terça-feira, 20 de abril de 2010

Terceiro prelúdio - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO PRIMEIRO
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TERCEIRO PRELÚDIO
QUE cada um encontra, suficientemente em si mesmo, do que fazer sua alegria

CAPÍTULO PRIMEIRO
Eis, portanto, como tudo o que se chama felicidade não o é em nada e só carrega o nome. Eis como, frequentemente, é mais uma armadilha enganadora e perigosa, da qual a miséria mesma se serve para nos enganar. Eis como só é uma aparência e uma máscara que ela emprega para nos surpreender. É disso, certamente, que procede toda a nossa aflição, é desta fantasia e desta impostura que vêm nossas dores e tormentos. Não há ódio mais cruel do que aquele que se fantasia de amizade. Esta se vale do fato de que não se desconfia para golpear; e alguém disse a este respeito que a cólera que se esconde dá seu golpe, mas a que aparece perde a ocasião de dá-lo. Quem é o homem tão simples, eu vos pergunto, que não acha suspeita a segurança que seu inimigo lhe oferece? Os bens e as outras vantagens que o mundo estima e considera como os mais dignos de esperança e de desejo são muito mais armadilhas e traições que a Fortuna nos prepara, são muito mais astúcias e artifícios que ela coloca em prática para nos enganar. Ela nos apresenta esses bens e vantagens sob um especial e magnífico título de felicidade; mas, na verdade, esse título é uma cobertura para as desgraças que ela nos prepara em seguida; e que lhes é muito menos conveniente e mais inadequado, pois não há nada de mais ridículo do que se glorificar de vantagens que não se tem e que, consequentemente, não poderiam ser comunicadas a outros. As grandezas do mundo, as riquezas, as volúpias, se apresentam, se repartem a nós como verdadeiras causas de nossa felicidade; elas querem nos persuadir que são elas que a compõem; mas, a partir exatamente disso, elas nos asseguram do contrário, elas excitam nossa desconfiança; o seu próprio testemunho desmente e destrói o que ela pretende estabelecer. Somos, porém, frágeis e crédulos ao dar fé dela. E fazemos a mesma insanidade que seria não acreditar em um homem que fosse mudo e não no-lo dissesse ele mesmo. Se alguém em cólera nos batesse, acreditaríamos que ele estivesse brincando ou nos fazendo carinhos? Tomaríamos uma coisa tão rude e tão desagradável como um favor ou como uma injúria? As riquezas podem nos dar a tranquilidade que é o fundamento da alegria, ou podem ser consideradas como a alegria mesma, sendo, como elas são, eternas matérias de temor e de cuidado, e, sem dúvida, os meios mais ordinários de que se vale a Fortuna para nos causar aflições. Como é que aquilo que enche nossos cofres não pesará em nosso coração? Como uma coisa que ocupa, que cria impedimentos em nosso quarto, não criará impedimentos também em nosso espírito? E como ela não tornará escravo, por uma justa revanche, aquele que tem tantos cuidados em mantê-la bem guardada? Pelo contrário, é indubitável que aqueles que não têm riquezas, têm verdadeiramente e, com efeito, a felicidade; eles a têm em espécie, eles a têm, por assim dizer, contando com o tipo. Como é que as honras e as volúpias, que desregulam a nossa vontade, que a agitam incessantemente, poderão acalmá-la e torná-la tranquila? As honras, semelhantemente a certas carnes, nos incham mais do que nos satisfazem, irritam a ambição, lhe abrem um amplo caminho, justificam esta máxima de um Filósofo Cristão [no texto latino aparece a referência a Jorge de Pisídia, sobre o qual já escrevemos em nota anterior. A citação que aparece no original é em grego e é a seguinte: “Τό σαθρόν έυτέχημα ά νόθα κλέας. / Τώ ώ φρονάντε πάσαγή προεδρία. / Κοινή γό ή γή πρός θρόνας τέ, κό τάφυς.”, traduziremos em breve; ndt]: que a felicidade que produzem as honras e que procede da falsa glória que o mundo oferece é igualmente falsa e danosa. Mas que o sábio considerará toda a terra como a mais eminente sede da honra, visto que ela é igualmente feita para ser seu trono e sua tumba. Por mais doces e agradáveis que possam ser as Volúpias, elas nos incomodam e nos abandonam cedo demais, elas não seriam capazes de nos satisfazer. E, além do mais, esta é uma verdade constante e perpétua: a alegria só se forma da vontade, não outra matéria de que se componha a felicidade. Tal como é o estado da vontade, assim será, seguramente, o estado da alegria. Ela não poderá ser verdadeira, não nos satisfará se não vier de nós, se não for obra de nosso espírito. Uma das Províncias da Grécia, outrora, representou este mistério através de uma estátua da Fortuna abraçando o amor [o texto latino diz: "fortuna amplexante amorem", o que tira a dúvida sobre o verbo utilizado em francês - embrasser - que pode ser tanto traduzido por beijar quanto por abraçar, sendo mais comum na primeira acepção, hoje em dia; ndt]. Não seria isso dizer que a verdadeira felicidade deve ser nossa pura produção? Não seria isso dizer que ela é falsa e imperfeita se algo de estranho entrar em jogo? Não seria isso dizer que é preciso, necessariamente, que ela venha da Vontade?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 64-67.

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