quarta-feira, 30 de junho de 2010

Quarto prelúdio - Capítulo VI

CAPÍTULO VI
Encontraremos, sem dúvida, bastantes exemplos para justificar esta verdade; e antes de mais nada, não temos motivo para nos espantar com aqueles cujo conhecimento não para em nada como o [conhecimento; ndt] do povo que, normalmente, para diante da simples aparência das coisas e não consegue penetrar o fundo mesmo das coisas, não vendo que o esplendor das Coroas esconde espinhos, que não há nada de mais pesado do que um Cetro e todo o enorme esforço que se faz para mantê-lo. Mas, sempre veremos como uma grande maravilha que uma pessoa de um sexo para o qual a ambição não parece menos natural do que a vida, tenha não somente não se deixado incendiar pelo brilho das honras soberanas que lhe foram oferecidas, mas tenha tido a coragem de as rejeitar e as tenha evitado com uma constância invencível. Os Portugueses, querendo se assegurar da conquista das Ilhas Molucas – e seu destino tendo sido mesmo este – e entregar a Coroa de Ternate [é uma ilha vulcânica do arquipélago das Molucas, na Indonésia. Os portugueses chegaram à ilha em 1512, e viveram relações tensas com os seus habitantes. Em 1535 o sultão Tabariji foi deposto e a ilha passou para as mãos da Coroa Portuguesa, que deteve o domínio sobre Ternate até o ano de 1575; ndt] a um jovem garoto de dez anos, escolhido entre as mais nobres famílias do país, foram pedir à sua mãe [não encontramos dados acerca dessa criança; ndt] que, inicialmente, recusou e, vendo-se pressionada até onde podia e resistindo por muito tempo com as armas típicas de seu sexo – orações e lágrimas – até o ponto de beijá-los com todas as suas forças, não querendo mudar de opinião de forma alguma, obstinada a ponto de parecer pouco razoável e até mesmo injuriosa, irritou-os de tal forma que, passando da dor à violência, eles arrancaram dela, de uma só vez, seu filho e sua vida. Ela preferia morrer a se resolver por sofrer em vê-lo Rei; visto que, seguramente, para dizer de forma mais exata, uma felicidade necessária é uma miséria infalível. Certamente a ambição desta mulher, Bárbara [não encontramos referências sobre esse nome. Nem mesmo o original latino apresenta esse nome; ndt], vale mais do que a de Agripina [mãe do imperador Nero, conhecida como Agripina Minor, ou Agripina, a Jovem; ndt]. Esta última preferiu a felicidade de ver seu filho se tornar Imperador, do que a própria vida. Enquanto que a primeira, por um sentimento contrário e, sem dúvida, mais razoável, preferiu sua própria morte mais do que o desprazer de ver seu filho sendo coroado. Ela acreditou que se tornaria culpada, com isso, da infelicidade de seu filho; ela o amava demais para consentir com sua ruína. O Patriarca Jacó [o terceiro patriarca da Bíblia, filho de Isaac e Rebeca, irmão gêmeo de Esaú, e neto de Abraão; teve doze filhos e uma filha: Rúben, Simeão, Levi, Judá, Dã, Naftali, Gade, Aser, Issacar, Zebulom, José, Benjamim e Diná; ndt], tendo sabido que seu filho José, que ele cria morto, não estava, teria sentido uma grande alegria por não ter que pagar com sua vida, não fosse o fato de ter, em seguida, descoberto que ele era muito poderoso entre os Egípcios. Pensar-se-ia que sua alegria cresceria, mas diminuiu. Era suficiente saber que seu filho estava vivo, bastava isso, mas ele se afligiu ao saber que ele reinava. Esta segunda novidade foi uma correção para a primeira. Ele descobriu que a Grandeza, que quase sempre tem como companheira a licenciosidade, não mudou as boas inclinações de seu filho e não corrompeu a integridade de seus costumes. Ele tinha medo de que sua prosperidade fizesse com que sua inocência se perdesse. Ele tinha motivos justos para temer que a Fortuna o provasse com seu ódio e seus favores, como normalmente ela faz; que ela não lhe fosse propícia e que, segundo seu costume, ela só o tivesse elevado para o fazer precipitar-se. Ele não pôde, talvez, receber separadamente essas duas notícias sem sucumbir à alegria ou à tristeza, sendo que esta última moderava a primeira. Assim, ele evitou os inconvenientes nos quais ela poderia fazê-lo cair também.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 103-105.

Quarto prelúdio - Capítulo V

CAPÍTULO V
Por que nós nos lamentamos com o fato de que as coisas mudam e passam? É certo que aquelas que mais nos alegram nos seriam desagradáveis se fossem fixas e permanentes. Imaginemos um homem com quem a boa sorte [o autor utiliza a palavra fortuna; ndt] tenha se associado de forma perpétua e não se separasse dele de forma alguma, mais cedo ou mais tarde, ela lhe seria importuna e, sem dúvida, ele teria problemas com ela. O famoso Tirano de Samos [Samos é uma das ilhas gregas. Não encontramos, porém, referências acerca do nome desse tirano a que se refere o autor; ndt] possuía o favor da boa sorte no mais alto grau que se possa desejar; teve razão quem afirmou que ela tinha por ele as ternuras que uma Mãe tem por seu filho único; que ela o tratava da mesma maneira; e que o resto daqueles para quem ela fez algum bem era considerado apenas como filhos de outro leito; enquanto que a ele, ela tratava como uma criança para ser amamentada. Um tratamento tão bom e constante o aborrecia, lhe dava desgosto; uma felicidade tão constante e equânime era um peso para ele; ele quis ou se desfazer da boa sorte ou, pelo menos, interromper o seu curso: ele jogou no mar um de seus mais preciosos anéis, a fim de que a evidente impossibilidade de o reaver lhe desse, pelo menos uma vez, o prazer de não ser feliz. Mas, ele não pode ter esse prazer: o anel voltou para suas mãos, tendo sido encontrado no ventre de um peixe que devia ser servido em sua mesa. Ele o tinha perdido voluntariamente, mas ele o reencontrou contra a sua vontade. Ele tentou, inutilmente, lutar contra a Fortuna: ela se reservou, inclusive, o direito de mostrar-lhe outra vez os seus efeitos. De todos os homens que já houve dos quais ela se encarregou de cuidar, ele foi o único que, contra o seu costume, ela procurava publicamente, ela perseguiu e correu atrás com todas as suas forças, por assim dizer. Porque, costumeiramente, ele quer que aqueles que pretendem receber suas boas graças, e que podemos chamar de seus amantes, lhe rendam todos os cuidados e deveres, que eles a sigam e a busquem. Às vezes, ela lhes decepciona, ela mistura um pouco de amargura às suas esperanças, para lhes fazer, em seguida, achar que suas carícias e favores são mais doces. Imaginemos ainda que ela tenha sido obrigada por alguém a conseguir o sucesso de seus desígnios pessoais; seria uma espécie de miséria ver que sua felicidade está ligada a si mesmo e às coisas, portanto, que vêm de fora de nós, e não poder nunca mais se separar delas. Certamente seria uma tremenda má sorte não poder ser triste. Muitas pessoas sofreriam com muita dor uma felicidade perpétua. Muitas pessoas sentiriam como algo infeliz e insuportável aquilo que o mundo estima como o máximo da felicidade, como comandar soberanamente, carregar uma coroa... Essas pessoas entendem como uma grande tristeza uma felicidade desse tipo, elas se creriam miseráveis por se tornarem Reis. A vontade livre vale, portanto, mais do que a prosperidade necessária, e a felicidade é ainda maior quando desprezamos a Fortuna mais do que os Reinos. Muitos recusaram os Reinos; outros, não tendo podido recusar, se descobriram extremamente infelizes, ao mesmo tempo em que o foram de fato. A miséria não engana ninguém, ela se encontra verdadeiramente onde se acredita que ela esteja; e sem dúvida é-se miserável desde que se imagine que o seja. Por que não acreditamos que a miséria é mais feliz – se é que podemos dizer dessa forma – do que a felicidade necessária? Sobretudo nós que sabemos – como já sabemos – que Genúcio [não foi possível identificar qual dos muitos Genúcios da história de Roma é aquele a que se refere Nieremberg – Lúcio Genúcio Aventinense, Lúcio Genúcio Clepsina, Caio Genúcio Clepsina, Tito Genúcio Augurino etc.; ndt] preferia se banir de Roma do que reinar sobre ela; ou que Gordiano [há, pelo menos, três Gordianos na história de Roma, todos imperadores que se destacaram pelo curto período de seus governos; ndt] só aceitou o Império sob muita pressão e com o punhal na garganta. Ele cria que o comando soberano era a pior coisa do mundo, e que a boa sorte [no original ele usa a palavra fortuna; ndt] era a maior infelicidade. Ele teve que decidir entre o punhal e o Cetro, entre a morte e a Realeza; sobre aquilo que ele deveria fazer ele duvidava do partido que deveria tomar. Para dizer de forma mais saudável – e não pararmos no sentido corrompido do homem – é exatamente aqui onde há lugar para deliberação e dúvida, e isso não pode ser diferente de uma grande tristeza: ver o destino e o Império concorrer em uma só pessoa com uma igual necessidade.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 100-103.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Quarto prelúdio - Capítulo IV

CAPÍTULO IV
O quanto nos é fácil fazer inteira e rapidamente aquilo que o ambicioso Monarca [no texto latino, Nieremberg se refere a Alexandre, o Grande (356 a.C. – 323 a.C.), ou Alexandre Magno, ou ainda Alexandre III, da Macedônia; ndt] – que pensava que a terra não era suficiente para suas explorações – só fez pela metade e com bastante tempo e pena! O quanto nos é fácil conquistar o mundo e submeter todas as coisas ao nosso poder, desde que não as desejemos, ou ainda melhor, desde que as desprezemos! Certamente, sem fazer esforço ou muito barulho, sem nos tornarmos culpados pela ruína de tantos povos, e sem arrancar das mãos dos Reis seus cetros e seus tesouros, como fez esse Conquistador [refere-se a Alexandre Magno; ndt], somos mais poderosos e ricos do que ele foi, desde que regremos nossos desejos, desde que reprimamos nossa cobiça, desde que nos contentemos conosco mesmos. Tudo o que temos a mais serve de matéria para a nossa magnificência: abandonemos tudo isso aos outros; nós somos pródigos de tudo; nós temos uma rara vantagem em relação a Alexandre, que só podia dar Províncias e, no máximo, Reinos, e nós damos o mundo inteiro; nós não nos satisfazemos com menos do que o Universo inteiro. Ele [Alexandre Magno; ndt] teve, assim, o pesar de ver que um Filósofo [refere-se, no original latino, a Diógenes de Sínope (c. 404 a.C. – c. 323 a.C.), filósofo cínico que viveu na Grécia; ndt] antecipou todas as suas conquistas, teve o pesar de ver que ele, vencedor de tantas nações, foi constrangido a ceder a glória de seus triunfos àquele cuja ambição estava toda encerrada num barril; e para dizer em uma só palavra, teve o pesar de ver que Diógenes adquiriu muito mais coisas do que ele – que tudo adquiriu através de batalhas e do derramamento de tanto sangue –, de forma inocente e através da simples moderação de sua cobiça. O que mais nos acontece depois de uma longa posse das coisas, mesmo daquelas que são as mais charmosas, do que o desgosto e o tédio? Nós já temos esse desgosto e esse tédio mesmo antes de possuí-las. Não as querer nem estimar, não as tocar e só olhá-las com desprezo vale mais do que gozar delas por muito tempo. O que acontece quando possuímos e quando não possuímos é a mesma coisa. Quantos Heróis secretos essa excelente liberdade produz? Quantos Alexandres muito maiores ela faz, simplesmente desprezando o mundo como se fosse uma conquista indigna de sua ambição, e preferindo sua alegria mais do que tudo aquilo que ele tem de riquezas, de forma que não é em nada tentada, visto que nem sequer lança o olhar sobre elas, lançando-os em outras coisas mais dignas? É nisso que a avareza tem – por imitação, em alguma medida, da virtude – uma vantagem maior sobre a Fortuna; seja porque aquela deseja muito mais do que esta é capaz de dar, seja porque é preciso muito mais favores e liberalidades da última para que se iguale em desejos e satisfações à primeira. Por que não quereríamos que a virtude tivesse a mesma vantagem de poder desprezar mais coisas do que a Fortuna fosse capaz de dar, e de reinar sobre ela através de generosos desprezos, assim como a avareza reina através de desejos infinitos? É da natureza dessa última nunca se saciar, desejar ainda mais coisas, mesmo quando parece que nada lhe falta e que ela possui todas as coisas já. Nossos desejos são como os números: não há nenhum que não tenha outro em seguida. E, a este respeito, aplicaremos o que Sêneca [trata-se de Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), filósofo estóico romano, filho de Sêneca, o Velho. Foi preceptor de Nero (37-68), filho de Agripina (neta de César Augusto) e de Cneu Domício Enobarbo; ndt] disse a Nero [Nero Cláudio César Augusto Germânico foi imperador de Roma entre 54 e 68 da era cristã; ndt] ao ver o furor com o qual ele perseguia todos aqueles que ele suspeitava de aspirar ao Império: ainda que consigas matar a muitos, não conseguirás matar o teu sucessor [no original latino: “Licet plurimos occidas, attamen non potes sucessorem tuum occidere”; ndt]. Assim, mesmo que nossa cobiça obtenha muitas coisas, ela nunca se contenta, ela exige ainda mais coisas. Pelo contrário, a virtude é muito satisfeita de si mesma; ela delimita, ela encerra em sua própria posse todas as suas esperanças e todos os seus desejos. Será que isto não é suficiente para provar que a verdadeira alegria consiste somente na liberdade de amar e odiar as coisas? Sem dúvida, há muitas pessoas cuja felicidade seria maior se sua fortuna fosse menor, há muitas pessoas que seriam muito mais satisfeitas não tendo bem algum, do que há outras que o são por terem bens depois de terem trabalhado por muito tempo para desejá-los e adquiri-los.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 98-100.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Quarto prelúdio - Capítulo III

CAPÍTULO III
A mesma alegria que ela recebe da posse das coisas, ela pode extrair do desprezo dessas mesmas coisas, na medida em que elas não estão em seu poder; na medida em que ela muda de paixão, ela mudou de felicidade. Ainda que, aparentemente, ela não tenha aquilo que é necessário para estabelecer a felicidade – e, com efeito, ela não tem menos – ela tem tudo aquilo que é necessário para se recompor e se satisfazer. Certamente, a Fortuna não seria capaz de nos causar a dor para a qual não encontraremos, aqui, o pronto e infalível remédio. Na medida em que a Fortuna se declara contra nós, e em que nós a vemos preparada a nos fazer mal, pratiquemos esta excelente estratégia: passar de um desejo a outro, formando um desígnio contrário àquele que ela atravessa, mudando a guarda, por assim dizer. Assim, nós a faremos perder suas medidas, nós a colocaremos fora da esgrima, ela se encontrará na desordem onde ela pensava nos colocar. Permaneçamos inteiramente persuadidos desta verdade: que quando estamos diante das coisas, está em nosso poder igualmente amá-las ou odiá-las. Temos a liberdade de tomar o partido que quisermos. Podemos ficar contentes tanto de não as ter, quanto de obtê-las. Se não está em nosso poder as ter, não temos que as possuir; e isso deve ser, para nós, igual que as possuir. A moderação da nossa cobiça pode ser, para nós, um grande bem que a Fortuna nos concede – ela não tem outro tesouro comparável a este. Nós já não teremos experimentado que, frequentemente, é mais ruim perder um bem do que não conquistá-lo, que é mais fácil desprezar um bem que adquiri-lo? Por que, então, somos tão cegos a ponto de não ver que é melhor escolher aquilo que nos faz menos mal, aquilo que não apenas não nos incomoda como também nos é mais vantajoso? Ainda que a maldade da Fortuna possa agir contra nós, sempre nos resta um caminho para ir até à felicidade; o acesso a ela nunca nos é impedido; se o caminho que conduz à posse das coisas está fechado – como é o mais frequente –, nós temos a via do desprezo que está sempre aberto e livre. Não é verdade que saboreamos melhor a doçura da fruta sem sua casca? Por que, então, não saborearíamos a alegria sem as coisas? Estando seguros, como já estamos, de que não é nelas que ela [a alegria; ndt] consiste, e de que não podemos pretender nada delas, podemos dizer que as coisas são apenas o envelope, a casca, a cobertura. Sem dúvida, o prazer se segue à paixão e não está em nada ligado às coisas. Não está, pois, na posse ou na privação das coisas a consistência da vontade, pois ela nem as abraça nem as rejeita. Se existisse um homem tão feliz a ponto de adquirir tudo o que visse, ele não seria mais feliz do que aquele que não desejasse nada do que visse. Certo, possuir é uma verdadeira felicidade na medida em que a posse fosse firme e constante, e que não fosse seguida dos movimentos da fortuna, e portanto não estivesse à mercê de seus caprichos e ligeirezas. Que necessidade é essa que nos faz correr atrás do primeiro objeto que nos apresenta a nossa cobiça? Não vale mais a pena nos ligar a uma alegria tranquila? Àquela alegria que não teme nenhuma agitação nem problemas; àquela alegria que temos dentro de nós, que vem da paz do espírito, que nos eleva até ao Céu e nos torna companheiros mesmo de Deus. Em poucas palavras: àquela alegria que um grande Santo [no original latino, Nieremberg se refere a São Justo – “Non sine magno sacramento apostolicus, & caelestis Vir, S. Iustus; cuius meminit divinus Lucas...” – que viveu no século VII da era cristã, tendo falecido provavelmente no ano de 631. É conhecido como São Justo de Canterbury; ndt] nomeou de forma muito excelente como uma imobilidade a todo tipo de ação [a citação aparece, no original latino, em grego. Porém, a qualidade da impressão não permite uma transcrição correta do trecho citado; ndt], como se ele quisesse dizer que aquele que a possui não vê nada além dela que mereça que ele se mova e interrompa, ainda que por um pouco, a tranquilidade perfeita de que ele goza. Com efeito, o que é a felicidade senão um repouso que nada pode incomodar, senão o último termo e, para tudo dizer em poucas palavras, a perfeição da quietude?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 95-97.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Quarto prelúdio - Capítulo II

CAPÍTULO II
O que estimaremos mais, eu vos pergunto, a liberdade de amar e de odiar as coisas; ou o poder de as fazer e de possuir, em seguida, o que seria o objeto de nosso amor? Se desejássemos um lindo Palácio e não tivéssemos necessidade de outro Arquiteto que nosso desejo e nossa própria imaginação para construi-lo, como se fosse o raro efeito das mais sublimes ideias da Natureza e da Arte, como se fosse seu milagre que, pela riqueza de sua matéria, pela beleza, pela variedade de seus ornamentos, ultrapassasse tudo o que se vê de mais magnífico entre os edifícios. Se quiséssemos que ele fosse acompanhado de um delicioso jardim, onde a diversidade dos compartimentos, enriquecidos de todo tipo de flores, disputasse com as fontes, as alamedas e os canais, a ponto de encher os olhos. Se desejássemos tesouros e, ao mesmo tempo, desejássemos que a terra produzisse tão abundantemente para nós que nos fosse até mesmo difícil transportar tudo o que produzisse, a ponto de nos sobrecarregar. Em uma palavra, se nossas conquistas fossem muito maiores do que nossas expectativas. Fiquemos sabendo que este tão inesperado e tão absoluto poder de tudo realizar, este Caduceu que acreditamos ser responsável por trazer a paz ao nosso espírito seria infinitamente menor do que esta excelente liberdade de amar e de odiar as coisas. Não existe nada além da nossa vontade que seja absolutamente capaz de nos satisfazer. Ela, sozinha, constrói nossa alegria e, de maneira rara e maravilhosa, ela a compõe exclusivamente a partir da moderação. Não é necessário, para isso, nem palácios nem tesouros; ela não precisa ajuntar bens, pois todas as coisas do mundo lhe são supérfluas. A regra que Deus lhe prescreveu faz com que ela tenha a posse de tudo. Este é o verdadeiro caduceu que põe fim, que acaba com a guerra que a cobiça excita em nós. E se diz, muito corretamente, a respeito de nosso Salvador Jesus Cristo, que ele despojou Mercúrio de sua vara de ouro e de seus calcanhares alados; ele fez sair de Sião a vara de seu poder. Certamente que aqueles que desprezam as coisas do mundo podem se crer muito mais ricos – mesmo que, aparentemente, não pareçam merecer tal título – do que aqueles que, efetivamente tudo possuem. Eles possuem as coisas integralmente, eles gozam, sem algazarra e sem nenhuma inveja, de uma felicidade pura e perfeita. Foi uma muito pequena glória a desse Imperador Romano [no texto latino, Nieremberg refere-se a Lúcio Septímio Severo (146 – 211), que foi imperador de Roma entre os anos de 193 e 211; ndt] que se vangloriava de ter sido tudo. Aquele que sabe regrar seus desejos pode, muito mais justamente, dizer isso de si, visto ser de fato tudo e, de tal forma encerrado em si mesmo, que nada lhe falta. Este Imperador acrescentava: eu fui tudo, mas isso me é inútil. Digamos o contrário: eu sou tudo e isto me é muito vantajoso. Hípias [refere-se ao sofista Hípias de Elis, que viveu no século V a.C., contemporâneo de Sócrates e Protágoras. Tudo o que se conhece sobre esse filósofo se encontra em alguns diálogos de Platão – Hípias menor e Hípias maior. Era também matemático; ndt], esse famoso Sofista que, por um sentimento bastante razoável, estabeleceu a alegria no se contentar com o que é suficiente para a vida, tendo ido aos jogos Olímpicos em Pisa [esse era o nome de uma antiga cidade grega, na região de Elis. Em Pisa – ou Pisatis – ficava Olímpia, famosa por causa de seus jogos; ndt], deixa ver a inteligência que tinha de todas as Artes ao mostrar publicamente as provas de que ele mesmo havia feito, com suas próprias mãos e sem recorrer à ajuda de nenhum artesão, suas roupas e todas as coisas que cobriam sua pessoa. Nós não precisamos de forma alguma dessa capacidade universal, visto que nossa vontade sozinha nos dá tudo. Por ela, temos todos os bens, e com ainda maior vantagem, já que não nos custa nenhum esforço. Ela nos abastece, ela nos enriquece de todas as coisas; ela pode nos preparar uma festa ainda mais magnífica do que aquelas que os antigos Persas faziam para o Sol. A glória desse Sofista foi não ter precisado da ajuda de ninguém; ele foi louvado por ter sido sozinho o autor de tão diversas obras; mas será que ele pode dizer de si mesmo que não pegou emprestado de ninguém a capacidade industriosa de fazer essas coisas? Será que a Fortuna não lhe terá fornecido matéria? Será que ele não recebeu da Natureza o tempo necessário para se dedicar a isso? Certo, nós nos damos muito mais coisas do que, de fato, queremos. Temos, a partir disso, sem nenhuma atenção mais acurada, aquilo que solicita demais, aquilo que não se conserva sem inquietude, aquilo cuja posse é cheia do temor da perda. Aquele que, tendo se elevado de uma baixa condição a uma alta fortuna, se lamentava do favor de seu Príncipe como se lamenta de uma conspiração feita contra seu repouso, esse não ignorava em nada essa verdade. E, para falar de forma mais saudável, pergunto: no que aqueles que possuem as riquezas são diferentes dos que temem as emboscadas de seus inimigos, já que aqueles, como estes, vivem numa constante desconfiança, já que uns e outros são sempre impedidos de dormir? O que mais poderíamos esperar da magnificência dos Palácios, da beleza dos jardins, da abundância dos tesouros, do que a alegria? Nossa vontade, porém, a adquire para nós, não somente sem nada dessas coisas, como também livre dos cuidados que, normalmente, acompanham a posse dos bens. E tenhamos claro que quem se liga ao amor pelas coisas perecíveis não conseguirá evitar, por uma fatal necessidade de sua condição, ser duplamente infeliz, mesmo que ele as deseje e delas goze, mesmo que ele obtenha, ou não, a realização de seus desejos; quando ele as tem em posse, o que ele tem a dizer entre ardendo de ambição e paralisado de medo? Pouco importa se o veneno pareça bonito numa taça de ouro ou num vaso de argila; a cobiça não dá menos trabalho para quem é por ela possuído do que a apreensão dá a quem possui. É por isso que a vontade bem dirigida e pura, que não deseja nada, vai, sem dúvida, muito mais diretamente para a felicidade do que aquela desregrada e que goza do efeito de seus desejos. Muitas vezes, a primeira está segura de atingir o objetivo, enquanto que esta última não chega nunca. Não pensemos que é sempre feliz aquela que é plena, mas, pelo contrário, aquela que é vazia, quer ser assim e não pretende se preencher.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 91-95.