleze. Ela não quis dar um ponto final no homem, para que ele completasse, por sua própria vontade, o que pudesse faltar à sua perfeição, para que os defeitos que ela lhe tivesse destinado fossem consertados de forma mais vantajosa por ele mesmo.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 26-28.
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