CAPÍTULO II
Não deixamos, porém, apesar de tudo isso, de lhe imputar nossas faltas; dizemos que ela nos é injusta; mas somos nós quem o somos com relação a ela. Certo, nós lhe fazemos a injustiça que supomos dela receber. Sempre que ela retira as coisas que nos emprestou, ela é questionada e coberta de maldições, por parte daqueles que, não tendo nenhuma consciência do fato de que mantêm bens que não lhes pertencem, e que querem converter o uso em propriedade, são possuidores de má fé e que desobedecem, assim, sem dúvida, o trato que ela fez com eles. Mas, ela testemunha nessa ocasião a grandeza da sua coragem, não se desencorajando de fazer o bem por medo de perdê-lo, e não deixando de ser liberal por causa de nossa ingratidão. Na verdade, o que ela dá é leve e de pouco valor, e se nós julgamos as coisas com clareza e sem interesse, seremos obrigados a reconhecer que é mesmo inútil. Haverá, no entanto, ingratidão no não louvar seu afeto, já que ela se nos apresenta com tanta franqueza; e não poderíamos deixar de dizer que ela não nos obriga por sua boa vontade, mas que nos obriga por seus efeitos. Isso, porém, não impede que o vulgar ignorante e injusto a tenha em grande má estima; ou que os inteligentes e hábeis, mesmo aqueles cujas luzes são tão puras e altas, não falem dela em termos tão desvantajosos, até o ponto de não temerem chamá-la de cega, inconstante, pérfida, brutal. Injustiça que lhe é feita também pelos mais piedosos e santos, entre os quais um Doutor da Igreja [no original latino aparece, na verdade, a referência ao um certo "Abbas Philippus" - abade Felipe - do qual não encontramos referência na história da Igreja; ndt] que não teve escrúpulos algum em lhe impor esta calúnia: Ela é culpável, ele disse, e não somente ela não se defende da culpa, mas se envaidece de o ser [no original latino, a citação de abade Felipe é a seguinte: "fit rea, sed non pudet esse ream"; ndt]. Ele a ofende tão sensivelmente que, por uma injuriosa liberalidade e uma cruel avareza, concedendo-lhe o crime, recusa-lhe a vergonha, que é uma forma excelente de se preservar das faltas, soberano remédio e, por assim dizer, a saúde dos hábitos. Ele a sobrecarrega de uma malícia que podemos chamar de a fonte e a origem de todos os outros males: Ela jurou, ele continua, fazer sempre o mal, ela faz profissão, abertamente, de infidelidade; ela só promete para abusar da credulidade daqueles que confiam em suas promessas. Acrescentando ainda que diante de qualquer crime que ela carregue, ela não sente remorso nem sentimento algum, ela não enrubesce em nada [mais uma vez, o tradutor excede a demarcação da citação, visto que o texto citado, no original latino é tão somente: "promisit fortuna manum, mentitur"; ndt]. Ele a representa, ele a pinta capaz de todas as traições e de todos os atentados possíveis. E um belo espírito entre os Gregos [no texto latino, Nieremberg faz referência a Jorge de Pisídia - poeta bizantino que viveu no século VII e foi diácono na Igreja Santa Sofia. A citação usada se encontra em grego: "Ή μαχάς όντως, ή ποθές μοΰ άδένα. / Εράν ώ παντός χημάτίσε ώ πόθα", que traduziremos em breve; ndt], atribuindo-lhe o humor e a ligeireza das mulheres públicas e abandonadas, não simula ainda de difamá-la nestes termos: Não confiai na Fortuna, se não quereis que vos repreendam de serdes culpáveis de vossa má sorte, e se quereis evitar a censura de vos terdes enganado por erro vosso. Qualquer que seja a boa aparência em que ela se vos apresentar, qualquer que seja o amoroso olhar que ela vos lançar, mesmo qualquer carícia ou qualquer favor que ela vos faça, não sede tão mal avisados de vos persuadirdes que ela vos ama; ela, certamente, só tem por vós perniciosas intenções. É uma cortesã que abusa de todos por um falso semblante de amor, mas que nunca o teve por ninguém. Quantas outras repreensões lhe foram feitas, e quantos atentados não sofreu, que não são menos injustos e menos cruéis do que estes? Para não mentir nenhum um pouco, podemos dizer que o número daqueles que a caluniam é muito grande. Quanto a nós, por mais que nos tenhamos declarado a seu favor, ou que tenhamos assumido a tarefa de defendê-la, vamos relaxar, desta vez, no rigor com o qual condenamos os sentimentos do vulgo. Contentar-nos-emos apenas de ter trazido à tona a injustiça deste encontro, estimando que nossos cuidados serão mais utilmente empregados na correção de suas paixões, do que na recusa de suas injúrias; e que é mais necessário que trabalhemos para impedir que os que seguem a Fortuna não se tornem mesquinhos, que para fazer parecer que ela é inocente. Certamente, o desejo que testemunhamos contra ela teria um fundamento bem legítimo, se ela nos curasse de todos os nossos outros desejos; e nos seria não somente perdoável, mas também honesto odiá-la, desde que, com isso, aprendêssemos a amar nossos bens próprios e não os seus. Depois de tudo, é algo igualmente estranho e lastimável que tenhamos uma tão grande paixão pelos bens, e uma tão grande raiva por aquela que os dispensa.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 8-11
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