sábado, 8 de janeiro de 2011

II Preceito particular contra a opinião - Capítulo II

CAPÍTULO II
Foi por meio desta vantagem que aquele entre todos os homens que mais sofreu [no original latino, Nieremberg cita Jó; ndt], sofreu tudo com muita constância e mereceu ser eternamente proposto como um perfeito modelo de paciência. Por mais que seus males lhe viessem muito repentinamente e muito de uma vez, de forma que ele quase não havia um momento de intervalo entre um e outro, eles eram, para ele, lentos e preguiçosos; achava-os tardios, visto que ele os esperava há muito tempo, visto que ele estava preparado desde o princípio, e visto que ele já os havia sofrido com antecedência. E, para falar bem a verdade, nisso ele foi admirável e fez parecer uma alta resolução, e meio a uma profunda miséria; quando à perda de todos os seus bens juntou-se uma infelicidade infinitamente mais sensível e que, normalmente, faz com o que o comum dos homens sinta como a última provação – a morte de todos os seus filhos –; quando num só instante ele se viu despojado de todas as coisas; quando ele foi colocado completamente a nu, como que para nadar no sangue que uma chaga universal fazia escorrer de seu corpo; ou quando, em meio a prosperidades, num estado de felicidade e de florescimento, tudo isso parece não ter mais fim, e então os mais prudentes e aqueles que se seguram o mínimo possível nas coisas do mundo que estão menos estabelecidas julgam que a ruína seja impossível e que podem desqualificá-la e que não serão acolhidos por tantas e tão repentinas desgraças; ele, pelo contrário, se persuadiu daquelas que a mais célebre miséria não havia ainda conhecido e sobre cujo rigor extremado da Fortuna parecia não poder ser notificado. No cume de bens e honras no qual ele se encontrava, ele formava para si mesmo imagens das calamidades nas quais ele poderia cair; a imensidade de vantagens que a Fortuna lhe havia conferido não o impedia de se representar os males infinitos que ela lhe poderia causar. Que proveito acreditamos que possa vir deste pensamento? Certamente, este, que é incomparável: receber, com um espírito tranquilo e sem nenhuma surpresa, aquilo que desespera o comum dos homens, aquilo que desconcerta os sábios, aquilo que arranca o coração dos mais resolutos, aquilo que abate, ou pelo menos abala, os mais constantes. Esta expectativa pelos males lhe trouxe esse bem maravilhoso: por mais estranha que fosse a mudança de sua condição, ele a recebia sem incômodos, ele não mudava seu rosto. Não nos surpreendamos com isso. Sua contenção, ou para melhor dizer, sua timidez na boa Fortuna, construiu a sua coragem na má Fortuna. Como ele sempre havia sido desafiado por aquela, ele não foi surpreendido por esta; ele não a recebeu, porque sempre havia recebido a outra; nada lhe aconteceu que ele não tenha sempre crido lhe poder acontecer e que ele não estivesse esperando que acontecesse. Ele dizia: se qualquer resolução igualmente estranha e imprevista faz com que eu desça desse nível que fez com que eu conseguisse o respeito e a obediência de um tão grande povo; se aquilo que fortalece minha grandeza e minha autoridade, minhas riquezas, fosse levado embora; se acontece que eu seja despojado dessas coisas de alguma outra maneira; se esta incontável quantidade de ovelhas que cobrem os campos se perdesse e morresse toda de uma só vez; se o fogo do Céu caísse sobre elas e as devorasse todas juntas, além do ovil e dos pastores; se esse fogo reduzisse a cinzas as minhas casas, ou se um tremor de terra fizesse delas ruínas deploráveis; se o apoio de minhas esperanças e de minha alegria, meus filhos, fossem enterrados; se um dilúvio de males, vindo a se derramar sobre mim, envolvesse com minha fortuna a minha pessoa mesma; se eu sofresse e fosse atingido por dores insuportáveis; se fosse necessário que eu bebesse essa amargura em várias goles e diversas vezes, mas de uma só vez e no mesmo fôlego; se essas desgraças me chegassem todas de uma só vez e em menos tempo do que eu pudesse imaginar; tendo perdido tudo, até mesmo aquilo que pudesse cobrir a nudez do meu corpo, e ele ficasse exposto a todas as injúrias do ar; não tendo mais onde ficar, tenha que procurar moradia num sepulcro e me enterrar em vida; ou que me faltando até mesmo um sepulcro, seja obrigado a ir me esconder numa gruta ou até mesmo em alguma fossa; que, de então em diante, toda a minha família fosse como os vermes que se alojam em minhas entranhas; que ainda vivo eu fosse roído e assim a ordem da Natureza mudasse para mim e ela fosse, para mim, não menos inimiga e cruel do que a Fortuna; que todas as coisas me fizesse faltar e que até eu mesmo faltasse a mim; que, depois de tudo isso, eu não recebesse nem apoio nem consolação daqueles de quem eu mais deveria esperar receber; mas que eu fosse oprimido por suas censuras e suas injúrias, e me tornasse o refugo e o objeto de desprezo; o que seria, no entanto? Eu não cairei em desordem; eu não perderei em nada a tranquilidade de meu espírito; nada acontecerá que me surpreenda ou que eu já não esteja esperando, não somente todos os dias, mas todas as horas, todos os momentos; eu estarei firme em meio aos mais rudes ataques da Fortuna; conservando a vantagem de não sucumbir a minhas infelicidades, conservarei o que vale mais do que minha grandeza e minhas riquezas; serei poderoso e feliz, não sendo mais nem um nem outro; não serei menos satisfeito em meio à minha extrema miséria do que eu seria se estivesse em meio ao máximo de minhas prosperidades. Eis quais eram as meditações desse Herói; eis de que maneira ele se preparava e se fortalecia contra a má Fortuna. Ao mesmo tempo que ela derramava sobre ele todos os seus bens, que ela o acariciava o mais ternamente que lhe é possível, e que ela o carregava como que entre seus braços, ele a repreendia dentro de si e mantinha o pé em sua garganta; ele a considerava, ele a tratava como inimiga mortal, enquanto ela o tratava como amante e favorito. E da mesma forma que os valentes Capitães formam, durante a paz, uma imagem em si da guerra, praticam os torneios e outros exercícios que a representam; Jó também, figurando para si os males que lhe poderiam chegar e os esperando a qualquer momento, se preparava contra eles e estudava, em meio a maior de suas felicidades, as formas para combater e vencer sua miséria. Será que poderíamos desejar um exemplo mais digno para nos excitar na prática desta máxima tão salutar? Aprendamos de Jó a arte de suportar com um espírito firme e igual, as desigualdades da Fortuna. Quando nós a tivermos propícia, esperemos a rigorosa. Suas mudanças não nos surpreenderão e não nos causarão mal algum. A adversidade que se espera não é mais adversidade quando ela chega; ela perde tudo o que tinha de mais duro, não tem mais nem rudez nem acidez. 

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 510-514.

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