CAPÍTULO IV
Assim, as coisas têm, portanto, para nosso olhar, duas faces. Não há dúvidas de que tenham duas alças [como dissemos antes; ndt]; mas é preciso segurá-las pela alça boa, através da qual elas são capazes de nos dar algum alívio. Um Lacedemônio vendo-se ridicularizado por ser manco e aparentemente inadequado para as penosas funções da guerra, não tendo deixado, porém, de ir, virou a coisa de outro lado e tornou vantagem aquilo que parecia ser algo para a sua confusão, dizendo que queria combater e não fugir, como que querendo dizer que, lá, na guerra, ele agiria não com suas pernas, mas com seus braços [no original latino, Nieremberg escreve: "Visus est Androcidas ineptus miles, quod claudus descend eret in aciem, & propterea increpatus...". Não encontramos, porém, referências acerca desse personagem – Andrócida; ndt]. Esta habilidade foi anda felizmente praticada por outro da mesma nação que, estando condenado à morte, não somente não se zangou e se abandonou, como é comum aos homens em ocasiões semelhantes, à dor e às lágrimas, mas testemunhou alegria, respondendo àqueles que chamavam sua atenção e que o acusavam de desprezo pelas leis que ele estava contente de poder pagar uma dívida, que ele não havia exigido nada de ninguém e que, portanto, ninguém tinha o direito de exigir nada dele [no original latino, aparece: "Theramenes, opinor, sive alius alitus Lacedaemone animus, innocenti capulo prehendit fatum...". Trata-se, portanto, de Terâmenes, político ateniense, que viveu no século IV a.C.; foi um dos principais idealizadores do golpe de Estado que instaurou o governo dos Trinta Tiranos; foi morto, após se opor aos excessos do tirano Crítias; ndt]. Um e outro olhava as coisas a partir do ponto de vista que lhes permitia aproveitar algo delas; não ignorando que não há nenhuma que seja tão dura e tão incômoda que não tenha algum lado agradável e ao qual não se possa dar uma interpretação favorável. Para apoiar esta verdade sobre outro exemplo vindo desse mesmo povo, valho-me daqueles trezentos soldados que, das muitas tropas que os Gregos opuseram aos esforços Persas, tiveram a segurança de permanecerem sozinho no famoso estreito de Termópilas e que, por uma gloriosa morte, adquiriram uma reputação imortal e não encontraram razões para justificar sua fuga, nem mesmo para torná-la honrosa [assim escreve Nieremberg no original latino: "Lacones, sive trecenti, sive sexcenti fuissent, qui aliis ex omini Graecia effugientibus Xerxem, relicti sunt, suam quoque satis honorare fugam possent". É conhecida a história da tropa de Leônidas - formada por trezentos homens - que ofereceu resistência aos exércitos de Xerxes I, também conhecido como Assuero, no estreito de Termópilas; ndt]. E, para bem dizer, quanta aparência pode haver no fato de tão pouca gente pudesse se opor a uma tão grande armada e não se tenha comportado como presa? Será que eles pretendiam trazer a Vitória justamente num lugar onde era inevitável que deixassem a vida? Onde toda a sua resistência era incapaz de impedir sua perda, e só era capaz de retardá-la? Se, certamente, para eles, isso era uma loucura – pensar em vencer um inimigo tão poderoso e numeroso, que transportou montanhas, cobriu vales, aplainou precipícios, secou rios, fez o mar gemer sob a grandeza e a quantidade de seus navios, enfim que venceu a Natureza em todas as partes por onde esteve –, eles sabiam que deveriam, por assim dizer, agir corajosamente e com conhecimento do perigo, ou se precipitarem cegamente e por desespero. Eles não ignoraram que havia uma diferença entre temeridade e coragem. Como sempre, eles sabiam da estima de valor que os Gregos têm de si; eles temiam a censura de ter exposto imprudentemente ao furor dos Bárbaros uma vida que eles deveriam empregar para a salvação de sua pátria; e não tendo nisso outra testemunha de sua virtude além dos inimigos, para quem ela [a virtude; ndt] era odiosa – visto ser ela, para eles, fatal –, eles poderiam muito bem ser acusados de ter entregue sua reputação nas mãos daqueles que a apagariam e enterrariam seus nomes num eterno silêncio. Por que, portanto, eles não fugiram, visto que eles poderiam fazer isso não somente sem vergonha, como também com honra? Porque eles olharam para a coisa a partir de outro lado; e, para usar dos termos que vimos empregando, eles a tomaram por outra alça. Que razão eles teriam para temer estarem abandonados e sós? Sem dúvida eles creram não estarem nem abandonados nem sós. Os Rochedos que os cercavam eram tropas que haviam vindo em seu socorro, e serviam como amparo, e agiam, ao mesmo tempo, como defesa e como companhia. Pois bem, eles teriam que combater num estreito incômodo e com tão pouco espaço? Tanto mais lhes foi vantajosa esta situação, visto que, estando juntos, a união de suas forças tornava sua resistência mais poderosa; e além do mais, a grandeza e a extensão de sua coragem reparava os inconvenientes que poderiam lhes ser causados pela pequenez e por outros defeitos do lugar. Eles eram apenas trezentos; a bem dizer, eles eram apenas um punhado de gente; mas cada um se contava como vários e cria valer o mesmo que uma multidão, sustentando-se sobre esta verdade universalmente reconhecida, segundo a qual os Lacedemônios se estimavam por seu valor e não por seu número. Eles se consideravam uma tropa escolhida, segundo o consentimento comum daqueles que voluntariamente cederam toda a honra desta ação e não quiseram fugir. Nós, aqui, não somos muitos, eles diziam, para defender nossa pátria, apenas o suficiente para mostrar nossa virtude; nunca haverá ocasião melhor para isso. Podemos dizer corajosamente: eis o dia de nosso triunfo. A fuga não seria desonesta para outros; mas o simples pensamento da fuga nos seria eternamente censurável; seria suficiente para que nos considerassem infames se simplesmente tivéssemos colocado isto como opção para uma deliberação. Aqui, a honra não é menos eminente que o perigo; se aqui a vitória é duvidosa, a glória é infalível. Os Atenienses não teriam ido embora se houvesse alguma certeza de vitória; os Lacedemônios permanecem onde eles estão certos que morrerão. Xerxes revirou as montanhas, secou os rios, mudou a aparência da Natureza. Tudo isso foi mais fácil, para ele, do que abalar nossa firmeza e nos fazer mudar a decisão. Que ele saiba que esta prodigiosa potência com a qual ele nos quer maravilhar, e que ele acha não ter limites, se encontrará, hoje, na impossibilidade de nos arrancar o coração. É nisso que seremos superiores a todos os seus esforços; e nisso a Vitória permanecerá conosco, mesmo depois de havermos perdido. Não haveria nisso, sem dúvida, motivos suficientemente poderosos para fazê-los assumir o partido contrário àquele que as razões lhe davam? E não parece que, se eles poderiam fugir honrosamente, também poderiam permanecer gloriosamente?
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 440-444.
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