CAPÍTULO VI
Enquanto ele estava nu e tão pobre, enquanto ele não tinha uma roupa sequer, seu reino foi absoluto sobre os animais; e nunca houve Monarca mais poderoso e mais feliz que ele. Conhecemos o famoso Pastor [não encontramos referência a respeito deste personagem; ndt] que eles não ousaram tocar, durante o tempo em que eles o viram nu. Mas, tão logo ele se vestiu, ele lhes pareceu como que descoberto de sua púrpura e de seu caráter, eles se descobriram também do amor e da reverência que tinham por ele, eles passaram a considerá-lo apenas como um tirano e como um inimigo, ele se tornou o objeto de seu furor; justa retribuição que ele se impôs a si mesmo, para satisfazer o sangue de um passageiro, que por uma cruel negligência ele, um dia, deixou ser dilacerado pelos cães. E certamente a vingança de seu crime tendo sido suspendida até então, pelo respeito que os Animais tinham por sua nudez, eles reconheciam, eles honravam nele a antiga dignidade do homem; ele dormia sobre um Leão; o Rei dos animais lhe servia de leito, poderia haver melhor mestre do que aquele que usava do Leão de forma mais privada e que encontrava nele tanta segurança! Pode ele desejar mais que dormir nos desertos e ter um Rei como guardião! As Hienas honraram Pachon [personagem bizantino que, para fugir à tentação, trancou-se entre hienas; ndt]: ele estava nu e recebeu beijos ao invés de mordidas; ele lhes agradou tanto neste estado que, a fim de que sua nudez fosse inteira, elas limparam com sua língua o pó de que ele estava coberto, reconhecendo, por esse favor, o favor que ele lhes fez ao recebê-las em sua caverna. Faustino [santo do século 2 dC que, junto com o amigo Jovita, se recusou a adorar um deus pagão e foi condenado à morte, no circo, por animais ferozes que, no entanto, ficaram imóveis diante dos dois santos; ndt] esteve, por 15 anos, nos montes e nos bosques, inviolável a tudo o que os animais nutrem de mais cruel e tudo por causa do privilégio da sua nudez. Dídimo [não sabemos de quem se trata; ndt] caminhou com os pés nus sobre Escorpiões e Serpentes, e eles o suportaram com o mesmo respeito que os Bárbaros têm pelos novos Reis. De quantos animais os homens receberam grandes e inesperados serviços, a favor de sua nudez? [no original latino, Nieremberg prossegue a lista: “Sciunt & bruta ultro obsequi, & inexpectata servitia exhibere nudis. Miramur expositos infantes exceptos ab animalibus saepissime, & alitos, Cyrum a cane, Semiramin a columbis, Ioven a Capra, Telephum a cerva, Arneam a Penelopensibus, alios a lupis, alios a suibus. Abiecti plerumque nudi fuerunt, & suae reverentiae & obsequii titulum monstrabant nuditatem & innocentiam. Rara his brutorum observantia, fides, officiositas, ad miraculum sane, ad exemplum. Parasium & Lycastum pueros, propriis rejectis catulis, lupa nutrivit: malvit perdere filios, quam Imperatores”; ndt] Admiramo-nos, todos os dias, com os cuidados com os quais eles nutriram crianças que a crueldade de certas mães expuseram; e é algo maravilhoso, e pode mesmo passar por um milagre ver com que doçura, para não dizer com que humanidade, eles se comportaram assumindo este ofício. Sem dúvida, não nos faltariam exemplos para justificar esta verdade. Mas não haveria um mais notável do que aquele exemplo de Habis [Habidem, em latim, sobre o qual nada encontramos; ndt], este Príncipe nascido de um incesto - e, por isso, visto como refugo e horror por seus próprios pais, que pensaram que, fazendo-o morrer e, por assim dizer, apagando-o do mundo, apagariam a memória de seu crime - foi exposto numa floresta por ordem de seus pais, para ser devorado por animais selvagens. Mas elas não apenas mantiveram a sua vida, como também tiveram um particular cuidado com sua alimentação; e ele a recebeu daqueles de quem se espera que nos sirvamos. Ele foi, em seguida, deixado num caminho muito estreito para ser pisado pelo rebanho de bois; abandonaram-no além do mais ao favor de diversos animais que, porém, antes, cuidaram de os haver deixado expressamente sem comer a fim de que sua fúria natural, irritada ainda pelo aguilhão da fome, os impulsionasse a fazer dele sua presa. O temor que os primeiros tiveram de lhe fazer algum mal fizeram com que eles encontrassem um outro caminho que não oferecesse perigo a ele; e os outros preferiram antes morrer a serem causa da perda de seu Soberano, a serem culpados da morte do homem. A Natureza faltou muito mais consigo mesma que com o respeito que ela lhe devia; ela teve menos compaixão por si mesma que por ele. Caridade, se se pode assim dizer, que ultrapassa infinitamente a dos homens. Podemos encontrar mães que, durante grandes penúrias, não tiveram nenhum escrúpulo de converter em seu alimento seus próprios filhos, ou de retomar a vida que elas lhes haviam dado, mais que alimentar a vida de outros.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 19-21.
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