CAPÍTULO III
Além do mais, esta diversidade de sentimento pelas coisas não foi menor naqueles que, por cima das luzes da razão, foram esclarecidos pelas luzes da Fé. Quem terá tido maior paixão pela Vida do que a generosa Virgem Apolônia [virgem e mártir da Alexandria, considerada a padroeira dos dentistas; ndt] teve pela morte? A quem ela desejava, buscava sempre impacientemente; para quem ela corria com um amoroso e divino ardor; que ela previu e admirou muito mais do que ela mesma era admirada. As Riquezas não saberiam oferecer tão pura e perfeita alegria como aquela que Serapião Sindonita [monge egípcio que viveu no século IV, que possuía apenas um manto (síndone) como guarda-roupa, mereceu também o título de “O impassível”, por causa de seu total controle sobre si mesmo e seu desapego por todas as coisas, até da própria liberdade, visto que se vendeu como escravo a uma família de comediantes, com o único fim de instrui-la na fé cristã; ndt] recebeu da sua pobreza. Ele não tinha do que viver e nem mesmo do que cobrir a nudez de seu corpo. Para ter menos ainda, e não ter nem mesmo em seu poder a sua pessoa, ele se vendeu e não crendo que nada pudesse, daí em diante, estar à sua legítima disposição, ele deu o dinheiro de sua venda, e quis ser possuído gratuitamente; e, por causa desta restituição, ele se vendeu ainda uma vez. As mais eminentes dignidades não trazem nenhuma glória comparável àquela que Santo Aleixo [santo da tradição cristã, muito conhecido pela Igreja Ortodoxa; ndt] tirava do opróbrio: ele não creu que fosse suficiente ser desprezado geralmente por cada um se não fosse desprezado em particular por aqueles que tinham mais obrigação de honrá-lo. Que poderíamos dizer das Volúpias se não o que a experiência nos ensina todos os dias? Que o desgosto nos vem delas antes mesmo que tenhamos saboreado a metade de seu gosto. Que não respondendo à opinião que temos de sua doçura e sua duração, e encontrando-se sempre menor do que nossas esperanças, elas nos deixam muito mais confusos do que contentes. Ninguém as buscou com tanta paixão, ninguém soube ser tão ávido por elas como São Lourenço [mártir do século III, que foi queimado vivo; ndt] foi pelos tormentos. Vendo que seu corpo só estava cozido pela metade, para nos servir de seus próprios termos, ele pediu a seus carrascos que o virassem do outro lado e que o deixassem mais tempo sobre o fogo; ele quis terminar de se assar, a fim de encontrar um martírio tanto mais doce e saboroso quanto mais longa a dor o temperasse, por assim dizer. O grande servidor de Deus, Eman [não encontramos referência acerca deste personagem; descobrimos, porém, a referência a um certo Santo Eman que, inclusive, dá nome a uma cidade francesa (Saint-Éman), no entanto não há dados sobre a história do personagem que dá nome à cidade; ndt], não foi menos faminto deste tipo de carnes; ele bebia água salgada para reprimir o ardor de sua ambição; ele queria apagar sua sede com aquilo que a acende. Ele pensava que a simples abstinência não teria gosto algum se ele não colocasse sal nela; e por uma delicadeza de sua austeridade, ele quis misturar sal abundantemente na água, a fim de aumentar seu prazer por sua aflição. Encontrando as mais encantadoras delícias de seus mais rigorosos sofrimentos, ele praticava todos os dias novos [sofrimentos], ele os buscava, ele estudava curiosamente as diversas maneiras [de causá-lo a si], a fim de se excitar bastante o apetite por eles; parecido com os delicados e gulosos, que despertam seu apetite com novas invenções de guisados e de molhos. Conrado [conhecido como São Conrado de Placência, morreu em 1351, depois de ter ingressado na Ordem Terceira de São Francisco; assediado por sua santidade, passou o resto de sua vida numa gruta; ndt], passando também para além, e estendendo para mais além os rigores de sua austeridade, esperava, ordinariamente, que as carnes estivessem estragadas para comê-las; como ele não poderia tomar refeição sozinho e sem companhia, ele só comia aquilo que os vermes pudessem comer com ele.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 49-51.
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