CAPÍTULO V
Se a Natureza nos tivesse provido de tudo o que nos é necessário, que emprego restaria à Razão? E, então, não seria inútil a nossa parte mais excelente? Certo, nós lhe devemos muito mais do que ela nos obrigou, ela nos foi muito mais liberal ao não nos ser tão liberal quanto gostaríamos. O Espírito e a Prudência que trabalham incessantemente e que são tão férteis em maravilhas teriam esmorecido numa miserável e contínua ociosidade; e a Natureza lhes tendo dado os meios para agir, ficou, de fato, parecendo liberal. Não saberíamos, sem dúvida, louvá-la de forma justa, a não ser praticando esta virtude que consiste em manter o meio termo entre a avareza e a prodigalidade; a não se limitar apenas em dispensar coisas vãs e supérfluas; e não sendo muito contida naquelas que são, de fato, úteis e necessárias. A Natureza se conserva perfeitamente igual entre estas extremidades. Como ela não é nem avara nem pródiga, ela não recusa nada do que é puro e necessário. Mas ela também não dá nada sem razão e sem necessidade. Ela reservou a Razão ao homem, como o maior bem que ele poderia esperar dela. E julgando suficiente que uma tão rara vantagem lhe faria desprezar todo o resto, ela não creu dever tratá-lo como o restante dos animais, que ela não partilhou bem tão nobre; e que, por mais bens que tenham recebido, só receberam vestidos e armas que trouxeram com eles ao mundo. Ela não deu aos homens os dentes curvos do Javali, nem unhas recurvadas como as dos Leões. Ela não os quis endurecer como aos cavalos; nem quis tão fortemente restaurar a glória de sua defesa, quis apenas colocar os animais todos a seus pés. Não foi, certamente, seu desígnio que eles lançassem dardos de seus corpos; nem que fossem capazes de se fecharem numa prisão móvel, ela os quis mestres da liberdade dos animais; ela os destinou como Reis da terra. O que, no entanto, foi o conselho deste Deus do Paganismo, que por uma engenhosa estranheza se colocou a criticar as obras de todos os outros [frase de difícil compreensão; no original latino aparece uma referência a Momo que, segundo a mitologia grega, era filho de Nix (a Noite), e a personificação do sarcasmo e da ironia; ndt]. Ela não os armou de escamas como aos peixes e às serpentes, nem os escondeu, como aos Ouriços, sob um invólucro espinhoso; mas os deixou nus e desarmados. O homem só tem o cérebro, entre todas as partes de seu corpo, que ela recobriu de cabelos, por um ato de respeito e de reverência pelo espírito, que ela considera como um Capitão em sua fortaleza; a fim de que, se conservando inteiro e são, possa prover melhor à segurança daquele por quem é empregado. Ela também não lhe foi avara, oferecendo-lhe um ornamento que deveria também servir de defesa; e ela não o repartiu tão abundantemente entre os animais. Ela estimou que seria cobrir suficientemente a nudez do homem, cobrindo-a no lugar mais necessário; no lugar onde se aloja aquele que dá as ordens e os comandos, e de quem se pode dizer que está sob uma bela peruca, como sob um magnífico dossel, ou como numa tenda Real. Ele é o Diretor e o Protetor universal do mundo. E, sozinho, ele vale mais do que todas as carícias e todos os favores que os animais e as outras Obras da Natureza recebem dela. É por isso que o homem deve aprender a excelência de sua posição: para não se enganar com esta falsa persuasão de que não tem nenhuma prerrogativa sobre eles; e que eles são iguais a ele por esta felicidade baixa e servil. A dignidade do homem não consiste na grandeza de suas riquezas; quem quiser julgar a si mesmo por seus bens, e medir sua glória por seu luxo, desagradar-se-á muito sem dúvida. Ele predomina sozinho sobre todas as vantagens que os animais receberam da Natureza; pobrezinho que ele seja, ele os comanda; e eles, no mundo, só fazem reconhecê-lo e servi-lo. Ele pode se glorificar da mesma sorte que este ilustre Romano que trouxe os Sabinos e os Samnitas [povos da Itália central, que foram definitivamente dominados pelo Império Romano, no século IV aC; ndt] à razão; este grande homem, Manius Curius [trata-se de Mânio Cúrio Dentato, cônsul romano que derrotou, em 291 aC, os Sabinos e os Samnitas; ndt], contentando-se com uma sopa de nabos, recusou o ouro que os Embaixadores destes povos lhe presentearam; dizendo que ele amava mais comandar os ricos que ser rico ele mesmo. Certamente, o Império que o homem exerce sobre o resto do mundo é tanto mais excelente quanto mais ele o exercer pela força de seu espírito.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 16-19.
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