CAPÍTULO IX
É através das indicações que a Filosofia lhe [ao espírito; ndt] dá que ele chega a esse ponto. É ela [a Filosofia; ndt] que faz com que os homens sejam como deuses. Aqueles que têm posse de um tão alto e nobre estudo, são nomeados por um sábio da antiguidade Deuses mortais [no original latino, aparece a referência a Hierócles, o Estóico (c. 120 d.C.), que se dedicou especialmente à moral, em sua filosofia na qual se podem encontrar elementos de Aristóteles, Platão e dos estóicos; ndt]. Ele os chama Deuses por causa da conformidade que eles têm com a natureza divina; mas ele acrescenta a isso a condição mortal; ainda que eles pareçam não ter mais ligações com a matéria e viver como quem não está sob a jurisdição da morte, eles estão sujeitos às enfermidades da vida, eles não estão protegidos das injúrias da Fortuna – que, se deixando levar por suas impetuosidades e caprichos, e não sendo capaz de se controlar sozinha, atinge frequentemente os bons sem pensar a respeito e, às vezes mesmo, sem querer, e lhes faz mal muito mais por precipitação do que por desígnio. Digamos, sem nada deixar de fora, uma verdade que só foi dita pela metade: a mesma prerrogativa que dá aos Filósofos o nome de divinos lhes atribui, em seguida, o nome de imortais, visto que, elevando-se, através de um generoso desprezo pelas coisas da terra, eles não têm necessidade de nada, eles se bastam a si mesmos perfeitamente, eles se tornam soberanamente independentes, eles possuem, sem nenhuma desordem, uma tão alta e tão pura alegria que não pode haver nada de mais próximo da suprema felicidade. Não há nada de mais razoável do que acreditar que uma tão rara vantagem, como a de se assemelhar a Deus por causa desta absoluta independência, não deixe nada a desejar à imortalidade que é a consequência necessária, assim como acreditar que, na imortalidade, como no resto, a cópia goza do privilégio do original. Apliquemos aqui o pensamento de um Filósofo tal como nos chegou a partir de dois excelentes homens [no original latino, Nieremberg escreve: “Usurpo hoc dictum Procli a divino Epiphanio, & Methodio traditum: quemadmodum Phidias, cum Pisaeum simulacrum frabricasset, oleum circum pedes effundi iussit coram ipsa statua, ex ebore enim erat; ut ipsam immortalem conservaret”. Refere-se, portanto, ao filósofo Proclo Lício (412-485), que viveu em Constantinopla e era adepto da escola neoplatônica. Quanto aos dois homens a que se refere Nieremberg, tudo indica que um seja Santo Epifânio (315-403) e São Metódio (826-885). No entanto, parece haver um erro na referência proposta pelo autor, visto que Santo Epifânio viveu antes do filósofo Proclo a que se refere. O que nos faz acreditar que estamos, talvez, falando de São Cirilo (827-869), irmão de São Metódio; ndt]. Segundo se conta, quando Fídias [Fídias (c. 490 a.C.- c. 430 a.C.) foi um importante escultor grego; ndt] quis terminar a estátua de mármore que ele estava fazendo em Pisa [antiga cidade da Grécia, na região de Elis; ndt], na qual ele quis estabelecer a segurança da imortalidade de seu nome, ele a coroou, ele a ungiu com óleo e acreditou, assim, garantir soberanamente a eternidade de sua duração. Assim também, o grande Artesão do mundo quis tornar eterna a mais excelente de suas obras – aquele que ele formou com suas próprias mãos e que podemos dizer que seja sua obra-prima: ele derramou dentro dele e sobre a mais nobre das duas partes que o compõem um óleo puro e celeste que o conserva e o guarda da corrupção; ele derramou sua graça; ele o marcou com um caráter que a injúria dos tempos respeita, que o torna inviolável e sobre o qual eles [os tempos; ndt] não seriam capazes de ter poder, mesmo sendo a causa e o princípio de sua ruína. Consideremos ainda os traços da semelhança que estes imortais Gênios têm com Deus: eles não temem nada da maldade da Fortuna – não mais do que temem a Ele –, eles estão protegidos de suas [da Fortuna; ndt] injúrias, eles são felizes, eles são ricos da posse exclusiva de si mesmos. Mesmo participando de uma constituição tão elevada e mesmo vendo abaixo de si os tronos dos Monarcas mais poderosos, ele estão tão firmemente estabelecidos que não sofrem nem a queda nem o abalo; eles gozam de uma paz que nada pode atrapalhar – uma paz que não está sujeita à ordem do destino, que não pode ser interrompida pela mudança ou pela vicissitude das coisas, pela presença mesma da morte. Que maravilha! Um homem frágil e enfermo, que pertence quase completamente à terra, que a calamidade persegue sem cessar, que está sobrecarregado, que está oprimido pela miséria de sua condição; esse mesmo homem pode não somente se separar disso tudo, como também pode alcançar sem nenhum desgaste aquilo que há de mais eminente. E para tudo dizer em poucas palavras, esse homem pode se fazer Deus por seu próprio destino e sem outra ajuda que a de sua Vontade apenas. Se há uma arte para chegar à Realeza, se o poder obedecesse a uma capacidade, e a força à indústria; se o espírito pudesse ser adquirido a preço de ouro ou por preceitos; com que cuidados, eu vos pergunto, nós nos dedicaríamos? Haverá alguém tão preguiçoso e relaxado para quem a aquisição de um bem tão precioso não o torne diligente e atrevido? Onde estará o avaro que não se torna liberal? Não há arte para isso. Não se trata de um segredo que não possuímos e que seja infalível para nos fazer Reis. Incomparavelmente maior é sermos Reis de nossas paixões e de nós mesmos, porque está em nosso poder nos tornarmos mestres do mundo e da Fortuna; está em nós a capacidade de nos tornarmos Deuses. Nós é que não queremos: não temos nem paixão nem sentimento por um tão grande bem. Onde estará o antigo ardor do primeiro homem que queria se tornar semelhante a Deus? Seu crime foi pretender sê-lo desejando uma inteligência igual à sua [de Deus; ndt]. Mas, o verdadeiro mérito é aspirar pelo amor e pela vontade. Adão pecou na maneira de desejar e não no desejo. Nós carregamos a pena de seu pecado, nós temos este desgosto pelo castigo de uma ambição desregrada. Deus dotou o homem de sua semelhança, como se ele fosse sua última e mais excelente produção, como seu bem amado Benjamim, como seu caro Benoni, como o filho de sua direita e de sua dor [Benjamim, em hebraico, significa “filho da direita”, no sentido de filho da força ou da virtude. Benoni, por sua vez, significa “filho da dor”. Segundo a narrativa bíblica (Gn 35, 18), Jacó mudou deliberadamente o nome dado por Raquel ao último filho que lhe nascera: “E, estando prestes a render a alma – porque estava já agonizante – ela chamou o filho Benoni; o seu pai, porém, chamou-o Benjamim”; ndt], para dizer junto com Santo Hilário [Santo Hilário (?-468) foi o 46º Papa da Igreja católica; ndt] que, ao dizer isso, eleva ao mais alto ponto a felicidade do homem, ou seja, ser filho da mão do Todo-Poderoso. O que, de fato, é muito mais feliz do que ser filho de sua paixão. Deus fez o homem com suas próprias mãos, mas ele o refez através de suas dores, ele [Deus; ndt] quis morrer para que ele [o homem; ndt] pudesse viver. Portanto, não apenas ele [Deus; ndt] não o abandonou, como, através da maior prova de seu amor, ele lhe deu o meio de se fazer semelhante a ele. E esse meio não tem nada que ver com a presunção de Adão, mas trata-se de uma maneira inocente e rara: pela moderação da Vontade. Certamente, a vantagem de ser conformes à Divindade, pela glória que temos de sermos sua imagem, e pela graça que ela [a imagem de Deus; ndt] nos concedeu ao nos imprimir seu caráter, ser-nos-ia bastante inútil se nós, em seguida, não tivéssemos o poder de a desejar e de a adquirir.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 110-118[116].
Obs.: há um erro na paginação da obra em francês: da página 112, passa-se à 114, de forma que toda a numeração, a partir desse ponto, está dois algarismos à frente.
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