quinta-feira, 22 de abril de 2010

Terceiro prelúdio - Capítulo II

CAPÍTULO II
Trata-se de uma verdade que não é necessário, de forma alguma, justificar que cada um ama mais aquilo que mais seu é; mais uma coisa nos pertence, mais ela nos é cara. E nada nos pertence a mais justo título do que aquilo que fizemos nós, que é fruto absoluto de nossa produção. Nós amamos, sem dúvida, todas as nossas obras; e a natural paixão que temos por elas é tanto maior, quanto mais se deve apenas à nossa indústria, e quanto menos somos obrigados à ajuda de outros. Se, portanto, a felicidade é o que cada um ama sobre todas as coisas, não seria preciso inferir disso que ela seja o que cada um tem de mais próprio? Que ela seja nossa produção pessoal e não das Riquezas, que não vem de nós, que não são nossa obra, mas puramente obra da Fortuna? Nós nos lamentamos, agora há pouco, do fato de ela ter tornado difícil para nossa aquisição as riquezas, de que ela colocou um abismo entre as riquezas e nós, afastando-nos delas com uma distância enorme, tão difícil de ser vencida. Mas, o que pensamos que foi feito por ela contra nós é, seguramente, para o nosso bem; ela o fez para nossa instrução. Assim, portanto, as riquezas estão longe de nós para que aprendamos a mantê-las distantes, como malvadas e perniciosas, de medo que, por um efeito que lhes é tão ordinário, elas nos alienem da razão, nos distanciem de nós mesmos. É ainda o mal que nos causam as delícias e as volúpias. Por elas, somos distraídos da jurisdição da Natureza, reviramos suas ordens e seus estabelecimentos, destruímos sua economia. Ela [a Natureza] fez as coisas exteriores para servir ao corpo, o corpo para servir à alma, a alma para servir a Deus. Esta excelente ordem é pervertida pelos desregramentos que chegam ao espírito. A paixão que temos pelas Volúpias arranca da alma a superioridade que tem sobre o corpo. Ela [a paixão] faz com que aquele que deveria apenas obedecer se comporte com a insolência de quem comanda e mestre absoluto do outro. O ardor com o qual abraçamos as riquezas é ainda mais perigoso e maléfico: ele sujeita o corpo e a alma, fazendo deles miseráveis escravos, entregando-os a um terceiro, a um metal abjeto e vil e, consequentemente, a tudo o que está fora de nós. Se, portanto, elas causam uma tão estranha desordem, afastando-nos de nós mesmos, e se nada é nosso senão aquilo que é propriamente nosso, como elas podem compor nossa felicidade, que é uma coisa propriamente nossa? Certamente isso nos ajuda a entender que elas só nos prometem coisas falsas, isso nos traz às claras a impostura das riquezas, e justifica ainda mais que, não somente a alegria verdadeira não consiste em possui-las, elas não conhecem nem mesmo o desejo. O que poderíamos dizer das Honras? Senão que elas estão ainda mais distantes de nós do que as Volúpias e as Riquezas, e que elas [as Honras] são ainda menos obra ou produto nossos; visto que, para guardar as riquezas, não precisamos da ajuda de ninguém, enquanto que as honras nos chegam por operação de outros, são a obra de quem no-las dá e não de quem as possui. É por isso que elas, assim como as Volúpias e as Riquezas, não podem compor nossa felicidade, que precisa ser nossa própria obra. Mas, ao mal que elas nos causam, ao nos afastar de nós mesmos, se ajunta um novo e ainda pior, quando, para que nos vinculemos bastante a elas, nos afastamos de Deus, comportamo-nos desgraçadamente, resistindo a Suas vontades. Ao nos tornarmos rebeldes Àquele a quem pertencemos, não tanto por Seus benefícios mas por Seu poder, caímos nessa deplorável loucura que é não nos submetermos às ordens de Sua suprema sabedoria. Eis o que produzem em nós as Honras, as Riquezas e as Volúpias que, por um extremado abuso nosso, acreditamos serem capazes de produzir a felicidade. Umas e outras nos desviam do caminho de obediência a Deus, corrompendo, no seu princípio, a mais excelente e necessária de todas as ciências.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 67-70.

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