sexta-feira, 9 de abril de 2010

Primeiro prelúdio - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO PRIMEIRO
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PRIMEIRO PRELÚDIO
QUE nós recebemos bens bastantes da natureza para adquirir a felicidade, sem ter necessidade daqueles da fortuna

CAPÍTULO PRIMEIRO
Tenho a intenção de produzir no mundo a mais excelente e a mais necessária de todas as Artes, na qual a razão e a indústria humana poderiam sempre se aplicar. Aquela da qual o conhecimento é, sem dúvida, o mais importante, que se propõe o mais nobre dos objetos e da qual a prática, sendo a mais útil, tem esta notável vantagem: a de ser também a mais cômoda. Ela ensina aos homens a via infalível que conduz à felicidade; ela os leva onde todos eles querem chegar; ela os faz tocar o objetivo para o qual todos visam naturalmente, mas do qual todos também se afastam, e para o qual vemos que, muito raramente, eles chegam. Se quisermos crer, eles encontram muitos impedimentos da parte das duas potências para chegar a ela: podemos nomeá-las como os Soberanos Árbitros da vida, a Natureza e a Fortuna. São tantos os obstáculos por elas impostos que lhes é absolutamente impossível superá-los. Eles acusam a primeira de lhes ter sido pouco favorável na distribuição dos bens que dependem dela, de lhes ter quase abandonado, em comparação com os cuidados que ela teve com o resto dos animais; e - que é o que lhes importa mais - de lhes ter privado das vantagens sem as quais toda a pena que eles encontram na tentativa de serem felizes seria apenas inútil. Eles consideram a outra como a sua inimiga capital, que se opõe à realização de seus santos desejos, e que parece ter assumido a tarefa de arruinar seus mais belos empreendimentos. Em uma palavra, eles imaginam que ela suscita a maior parte dos males que lhes acontecem. Nossos primeiros cuidados serão de lhes desiludir desses erros; justificaremos uma e outra das diversas calúnias que se lhes impõem; restabeleceremos-lhes em sua boa reputação, e trabalharemos, em seguida, para a cura das enfermidades humanas, através de remédios fáceis e familiares. O que poderíamos fazer de mais cômodo, eu vos pergunto, do que regrar nossa vontade, corrigir nossa avidez? É aí, no entanto, onde se encontra os assuntos que me fazem temer que esta intenção, por justa que seja, não seja mais bem sucedida hoje, para mim, do que tenha sido a outros no passado. E que, se o sucesso é incerto e duvidoso, a utilidade, pelo menos, é evidente e singular. Vemos, em geral, essas duas desordens juntas: que a maior parte dos homens, por uma falsa persuasão de que trabalham pela sua felicidade, é artífice da própria miséria; e que, por mais razoável que sejam esses famosos Inventores de suplícios que a antiguidade nos fez conhecer, merecem ser punidos pela sua perniciosa indústria para consigo mesmos, não se contentam com a injustiça que cometem contra a Fortuna, acusando-a pelos males dos quais ela não é nada culpável, chegando mesmo à impiedade de julgar também a Natureza. Entretanto, com alguma aparência de razão que seja na condenação que enunciam, não nos é muito difícil verificar que não têm razão; não nos é difícil mostrar como elas são inocentes. A Natureza, à qual eles imputam de lhes ter sido muito negligente, certamente mereceu deles tudo aquilo que uma boa mãe deveria merecer de seus filhos; ela teve cuidados muito particulares, ela lhes concedeu importantes vantagens. E a Fortuna, da qual eles acreditam que tenham tantos motivos para se queixarem, e que eles creem que lhes é tão contrária e tão avara, lhes é amistosa, lhes é liberal até o ponto de testemunhar sua paixão em lhes fazer bem; visto que ela só tem a eles na natureza, ela só faz parte deles; dela, eles recebem, a todo o momento, as marcas de seu favor; ela os obriga incessantemente e, por uma cruel retribuição, eles não param de ofendê-la, a todo o momento eles a repreendem, eles a enchem de reprovações e calúnias. Ela os considera como o Único e Eterno objeto de seu amor e de sua largueza, e para que nunca lhe falte meios para lhes fazer tantos bens ela não dissipa seu fundo. Ela se conserva rica, a fim de ser sempre benfeitora. E porque ela não o saberia ser universalmente a todos juntos - por mais opulenta que seja, seus bens não poderiam nunca ser suficientes -, ela supre, com sua habilidade, a falta de poder; ela os distribui de tal maneira que, se todos não a possuem ao mesmo tempo, pelo menos a têm sucessivamente e cada um a seu tempo. Ela os acomoda por um tempo, fazendo-lhes mais um empréstimo que um presente, e os faz passarem de uns para os outros, a fim de que não haja pessoa que não tenha motivo para louvá-la, e para que aqueles que se creem mais à frente no seu ódio possam perceber, ao menos uma vez em sua vida, os efeitos de sua bondade. A liberalidade dos Príncipes recebe devoção e adoração de todo mundo, ainda que todo mundo não receba bem algum; é sempre já suficiente que se possa receber; e que as graças que eles fazem a uns deem lugar a outros de esperá-las. Por que reprovamos a ordem que a Fortuna escolhe para a distribuição de seus favores, visto que ela seja tão judiciosa que não há pessoa no mundo que não participe de seus favores? O que mais ela poderia fazer do que ter os sentimentos e as ternuras de mãe que ela tem por nós; do que ser, como ela é, emuladora e rival da Natureza em seus cuidados a nosso favor; do que justificar sua conduta pelo exemplo do que compõe e regra os hábitos, que nos ensina a maneira correta de viver, quero dizer a Filosofia? Uma boa mãe partilha o pão com seus filhos com tanta equanimidade que cada um tem o seu pedaço; ela dá menos a cada um para poder dar a todos. A Natureza, que testemunha ainda maior paixão por nós, estabeleceu a vicissitude e a diversidade das estações, a fim de enriquecer todo o mundo com as produções contínuas; e não é justamente dos lugares mais inférteis e tristes da Terra, dos lugares que menos respondem ao trabalho e à indústria humana, que ela extrai abundantemente aquilo que permite manter sua magnificência e que serve perpetuamente à sua intenção de fazer o bem a todos? [no original latino, há uma citação, em grego, de Sinésio - filósofo neoplatônico do século IV e bispo de Ptolemaida - que transcrevo, para posterior tradução: "Ϊνα κύ πιμάτα / Μερίς όν κόσμώ / Λελάχη ζωας / Έκαμειζομσίας"]. A Filosofia, que entre as coisas que ensina e recomenda com mais cuidado podemos dizer que seja, segura e particularmente, a constância, e que sustenta como máxima indubitável que a sabedoria se adquire no repouso e na quietude, correu o Universo inteiro para não cair no erro de repartir seus tesouros com apenas um. Aquela, de quem os filhos têm esse nobre e raro privilégio de serem Cidadãos do mundo, foi, por muito tempo, errante para fazer bem a todo o mundo. Ela se fez conhecer aos Bactrianos [habitantes da antiga Báctria que, hoje, se encontra na região do Afeganistão; ndt], aos Caldeus, aos Egípcios, aos Fenícios, aos Atlânticos, aos Frígios. Desde então, tendo deixado os Bárbaros para se comunicar aos povos civilizados, ela se estabeleceu na Grécia; e de lá, por sucessão de tempo, ela habitou a Itália. Ela, algumas vezes, sentiu o rigor do inverno eterno dos Citas e dos Hiperbóreos [trata-se de um povo mítico que vivia no extremo norte da Grécia, próximo aos Montes Urálicos; ndt], sob o nome de Anacarsis [príncipe cita que viveu no século VII aC e que é contado entre os Sete Sábios da Grécia; ndt] e de Abaro [de quem não conseguimos referência alguma; ndt]. Ela passou sua infância com Dandamis e Calanus [importantes sábios indianos do século IV dC; ndt], na costa onde o Sol nasce, o lugar que é como o berço do dia. Ela foi, algumas vezes, relegada às Ilhas do Pontos Euxeinos [como era conhecido o Mar Negro; ndt]. Mas, por mais banida que ela tenha sido, ela concedeu a seu Diógenes o direito de Burguesia em todo o mundo. De qualquer maneira, pode-se dizer que fazer o bem a apenas uma pessoa é fazer o mal; e como esta ação é suspeita de coerção, a partir de então, não é digna de nenhuma estima. Ser liberal a apenas uma pessoa é muito mais ser seu escravo que seu benfeitor. A liberalidade é uma virtude Real, que se ressente da dignidade de sua condição, da qual o privilégio mais nobre e mais natural é ser livre. É um bem que pertence ao público, e que não deve ser restrito à posse de um só. Não é não dar gratuitamente, mas não dar a outros. Quem dá por consideração, dá menos a um outro que a si. O bem não sai, verdadeiramente, das mãos daquele que só o distribuem por interesse; que dá menos à condição humana que à pessoa particular; que dá ao amigo, ao parente, ao lisonjeiro, mais que àquele que pode se vingar do bem feito. E para nos explicarmos em uma só palavra, podemos dizer que quem dá com a intenção, com a esperança de receber, certamente, para dizer de forma clara, dá a outros mais do que dá a muitos. Quem só dá a poucos não poderia, razoavelmente, pretender ao glorioso nome de liberal. A verdadeira liberalidade deve ser medida menos pela grandeza do bem que ela fez, mas pelo número de pessoas que a receberam. A Fortuna só é chamada injusta porque é favorável a todos. Ela se propõe o exemplo dos Reis, que devem ser geralmente benfeitores para seus súditos. Ela imita a Piedade, que é sensível indiferentemente a todos. Ela se conforma à Natureza e à Filosofia, que repartem seus bens sem distinção a todos os homens. Ela é boa, ela é fiel, e nós a acusamos de ser maligna e pérfida, por que ela retira os bens que nos havia emprestado e os faz passar às mãos de outros. É exatamente por isso que, aqueles que julgam de forma saudável, acreditam que ela mereça mais louvor, que ela testemunhe assim mais inclinação por nós, que ela seja verdadeiramente cuidadosa de nos abastecer do bem comum, e que alguém só poderia pretender seus favores na medida em que for homem. Por que, portanto, nós nos lastimamos do que ela dá a todos? Não é por isso, mas porque ela dá sem escolha, e não diferencia entre as pessoas de bem e os malvados. Houve, todavia, homens - cuja estima todos os povos, indiferentemente, estão de acordo - que sabemos terem sido louvados por um gesto semelhante. Escutemos um deles sobre este assunto - trata-se do grande Filósofo Aristóteles: tendo alguém chamado sua atenção para o fato de ele ter dado esmola a um homem vil, acusando-o de, nisso, ter faltado com a prudência, ele disse que não é ao homem que eu dei, mas à humanidade. É o mesmo com a Fortuna, quando ela faz o bem aos malvados: ela considera mais a condição Humana que sua pessoa.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 1-7.

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