CAPÍTULO IV
Entretanto, guardemo-nos de acreditar que, ainda que lhe sejamos tão próximos, e que na infeliz partilha que foi necessário que ela fizesse de nós com a Fortuna, sua porção foi menor, ela diminuiu seu afeto por nós; guardemo-nos também de acreditar que a mesma violência que nos atraiu para entre seus braços, também nos baniu de seu coração; e, finalmente, guardemo-nos de acreditar que, por ter sido mãe infeliz, ela tenha sido menos boa mãe. É certo que nós não lhe damos toda a obrigação de nosso ser; ela só pode pretender do nosso ser a parte menos digna; a outra, que é a mais nobre, e que sozinha dá o preço e a glória do homem, vem imediatamente de Deus, sem o benefício da Natureza. Esta excelente parte, nossa alma, é um raio da Divindade. Seu nascimento é mais alto e sua origem mais ilustre. Será que nós imaginaremos que, porque a Natureza só tem o direito de se atribuir a parte mais frágil do homem, ela se interessa por ele fragilmente, ela seja impedida de amá-lo? Ousaríamos dizer que seus cuidados não são inteiramente dirigidos a ele, pelo fato de que ela sabe bem que ele não é totalmente dela? Não, ela o ama tão ternamente que, se ela tivesse dele a melhor parte, a diminuição do seu poder não diminuiria o amor que ela tem por nós. Saberíamos precisar de prova mais evidente do que a de ver que, a fim de que este amor tivesse sido mais forte, ela fez seu amor mudar de sexo, ela o tornou viril e paternal? É sobre este ponto que eu ficaria de acordo com aqueles que dizem que ela não é mãe do homem; assim como eu não poderia sofrer ao vê-la sendo chamada de madrasta, no mesmo sentido que um Filósofo [não sabemos de que filósofo se trata; ndt] compreende a febre quartã [trata-se de febre intermitente que consiste em acessos separados por um intervalo de três dias. É característica do paludismo ou da malária, e é causada pelo Plasmodium malariae; ndt], quando ele diz que, na medida em que ela é madrasta, é duas vezes mãe; já que ela recompensa com muito bem o pouco de mal que ela nos faz sofrer. Verdadeiramente, os cuidados que a Natureza tem por nós são tão grandes que é mais razoável dizer que ela é o Pai do homem, e que ela é apenas a mãe da maior parte dos animais. E porque não é dela que vem esta Divina parte do homem, nós a nomearemos ainda mais acertadamente de pai nutridor de nosso Espírito; já que ela nos excita a produzir e formar este Espírito; já que somos instruídos por ela a não deixá-lo esmorecer na ociosidade e na preguiça. Ela estimou que lhe seria suficiente cumprir o ofício de mãe dos animais, e que ela satisfaria, assim, plenamente, a tudo o que eles poderiam esperar de sua providência. Mas ela creu não se desamarrar do dever ao mais nobre de todos os seus filhos, se ela não tivesse estendido seus cuidados para além; e se ela não lhes tivesse levado até onde pudessem ir os filhos de um pai. Ela supriu muito abundantemente às necessidades dos animais; ela agiu de tal forma que não lhes faltasse nada, seja para a sua nutrição que para sua defesa. Mas, considerando a excelência do homem, ela julga que ele merece cargos mais relevantes e importantes; e que vão muito além do suprir apenas às necessidades de seu corpo. Ela estima mais digno dela e dele cultivar seu espírito e o instruir; ela o trata mais nobremente; ela é menos exata quanto às coisas que dizem respeito apenas ao entretenimento e à comodidade de sua vida. Mas ela é perfeitamente cuidadosa quanto a tudo o que diz respeito à sua educação. Era o costume dos Lacedemônios [ou espartanos, visto que Esparta é também conhecida como Lacedemônia; ndt] de não dar nem roupas, nem víveres as seus filhos; e de os fazer passar das mãos da Natureza para as da necessidade, a fim de que esta excelente mestra da indústria lhes ensinasse a buscar um e outro; estando eles bem instruídos desta verdade: de que não há mordida tão forte, nem aguilhão tão agudo como o seu [da necessidade; ndt]. Sem dúvida, não há nada que desperte mais a preguiça e que dê mais agudez e luz ao espírito do que a pobreza. E esta sábia e útil crueldade dos pais de Esparta não apenas não os levava ao crime, e não chocava em nada a piedade pública, mas era admitida e praticada como legítima, ela era quase tida como Lei. A Natureza recusou, igualmente, muitas coisas ao homem, a fim de que a necessidade lhe inspirasse escolhas melhores. Ela alivia, ela adoça, assim, o desprazer que ela traz, recompensando pela grandeza do bem a pena que temos para obtê-lo. Com o fim, portanto, de que nosso espírito não esmorecesse num frouxo repouso, ela quis produzi-lo e poli-lo, como se fosse sua própria obra. Não o podendo possuir como uma mãe, ela o possui como uma benfeitora, e o direito que ela não poderia pretender sobre ele pelo nascimento, ela o adquiriu pela obrigação; de forma que podemos muito bem dizer que, de alguma maneira, ela nos deu o espírito pela sua recusa geral de todas as outras coisas; já que ela nos deu, através disso, os meios de colocá-lo em ação. Podemos dizer que, se a experiência justifica que é próprio da necessidade tornar destros e hábeis os menos esclarecidos e os mais grosseiros; e se é certo que ela é capaz de sofisticar a estupidez mesma, não diríamos nós com razão que ela nos comunica o espírito, ou que, ao menos, uma parte dele nos venha com ela?
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 13-16.
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