quarta-feira, 14 de abril de 2010

Primeiro prelúdio - Capítulo VII

CAPÍTULO VII
Muito mais que a nudez, os animais reverenciam a pobreza, como sendo a mais natural e mais eminente característica da dignidade do homem; como o diadema e a púrpura fazem a Realeza. Não ouvimos ainda dizer que eles reconheçam voluntariamente algum desses que se vê seguidos de uma multidão insolente de guardas e de valetes, e que ofuscaram os olhos do povo pela magnificência de suas roupas, pela pompa e brilho de suas riquezas. E admiramos a obediência que tiveram, sem resistência e sem pena, a muitos daqueles que tinham por seguidor e por marca de grandeza apenas a pobreza. Visto que há um número infinito de provas a que poderíamos fazer menção aqui, e visto que são muito frequentes os exemplos [no original latino, Nieremberg descreve: “Vidimus multos sine decore, multos cum paupertate, exermes multos. Heleno, & Pachomio parvere crocodili; Beno etiam hippopotami; Antonio, & Machario onagri; Gerassimo, Sergio, Helladio, Ioanni, & Simeoni Prisco leones; Philippo, & Ammoni dracones; Alexandrino Machario hyaenae; Theophilo, Sergio, & Hygino columbae; Heliae, & Benedicto corvi; Nicephoro Petenensi ursi, & anates; Adamo Firmano lupi, & hirundines; Iosepho Anchetae, nostris seculis, quod non obstat admiraationi, tygrides; Paulo scorpiones, & cornutae aspides”, até chegar ao exemplo em que o tradutor se deteve; ndt], seria muito tedioso enumerá-las todas, por isso, ser-nos-á suficiente empregar apenas o exemplo daquele horrível Dragão da Dalmácia, que devorava rebanhos inteiros e fazia de um boi inteiro apenas um pedaço de carne, e que carregava o nome de Boa, e que obedecia a Hilário [trata-se de Santo Hilário (c.291-c.371), fundador da vida anacoreta na Palestina, seu biógrafo é São Jerônimo; não encontramos, porém, nenhuma relação de Santo Hilário com um dragão; sabe-se apenas que viveu na Dalmácia, em Epidauro, onde, por ocasião de um grande terremoto, em 366, prestou muitos serviços; ndt] até morrer no meio de um fogo. Não são as riquezas que dão este direito ao homem. E por mais que me digam que quem possui dinheiro em abundância tem mais meios de conseguir o serviço dos animais, é certo que só adquirimos esta vantagem por uma prerrogativa de nossa antiga autoridade, da qual nos resta ainda alguma marca. Nunca a revolta de um Reino é tão geral que absolutamente todo o povo se torne rebelde. A fidelidade que as pessoas perderam se conserva entre os domésticos do Príncipe; e sua afeição permanece inteira em meio à ruína de sua fortuna. A bem da verdade, não possuímos mais o título que nos fazia reinar soberanamente sobre os animais. Nós caímos do alto posto que nos havia dado os animais como escravos. É preciso aceitar, com vergonha, que eles não estão mais à vontade; e que, agora, só nos obedecem contra sua própria vontade e à força. Mas é preciso dizer também, a nosso favor, ou pelo menos para nossa consolação, que nem todos eles se afastaram de nós; alguns permaneceram conosco e mantêm a mesma reverência a que nós, antes, os submetemos, e não ousam, parece, recusar esta reverência ao nosso nascimento e à nossa morte, porque eles ainda veem nesses eventos a imagem de nossa antiga dominação, visto que em um e em outra os homens estão igualmente nus. É inútil opor a isto, por causa do incrível número de provas em contrário, os Leões de Berenice e de Hanno [não encontramos referência sobre as relações desses dois personagens e leões. Descobrimos que Hanno é nome de vários personagens cartagineses, entre os séculos III e V aC. Quanto a Berenice, descobrimos várias rainhas e personagens com este nome seja na Grécia que no Egito, porém, em nenhuma das histórias localizadas, se viu relação com leões; ndt]; e os Dragões de Toas [no original latino, a referência é mais completa: trata-se de “Thoae Achaici”, ou seja, o aqueu. Sabe-se que, na antiguidade, os gregos eram conhecidos como aqueus. Nesse caso, o autor faz referência, provavelmente, a Toas, filho de Andrémon, que foi rei dos etólios. Porém, mais uma vez, não encontramos referência a dragão; ndt] e de Heráclide [encontramos vários personagens com este nome, mas nenhum cuja história seja marcada por um dragão; ndt]. Qualquer que seja a sujeição que eles, aparentemente, obrigaram, na verdade, se trata do fato de que eles lhes eram companheiros e não valetes; eles viviam com eles em sociedade e não em servidão; eles eram mais ligados por afeição que por dever. A Nudez e a Pobreza são os dois Soberanos títulos sobre os quais os animais juraram fé e homenagem ao homem. É por isso que nós adquirimos este império absoluto sobre eles. A Natureza não creu oferecer uma maior vantagem à liberdade de nossa Razão do que sujeitando os animais a essa mesma liberdade. E, para falar a verdade, essa liberdade não vem dela, não porque ela tem aversão a nós – como pretendem os que a caluniam – mas apenas porque ela não nos pôde dar; ela tenta, ela se esforça para no-la oferecer tanto quanto lhe é possível. Ela faz, certamente, muito na sua impotência, contribuindo com seus desejos e sua afeição. Mas ela faz mais do que pode, contribuindo com seus cuidados e sua pena. Ela nos conserva, pelo menos, esta liberdade nas coisas que ela não nos deu, a fim de que dependa de nossa escolha admiti-las ou rejeitá-las. E, por medo de que elas estejam inseparavelmente ligadas a nós, caso não fôssemos constrangidos a nos servirmos delas, ou não tivéssemos um vínculo e uma obrigação necessária a elas.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 22-24

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