A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE
LIVRO TERCEIRO
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PRIMEIRO PRECEITO
QUE é um soberano remédio contra os males que a Opinião nos causa estudá-la e conhecê-la
CAPÍTULO PRIMEIRO
Mas, há um meio raro e infalível de evitar os inconvenientes nos quais a Opinião nos faz cair. Temos um soberano remédio contra os males que ela nos suscita. É preciso sempre relembrarmo-nos de que ela é infiel e enganadora; que, semelhante aos quadros que nascem do capricho dos pintores, ela não representa nada de verdadeiro [no original latino, Nieremberg apresenta esta mesma argumentação assim: "Non leve adversus hanc momemtnum putes, cognosci: si tibi ubique renunties: Pergula pictorum, veri nihil, omnia falsa"; ndt]; é preciso sempre considerá-la como uma operária do erro e da mentira; desconfiar dela incessantemente, e nunca ter fé nela. A morte violentou nossos filhos, perdemos nossos bens, fomos decepcionados em nossas pretensões, o mundo nos recusa sua estima; numa palavra, vemos uma tempestade de infelicidade pronta para cair sobre nossa cabeça; mas não nos assustemos, esperemos com os pés firmes e pensemos: “Eu me engano ao acreditar que sejam as coisas a me fazer sofrer; somente a minha Opinião é responsável por isso; este é o erro onde me encontro quando as tomo como males em si mesmas; nisso, não há nada capaz de me afligir; o mal que eu lhes imputo vem inteiramente de mim, sou sozinho o autor da desordem que acuso como sendo causado por elas. Tenho horror à pobreza; mas é porque eu a pinto e a represento horrível; e figurando-a assim para mim mesmo, sou eu mesmo o responsável pelo medo que sinto; eu é que dou a ela, através da minha Opinião, este rosto que me assusta; com efeito, ela não o tem por si mesma; ela não é nem aflitiva nem assustadora, mas, ao contrário, é agradável e traz alegria. Sem me apoiar aqui sobre as provas que o Cristianismo poderia me dar, segundo as quais ela tem encantos e graças que provocam em nós muito mais do que desejo de fugir, mas desejos de abraçá-la voluntariamente e de deixar todas as coisas para segui-la, empregarei os exemplos daqueles que, não tendo sido em nada iluminados do alto, e só tendo as luzes e ajudas naturais, a amaram por si mesma, e só tiveram como objeto a satisfação que a acompanha. Penso naquele bom velho da Arcádia que, nunca tendo saído dos limites de um pequeno poço, de onde ele tirava apenas aquilo de que tinha necessidade para se alimentar, saboreava contentamentos que aqueles que estão cheios de riquezas não conhecem; e foi julgado pelo Oráculo como mais feliz do que Giges, um dos mais poderosos Príncipes do mundo. Penso também naquele Ateniense cuja felicidade foi testemunhada pelo primeiro dos Sábios da Grécia; não esquecerei também aquele Filósofo cuja feliz miséria tentou o grande Alexandre e causou inveja à opulência e ao luxo. Tantos outros cuja sabedoria é ainda venerada por nós e que encontraram delícias na pobreza – Crates, Aristides, Demónax são os nomes que me vieram à cabeça [no original latino, Nieremberg se refere a vários personagens, além dos citados pelo tradutor: "Horreo paupertatem, quia horridam puto; & dum puto, horrorem mihi incutio: at laeta Aglao fuit; felix Tello, affectata Diogeni, quaesita Crateti, pertinax Demonaci, gloriosa Epaminondae, studiosa Horatio, iusta Aristidi, secura cunctis". O que poderia ser assim traduzido: "A pobreza me horroriza, porque a penso horrível: mas enquanto a penso, eu mesmo me causo o horror; mas ela foi alegre para Aglao, feliz em Tello, fingida por Diógenes, buscada por Crato, vivida com pertinácia por Demónax, gloriosa para Epaminondas, amada por Horácio, justa em Aristides, segura para todos". Assim, os personagens referidos por Nieremberg são: Aglao, de quem não encontramos nenhuma referência; Tello, de quem também não encontramos referências precisas; Diógenes de Sínope (c. 404 a.C. - c. 323 a.C.), filósofo da Escola Cínica, que, segundo a tradição, perambulava pelas ruas e vivia dentro de um barril; Crates de Tebas (c. 365 a.C. - c. 285 a.C.), filósofo também da Escola Cínica e mestre de Zenão de Cítio e discípulo de Diógenes de Sínope, sacrificou toda a sua fortuna em nome dos princípios de sua escola de pensamento; Demónax (séc. II d.C.), filósofo da mesma Escola Cínica, e que, segundo se conta, viveu ainda mais austeramente que Diógenes de Sínope; Epaminondas (c. 418 a.C. - 362 a.C.), general e político grego, responsável por levar Tebas a se tornar uma potência hegemônica na Grécia, substituindo Esparta, é bastante elogiado pelos seus contemporâneos pelo fato de desdenhar toda riqueza material, tendo vivido em grande simplicidade e asceticamente; Quinto Horácio Flaco (65 a.C. - 8 a.C.), poeta lírico e filósofo romano, que tinha uma forma de pensamento muito semelhante a dos Epicuristas, sobretudo quanto ao que concerne à brevidade da vida; e Aristides de Atenas (c. 535 a.C. - c. 468 a.C.), estadista e estragistas ateniense cognominado o Justo, conta-se que morreu em extrema pobreza, não tendo nem mesmo o suficiente para o próprio funeral; ndt]. Penso também no famoso Epaminondas, para quem ela não trouxe menos glórias do que suas façanhas, e que ele não quis trocar nem por toda a riqueza do mundo. Sobre isso, farei uma justa reflexão: perdi a razão quando temi aquilo que tantos homens tão excelentes amaram, quando tomei como um mal aquilo que tiveram como um bem. Assim, descobrirei a injustiça da Opinião, quando me persuade do contrário; e vendo, com isso, como é perigoso escutá-la, rejeitarei seus conselhos, como sendo cheios de imposturas e de traições. Fui atacado pela calúnia? Ela não me fere, eu direi para mim mesmo, mais do que o tanto que eu imagino; ela não consegue me pegar, a não ser se minha Opinião assim o crê. Será que serei louco de me afligir? É um palavra e não uma pedra que sai da boca do caluniador; não é um raio, é uma palavra que não tem força nenhuma por si mesma. Sem dificuldade, o espírito é mais firme do que o corpo; sendo assim, que vergonha para este [o corpo; ndt] que cai por terra quando o outro [o espírito; ndt], diante da mesma calúnia, permanece de pé! Que vergonha que o mais forte seja abatido! Como pôde ser feita a ferida no meu coração se nada foi feito ao meu corpo? De onde pode ter vindo a flecha que atingiu primeiro um sem ter atingido o outro? Visto não haver nenhuma marca exterior, sem dúvida que ela veio de dentro; é um golpe da minha Opinião; foi ela quem me feriu e não o caluniador. Pois bem, ele me cobrirá de injúrias, ele vomitará todo o seu fel sobre mim; eu não revidarei, eu não direi uma só palavra. E, diferentemente do povo que crê ser uma desonra ceder em ocasiões semelhantes, eu acreditarei ter tido uma grande vantagem sobre ele, assumindo a postura mais forte e mais honesta. Eu manterei a boca fechada e em silêncio; ele ficará cansado de tanto falar e eu não me cansarei de calar. E, depois de tudo, o que quer que ele faça e por maior que seja o excesso de sua insolência contra mim, o que me acontecerá? Eu não apenas não perderei nem mesmo um fio de cabelo, não sentirei nem mesmo o dedo dolorido. Ao contrário, serei eu a causar-lhe problemas, na medida em que é certo que, se eu não me aferroo, o aferroarei sensivelmente; ele ficará fora de si, ao me ver sem emoção; eu o colocarei em desespero, se não ficar em cólera. Desta maneira, pararei o transbordamento de suas palavras, acalmarei a tempestade que ele tiver suscitado; enquanto que, seu eu o contestasse, eu o tornaria ainda mais violento; assim como só é possível reter um vento impetuoso que passa por duas janelas fechando uma – após o que ele para inteiramente, ele não sopra mais de um lado a outro –, também será fechando minha boca que pararei este turbilhão que sai da sua. Se esta verdade, cuja experiência não me permite duvidar, precisa ser confirmada por exemplos, trarei na memória Dionísio e Catão que triunfaram, dessa maneira, sobre a malícia de um maledicente e, dessa mesma maneira, fizeram crescer bastante a reputação de sua sabedoria” [ao que tudo indica, trata-se de Dion de Siracusa ou Dionísio I (408 a.C. - 354 a.C.) que foi um admirador e aluno de Platão, e tirano de Siracusa; e de Marco Pórcio Catão (234 a.C. – 149 a.C.), que foi um político romano, tendo ocupado os cargos de Cônsul e de Censor; ndt]. Certamente, isso é um combate, onde a vitória não se ganha menos por resistência que por fuga, e onde as pessoas de bem entram com tanta desvantagem quanto as pessoas malvadas que costumam, nisso, ser mais fortes, na medida em que estão continuamente praticando o mal e não têm menos facilidade em dizer do que em fazer. Enquanto que, os demais, nisso, têm uma repugnância natural e, consequentemente, têm extrema dificuldade, na medida em que são sempre novatos e desajeitados, por assim dizer, e que lhes falta, nisso, o exercício e a vontade.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 418-422.
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