quinta-feira, 15 de abril de 2010

Primeiro prelúdio - Capítulo VIII

CAPÍTULO VIII
Ela nos conserva a liberdade até mesmo nas coisas que dela recebemos, ainda que leves e de pouca importância – sinal, inclusive, de que ela preferiria perder uma parte de seu próprio direito sobre nós a nos arrancar esta liberdade, nos sujeitando a seu uso. Ela também submeteu inteiramente à nossa discrição os bens que dela recebemos, e ela não quis de forma alguma nos impor a necessidade. Mas, a fim de tornar perfeita a obrigação que nós lhe devemos por um tão excelente privilégio, ela não o concedeu apenas ao espírito, ela não o encerrou em um único lugar, mas ela o concedeu também à imitação do corpo. Assim, ela não reduziu o homem a ter apenas um mesmo gosto, como o resto dos animais, ter apenas um tipo de alimentação. Eles [os animais] não conhecem nada fora daquele tipo de alimento para o qual ela lhes ordenou; ela lhes restringiu, para isso, a um espaço muito pequeno de ação: os Leões e as Águias não saberiam se alimentar de outra coisa senão de carne; os bois e as ovelhas de ervas e raízes. Mas, ela não prescreveu nenhum limite para o homem. Ela lhe abriu uma grande e vasta carreira, no qual seu sentido se alegra pela liberdade de escolha do que mais tenta seu apetite, do que mais toca e lhe é agradável, sem ser constrangido a se determinar por uma coisa particular. Consideremos, eu vos peço, com que favor ela nos trata. Ela é cuidadosa e até mesmo ciumenta, e nos quer manter na nossa liberdade, e cuida muito bem, sem dúvida, de que nada a possa violar. Ela quer que nós nos constituamos da maneira que mais nos agrade, e quer também que nada nos impeça de contentar plenamente a nossa fantasia. Por esta razão, é possível dizer que ela apenas começou o homem, que ela apenas o esboçou com os traços mais simples, e que ela só lhe tenha dado a matéria. Isto é compreendido entre o vulgo como uma injúria; é, diz-se, uma evidente marca da pouca consideração que ela tem por nós. No entanto, é certo que isso é uma graça; e podemos recolher disso o quão altamente ela nos considera. Ela se comportou discretamente e com respeito quanto a nós. Ela não quis se meter em nossos negócios. Dir-se-á que parece suficiente ela não nos reconhecer como seus filhos; o contrário se justifica pelos devotamentos que ela testemunha por nós, e pela bondade que ela tem de não nos constranger a nada. Isto, sem dúvida, é suficiente para destruir esta calúnia; e quando formos forçados a confessar que não temos obrigação alguma com ela por causa de nossa liberdade, seríamos muito ingratos se não reconhecêssemos que ela nos dá abundantes meios de fazer uso dessa mesma liberdade. Certamente, se ela não nos foi liberal, não podemos, porém, negar que ela nos tenha sido cuidadosa.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 24-26.

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