CAPÍTULO III
A Felicidade se conduz e se regra inteiramente pela Vontade. Pode-se dizer que ela caminha sob seu ensinamento, e que ela embarca em seu navio sem nenhum bem ou honra. Ela não vai acompanhada de nada que esteja fora de nós. É uma verdade da qual podemos nos glorificar: que, na passagem que temos que fazer neste mundo, somos abundantemente supridos de tudo o que é capaz de compor a felicidade. Trazemos suficientemente conosco o equipamento necessário para nossa alegria. Sem dúvida, Deus e o homem são suficientes, sozinhos, a si mesmos: cada um é suficientemente rico de si mesmo; e o mais rico é aquele que se substitui a todas as coisas, que conserva sua riqueza e sua felicidade na posse de sua pessoa. A cidade de Mégara [antiga cidade-estado grega, situada no istmo de Corinto; ndt], após ter sido tomada por Demétrio [a tomada de Mégara por Demétrio I (337 a.C.-283 a.C.), da Macedônia, se deu em 307 a.C. Demétrio I, conhecido também como “Demétrio Poliorcetes” (que significa, em grego, o tomador de cidades) foi um rei macedônio, filho de Antígona Monoftalmo; ndt], foi palco de uma cena importante: tendo Demétrio um cuidado particular em devolver a Estilpón [Estilpón de Mégara foi discípulo de Diógenes, sobre quem já comentamos em nota anterior, é um dos representantes mais importantes da chamada Escola Megárica, que criticava a filosofia platônica, especialmente no particular sobre a imitação que a realidade sensível faz do Ser; ndt] tudo aquilo que a injúria da guerra poderia ter tirado dele, ouviu deste Filósofo: eu não perdi nada. Belas palavras, certamente, e que teriam toda a sua dignidade na boca de um Cristão; mas que tiveram pouca dignidade, tendo sido pronunciadas por aquele que se encheu de honra ao recusar as honras que lhe foram oferecidas por um grande Príncipe e que fez uma obra-prima de si mesmo, tendo corrigido suas más inclinações pelo estudo da sabedoria. A Natureza teria sujeitado este excelente homem a um dos mais perniciosos vícios, que podem destruir o conjunto do corpo e do espírito, pela simples corrupção da boca. Como se ela tivesse como desígnio colocar à prova a força da Virtude, e verificar do que é capaz uma alma alta e generosa; ela lhe suscitou este perigoso adversário, ela o colocou nas mãos com um poderoso inimigo. Certamente, ele não creu ser suficiente reprimi-lo e enfraquecê-lo [está falando do vício], ele o venceu absolutamente no início, ele obteve uma inteira vitória sobre o vício, ele apagou completamente esta mancha de sua vida a tal ponto que, nunca mais, puderam reconhecê-la. Bias [trata-se de um dos Sete Sábios do Oriente, nascido em Priene, hoje Güllübahçe, na Turquia. Conta a história que, quando Priene foi sitiada pelos persas, Bias permaneceu imóvel, enquanto todos os cidadãos tentavam proteger suas riquezas. Perguntaram-lhe, então, qual era a sua riqueza, e ele respondeu: “a minha riqueza está na minha cabeça”; ndt], este Filósofo tão grande e tão Real, foi o único dos Cidadãos de Priene que não quis salvar nada quando sua cidade foi tomada, ele não carregou nada, ele saiu vazio e nu, dizendo que ele trazia todos os seus bens consigo. Ele sabia que não há nada de mais cômodo, que cause menos aflição para carregar, do que a felicidade. Outro, que poderíamos nomear como um segundo Aristipo [há dois personagens na Grécia antiga com este nome, ambos pertencentes à chamada Escola Cirenaica. O primeiro Aristipo foi discípulo de Sócrates e, como este último, se interessou quase que exclusivamente pela ética, e defendia o controle racional sobre o prazer. O segundo Aristipo, é neto do primeiro, e é conhecido como Aristipo, o Jovem. Segundo Eusébio de Cesaréia, este último foi quem sistematizou o pensamento do avô na chamada Escola Cirenaica; ndt], por causa da conformidade de seus sentimentos. Em uma situação muito parecida, ele chegou nu em Rodes, após um naufrágio, e, diferentemente de todos aqueles que estavam com ele que lamentavam ter perdido tudo, ele testemunhava alegria, como se tivesse salvado tudo, visto que ele havia salvado sua pessoa. Quer dizer que o sábio se encontra de pé e firme em meio às maiores tempestades que o pudessem atingir e, bem longe de o abaterem, elas não têm a força sequer de o sacudirem. Ele é para si mesmo um porto seguro contra todas as tempestades da Fortuna; e, verdadeiramente, aquele que é agitado pelas águas do mar e está em perigo de naufrágio pode se garantir de que seus bens não correm perigo, de que ele tem, como se estivesse em terra firme, tudo o que há de mais precioso, e de que não perderá nada, na medida em que não perder a tranquilidade de seu espírito. Aquele que sabe conservar esta tranquilidade de espírito, conserva, com isso, sem dúvida, tudo o que lhe é necessário, tudo o que precisa e merece cuidado; está coberto contra todos os tipos de inconvenientes e desgraças; não recebe nem as ameaças do Céu irritado nem as fúrias mesmas do inferno; não tem medo de nada que eles lhe possam fazer. Não foi com outras armas que este Atleta audacioso, para não chamá-lo arrogante, Epícteto [sobre o qual escrevemos em nota anterior], que desafio a Fortuna tão frequentemente, teve a segurança de desafiá-la nestes termos: Que todos os deuses juntos façam a guerra contra mim; que eles derramem sobre mim todos os traços de sua cólera e de sua vingança; eu não serei em nada atingido, eu não perderei nem meus bens nem meu repouso. Tudo o que há de mais terrível e de mais insuportável, os trabalhos, os perigos, as dores, a infâmia, a pobreza, tudo isso não conseguiria me incomodar. Minha alegria não será em nada abatida, minha tranquilidade não seria sequer perturbada. Elas estão em um lugar impenetrável, que está coberto contra todas as suas empresas e ridiculariza todos os seus esforços. Assim, certamente, pode-se dizer que, nesta ocasião, não há nada que faça guerra mais corajosamente do que a paz mesma. Sem mentir, aquele que tem a paz em si tem tudo o que lhe é necessário para não temer nada e para conquistar tudo. A paz permanece como maestrina em todos os combates da Vida. São as verdadeiras armas com as quais é necessário se defender contra a Fortuna. Não é necessário, em nada, aqui, que a cólera anime a coragem, mas sim que a alegria a anime. Nada nos é mais necessário para conseguir vantagem neste combate do que a paz e a moderação da Vontade.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 70-73.
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