segunda-feira, 19 de abril de 2010

Segundo prelúdio - Capítulo II

CAPÍTULO II
Assim, portanto, se é necessário que as estimemos, se quisermos examiná-las e reunir num mesmo conjunto suas diferentes ordens, nós nos descobriremos, mais cedo ou mais tarde, enganados. Quem acreditaria falhar, eu vos pergunto, e não dar a cada uma o seu posto e o caráter que lhe é peculiar? Visto que ele enumera as que são agradáveis e que nos trazem alegria, vida, riquezas, honras, volúpias. Visto que ele chama de odiosas aquelas cujo simples pensar nos causa aflição, morte, pobreza, infâmia e dor. Encontraremos, porém, erro nesta nossa conta, será mesmo necessário que reconheçamos que ela não é justa; seremos constrangidos a consertar o erro que cometemos. Viram-se muitas pessoas que não somente amaram a morte e a consideraram como sua felicidade; mas viu-se também a quem a vida foi odiosa, mesmo até o ponto de lhes ser insuportável, e de lhes dar uma extrema impaciência dela se livrar. A posse das riquezas tornou a muitos tristes e desgraçados. Elas trouxeram dor para muitos, inquietude e cuidados a todos. A pobreza, pelo contrário, foi não apenas agradável a outros; mas também foi querida: eles a abraçaram com alegria e a procuraram com ardor. Sabe-se que eles fugiram das honras e dos lugares onde elas se encontram, da mesma forma com que fugimos dos ares infectos e contagiosos. E sabemos que se quis mesmo rir deles, desde o momento em que foram vistos desprovidos de sua dignidade, a quem as feridas não causaram nenhuma tristeza e que mesmo zombaram de sua infâmia. Alguns eram melancólicos em meio a delícias, outros se lançaram nas aflições e nos tormentos. Poder-se-ia, depois disso, não ter uma inteira persuasão desta verdade, de que a alegria e a dor não procedem em nada das coisas que estão fora de nós? E de que, falando bem a verdade, se elas permanecem sempre as mesmas ainda que os eventos sejam diversos, se elas não mudam em nada a sua natureza ainda que mudemos de paixão, é preciso para justificar bem isso que o que nos alegra ou nos aflige certamente tem seu assento no coração e que é em vão se esforçar por procurar a causa em outro lugar? Se as coisas que estão fora de nós produzissem a alegria e a tristeza, sem dúvida elas a produziriam necessariamente e em todo tempo. E, dessa maneira, uma mesma coisa nos deixaria incessantemente felizes ou tristes. Não é a morte sempre dura e inexorável? Por acaso, ela é desprovida do louvor a que pretende na igualdade que tem por todos e que permite a derradeira consolação àqueles que se empenharam contra a desigualdade da Fortuna? Como é que, sendo temida por todos, foi desprezada por Sócrates e ridicularizada por Terâmenes [político ateniense, que viveu no século IV a.C.; foi um dos principais idealizadores do golpe de Estado que instaurou o governo dos Trinta Tiranos; foi morto, após se opor aos excessos do tirano Crítias; ndt]. Como, com esta abordagem terrível, com este rosto assustador com o qual ela assusta os homens, ela não fez medo a Cânio [bispo e mártir do século III; ndt]? O mesmo Cânio que, para além de sua constância e de seu terrível temor em recebê-la, considerando-a com curiosidade como algo que ele nunca acreditou merecer lançar os olhos e pensar a respeito, parecia, por este mesmo cuidado, lhe honrar, lhe infundir dignidade; e de vil e desprezível que ele a considerasse a tornar estimável e preciosa. As Riquezas eram sem graças e sem charmes quando Cúrio [trata-se do mesmo Mânio Cúrio Dentato, sobre o qual se fez já referência; ndt] as recusou? Pareceriam elas tão ruins a Crato [Crates de Tebas (c. 365 a.C. - c. 285 a.C.), filósofo também da Escola Cínica e mestre de Zenão de Cítio e discípulo de Diógenes de Sínope, sacrificou toda a sua fortuna em nome dos princípios de sua escola de pensamento; ndt] que ele devesse temê-las? Terá ele crido que elas valessem tão pouco quando as jogou no mar, a fim de trocar sua perda pessoal pela perda daquilo que excita as maiores tempestades na vida dos homens, que ele abandonou ao naufrágio? Não era a Pobreza tão feia e tão assustadora, quando Antístenes [filósofo grego, nascido em c 445 a.C.; foi pupilo de Sócrates e advogou em causa da vida ascética, vivida de acordo com as virtudes; é considerado o fundador da Filosofia Cínica; faleceu em c 345 a.C.; ndt] a abraçou? Estariam as dignidades sem seu brilho, quando Fabrício [sobre quem nada encontramos; ndt] se desculpou delas? E a ignomínia teria mudado de rosto, revestindo maquilagens e ornamentos, para causar amor a Aristídes [estadista e estrategista ateniense, nascido em c.535 a.C., morreu, apesar de sua grande influência na cidade de Atenas, em extrema pobreza, em c.468 a.C.; ndt]? As Volúpias foram de mal gosto, quando foram rejeitadas por Diógenes [conhecido como Diógenes, o Cínico (c.404 a.C. – c.323 a.C.), foi um filósofo da Grécia antiga, discípulo de Antístenes; ndt]? E a dor terá perdido seu azedume e sua amargura, para ser considerada doce por Anaxárco [Anaxárco de Abdera (c.380 a.C. – c.325 a.C.) foi um filósofo grego, cuja inimizade com Nicocreon de Salamina, um tirano do Chipre, o levou a um fim trágico, submetido a uma tortura cruel. Conta a tradição popular que, certa vez, durante um banquete, foi indagado por Alexandre, se estava gostando da festa. Ele respondeu, voltado-se para Nicocreon: “Tudo, ó grande rei, está magnífico; somente falta uma coisa, a de que a cabeça de um sátrapa seja servida sobre a mesa”. O tirano nunca o esqueceu e, quando depois da morte do rei, o filósofo teve de aportar, contra sua vontade, no Chipre, tendo sido reconhecido, foi preso e, diante de sua placidez e comentários irônicos, Nicocreon mandou que lhe cortassem a língua. Colocado em um almofariz, foi impiedosamente pilado até a morte. Apesar deste massacre, manteve-se imperturbável durante todo o suplício, como se estivesse seguindo tudo aquilo que pregava em sua filosofia; ndt]? Certamente a morte é sempre e em todos os lugares a mesma, ela não mudou em nada sua condição para estes homens, nem mesmo para Sócrates ou para Décio [trata-se do imperador romano Caio Méssio Quinto Trajano Décio que, no ano 251 d.C., foi morto pelas mãos dos bárbaros; ndt]; ela não admite nenhuma diversidade em si, mas somente na maneira como é recebida, e assim como ela, as Riquezas, a Pobreza, as Honras, as Volúpias, a Dor e a Infâmia.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 46-49.

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