A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE
LIVRO QUARTO
_______________________
PRIMEIRA ESCOLHA MORAL*
Considera-se e prescreve-se o uso dos afetos
CAPÍTULO PRIMEIRO
Agora, vou me dedicar a preceitos particulares, para regular todos, um a um, os ímpetos da vontade, que devem ser ordenados como na República, para não causar confusão a muitos, a fim de que, corrigindo-se o vulgo de seus afetos, se restitua a sua Monarquia, o seu Principado de alegria, o seu Domínio de paz; ainda mais, para que se restitua o mérito da Vontade, o decoro da Natureza. Zenão [aqui, trata-se do estóico Zenão de Cítio (334 a.C.-262 a.C.); ndt] pareceu injusto, e se dermos crédito a Jerônimo [trata-se de São Jerônimo (347-420); ndt], também Pitágoras [trata-se de Pitágoras de Samos (c. 571 a.C.-c. 496 a.C.); ndt], porque, para mostrar os afetos como repreensíveis, os chamou de malvados. Elogiaram, segundo Pirro [trata-se do filósofo cético Pirro de Élis (c. 360 a.C.-c. 270 a.C.); ndt], segundo Estílpon [Estílpon de Mégara (c. 360 a.C.-c. 280 a.C.) foi discípulo de Diógenes de Sínope, sobre quem já comentamos em nota anterior, é um dos representantes mais importantes da chamada Escola Megárica, que criticava a filosofia platônica, especialmente no particular sobre a imitação que a realidade sensível faz do Ser; ndt], sua vacuidade. Condenaram, os que perteceram ao Liceu [trata-se da escola fundada por Aristóteles em 335 a.C., também conhecida como escola peripatética; ndt], seu excesso. Todos com erro, a não ser que tivessem o mesmo desejo de Agostinho [trata-se de Santo Agostinho (354-430); ndt]. Os adornos da natureza não são maus nem supérfluos. Por que cortar os braços e os membros da alma? Se tirarmos da alma o afeto, com que pés correria para adquirir a virtude se não com os desejos? Com que mãos a reteria, se não com a esperança? Com que braços a abraçaria, se não com a alegria? Também os Peripatéticos [escola fundada por Aristóteles que, em grego, significa “os que passeiam”, designando a forma como as aulas eram dadas no Liceu: os filósofos ensinavam ao ar livre, caminhando; ndt] erram quando condenaram a superabundância. A grandeza do afeto não é nociva, mas é a causa: não tanto ímpeto, quanto erro. O viajante não precisa ser corrigido porque está com pressa, se estiver na estrada certa: mas se se desviar dela, mesmo que seja uma viagem de lazer. A cobiça e o amor, mesmo sendo afetos muito impetuosos, se são virtudes e se são de Deus, seguem por caminho direito e são ótimos; se se dobram para a terra, mesmo que sejam lentos, perdem a via e se desviam do caminho direito. O Pórtico [trata-se da Escola Estóica, que tirou seu nome da palavra stoà que, em grego, significa “pórtico”, em referência ao fato que Zenão de Cítio, fundador da escola, ensinar sob o pórtico da Ágora, em Atenas; ndt] difamou o medo como maior de todos os vícios: é verdade, quando, por causa dele, tu te abaixas em direção à terra; mas se tu o reduzires ao Céu, será uma grande vitude, a maior segurança, a maior fortaleza. Quem teme a Deus, não teme nada. Tanto os frágeis, quanto os ferozes afetos são bons, se forem regulados pela virtude e forem colocados por ela no caminho certo. Se, por outro lado, forem degenerados, por mais justo que seja o ritual de todas as coisas, quanto mais veementes, mais prejudicias serão. O sangue puro e refinado é veículo da alma, e causa da saúde; corrompido e sujo, causa de doença; se superanbundar, apressa a morte. Os afetos também são sustento para a virtude: a fortaleza enfraquece sem a a ira, a prudência sem o temor; serão virtudes se forem moderados. Modera a cobiça e terás justiça; a volúpia e terás temperança. Em torno desses e nesses consiste a virtude, de que são sujeito e matéria. Colhe os vícios, bons frutos nascerão com a fecundidade da natureza. Só são ruins por causa da nossa negligência. Por descuido do Agricultor, o jardim crescerá selvagem. E o terreno não pode ser dito péssimo só porque, não tendo sido cultivado, germinam nele as plantas daninhas: é tudo culpa do Colono. Espinhos do coração não cultivado são os vícios, rosas do cultivado as virtudes, que germinam da haste dos afetos. Teages [é um dos personagens do diálogo platônico Teages. Nesse diálogo, Demódoco, pai de Teages, preocupado com o futurodo filho, quer saber de Sócrates qual é o melhor tipo de sabedoria; ndt] disse com razão: Quamobrem opus est, affectus ita inesse virtuti, ut umbrae, et linea sunt in pictura, quam vivam quodammodo, blandam, et ad rem ipsam efficiunt. Sic etiam affectus animae fecundum naturam se habentis, cum ad virtutem divino quodam impetu rapiuntur, vitam continere videntur. Sane virtus ex affectibus et nascitur, et nata rursum cum ipsis constat: ut quod suaviter concinnum est ex acuto, et gravi: quod recte temperatum ex calido, et frigido compositum est. Qua propter affectus ex anima tollendi non sunt, quod inutile foret: sed cum decore, et modi ratione conciliandi [no original latino, a citação aparece em grego, com a tradução na margem – como, inclusive, é o caso em todas as vezes em que há uma citação em grego ou hebraico. No entanto, a grafia utilizada no original e a qualidade da cópia não permite uma transcrição do texto grego; ndt]. De onde se tira que não é preciso cancelar todos os afetos, mas os regular. Não se cortam todos os ramos da videira: alguns são endireitados e alongados para que, ali, brotem as folhas. O solitário Filipe [certamente se trata do Abade Felipe de Harveng, que foi abade em Notre-Dame de l'Aumône (Nossa Senhora da Esmola), abadia cirteciense. Era arquidiácono de Liège em 1146, quando Bernardo de Claraval solicitou sua companhia para pregar a cruzada na Alemanha. Não há muitos dados acerca desse personagem. Sabe-se, porém, que em 1179 ainda era vivo (cf. Migne, 1855, p. 566); ndt] disse de forma elegante: prole belíssima da cobiça é a temperança; do cálice da ira se derrama a fortaleza. Estes afetos, como nos disse, são mães das virtudes e dos vícios. Assim é: dão à luz as virtudes, quando a razão é a obstetra; abortam os vícios, quando é a opinião. A cobiça, embora seja tida em péssimo conceito, e seja reputada prejudicial pela temperança, se, porém, dirige seus ímpetos para Deus, restaurará sua honra, se tornará Mãe da continência. Quem deseja as coisas divinas, despreza todas as terrenas.
* No original latino, Nieremberg optou por nomear cada parte inicial deste quarto livro do DAV com o título geral "Proaeresis", seguido de um subtítulo. Trata-se de um conceito fundamental no Estoicismo e aparece muito na Ética a Nicômaco de Aristóteles, que pode ser traduzido como volição, intenção, escolha moral, desejo, livre arbítrio, escolha deliberada. Trata-se da junção do verbo airén (pegar) com a preposição pró (adiante). Traduzi por "escolha moral" devido ao contexto do manual que pretende ser um manual de filosofia moral. Importante observar que, na versão italiana, o tradutor optou por não usar o conceito, preferindo apenas traduzir os "subtítulos" de cada uma das partes que compõem este início do quarto livro.
NIEREMBERGH, Giovani Eusebio. Dell'Arte per ben reggere la volontà, insegnata da Padre Gio: Eusebio Nierembergh della Compagnia di Giesu, Libri Sei, Trasportati dalla Latina nella Lingua Italiana. All'Illustrissimo e Reverendissimo Signore Monsignore Daniello Delfino, Vescovo di Filadelfia, & Eletto Patriarca d'Aquileia (Gabriello Baba, Trad.). Venezia: Nicolò Pezzana, 1669.
Referência:
MIGNE, M. L'Abbé. Nouvelle encyclopédie théologique, ou nouvelle série de Dictionnaires sur toutes les parties de la Science Religieuse, offrant, en français et par ordre alphabétique, la plus claire, la plus facile, la plus commode, la plus variée et la plus complète des théologies. Ces dictionnaires sont ceux: de biographie chrétienne en anti-chrétienne, des persécutions, d'éloquence chrétienne, de littérature id., de botanique id., de statistique, id., d'anecdotes id., d'archéologie id., d'héraldique id., de zoologie, de médecine pratique, des croisades, des erreurs sociales, de patrologie, des prophéties et des miracles, de décrets des congrégations romaines, de indulgences, d'agri-silvi viti-horticulture, de musique id., d'épigraphie id., de numismatique id., des conversions au catholicisme, d'éducation, des inventions et découvertes, d'ethnographie, des apologistes involontaires, ds manuscrits, d'anthropologie, des mïstères, des merveilles, d'ascétisme et des invocations a la Vierge, de paléographie, de cryptographie, de dactylologie, d'hiéroglyphie, de sténographie et de télégraphie, de paléontologie et de cosmogonie, de l'art de vérifier les dates, des confréries et corporations, et d'apologétique catholique. Publiée par M. L'Abb. Migne, éditeur de la Bibliothèque Universelle du Clerge, ou Des Cours Complète sur chaque branche de la Science Ecclésiastique - Tome Vingt-Troisième: Dictionnaire de Patrologie. Paris: J.-P. Migne, Editeur, 1855.