quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Quinto preceito - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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QUINTO PRECEITO
QUE devemos penetrar o verdadeiro sentido da Verdade

CAPÍTULO PRIMEIRO
Vimos acima como é que, de duas maneiras diferentes, o Entendimento peca em relação à Vontade: não lhe fazendo um fiel e justo relatório da condição das coisas; e lhe apresentando a Verdade sob imagens tão frágeis e lânguidas que, muito longe de tocá-la, ela não lhe causam a mínima emoção. O primeiro destes inconvenientes parece ser suficientemente reparado pelas máximas e pelas precauções de que fomos instruídos até aqui. Em seguida, nos dedicaremos a encontrar remédios para o outro. Sem dúvida, a indiferença e o peso com o qual o Entendimento age para lhe oferecer este último serviço, faz com que ele seja totalmente inútil. E, da mesma forma que um braço fraco e impotente não nos ajuda em nada, mesmo que ele não nos faça mal algum, também as Ideias que o Entendimento forma, por mais que não sejam falsas, são tão temerárias e tão pouco ativas, que a alma não se excita em nada e nem mesmo as ressente. São estes pensamentos que um Antigo nomeou muito apropriadamente de paralíticos e sem movimento, por causa do fato de elas não serem capazes de estender a mão para a Vontade, nem lhe dar a mínima assistência [no original latino, Nieremberg escreve: “Istae sunt cogitationes, quas egregie Alchuuinus paralytica dixit, sine motum sunt; nequeunt porrige voluntati manum; nequeunt gubernare lacertum”. O “antigo” a que se refere o tradutor é Santo Alcuíno de Iorque (735-804), que é considerado o Patrono das universidades cristãs; ndt]. Assim, vê-se ordinariamente que uma verdade igualmente entendida e aprovada por duas pessoas, a uma excita até ao ponto de entrar profundamente em seu coração, enquanto que à outra apenas toca muito dificilmente. Eu vos pergunto, o que mais poderia causar esta diferença, se não fosse a languidez do Entendimento, que não toma como deveria esta Verdade, que não a anima, que não lhe dá nem calor nem força, e que, por sua moleza, impede sua eficácia? Sem dúvida, é preciso que ele [o Entendimento; ndt] esteja capacitado, no seu devido fundamento, na disposição necessária para recebê-la. É preciso que ele se coloque diante dela, que ele a acolha com alegria, que se torne capaz de seu efeito, que ele ajude suas operações. De outra forma, certamente elas [as operações; ndt] lhe serão inúteis e, por mais que ela seja a coisa mais forte e mais penetrante do mundo, não receberemos nem mesmo a mínima impressão. Aquilo que se nos diz nos toca as orelhas, mas não toca o nosso coração. Por mais presentes que estejamos a quem nos fala, pode-se dizer que não estamos diante dele; e mesmo que, de olhos fixos, com rosto sóbrio, com corpo firme e imóvel, façamos parecer que estamos atentos, não temos a mínima atenção; escutamos como quem não escuta. Quanto homens, eu vos pergunto, ouviram a Verdade mesma falar, quando ela veio sobre a Terra – que, para se comunicar a nós, assumiu um corpo mortal e se revestiu de nossa Naureza – e aprovaram-na, aplaudiram as exortações que fez de abandonar o mundo e, no entanto, permaneceram ligados ao mundo, não se desfizeram de suas honras e de seus bens e, pior ainda, não renunciaram a seus vícios? [neste trecho, no original latino, Nieremberg cita alguns nomes: “Quot sunt, qui verissimum habuerunt, qui saepius audierunt, quod magnus Antonius, quod Simeon Stylita, quod Franciscus, subita sapientia: sed retinuerunt suas opes, &, quod peius est, opera, vitia?”, que poderia ser traduzido da seguinte forma: “Quantos são aqueles que escutaram com muito verdadeiro, que muitas vezes escutaram aquilo que, com sabedoria, o grande Antônio, Simeão Estilita e Francisco disseram: mas mantiveram suas riquezas e o que é pior ainda, continuaram nas ações depravadas e nos vícios?”. Os três personagens citados são: Santo Antônio de Pádua (c. 1195-1231), São Simeão Estilita (c. 389-459) e São Francisco de Assis (1182-1226); ndt]. Houve outras a quem esta mesma Verdade persuadiu, entrou inteira no coração, se imprimiu vivamente em seu espírito. Mais uma vez eu vos pergunto, de onde é que pensamos que isso possa proceder, se não for do fato que nestes o Entendimento se agarrou à Verdade fortemente e com vigor, enquanto que naqueles ele agiu com covardia e negligência? Aquele insolente Rei do Egito que, por ter vencido quatro Reis, se tornou tão orgulhoso, para não dizer tão brutal, a ponto de não apenas tirar deles as prerrogativas e as marcas de sua grandeza, mas tirando-lhes também os privilégios da humanidade, impondo-lhes o jugo com o mesmo império que ele impunha aos animais, atrelando-os a seu carro de triunfo, terá, alguma vez, posto os olhos no movimento das rodas de seu carro? Ou seja, terá ele visto a mais natural imagem da instabilidade da Fortuna? Terá, alguma vez, considerada a Fortuna mesma, a ponto de entender que ela é inconstante e variável? No entanto, ele não fez sólidas reflexões, a ponto de, ao ver que um desses Reis olhava muito fixamente uma roda, e lhe tendo perguntado o motivo, ele achou que aquele Rei estava admirado com a velocidade com a qual ela girava, e ele achou que aquele Rei tirava prazer do ver como os raios da roda que estavam no alto, de repente, caiam e se encontravam embaixo; foi então que ele se deu conta dos dois estados da vida e começou a deplorar a inconstância das coisas do mundo. Foi então que este Príncipe soberbo, que nunca se havia deixado tocar por esse tipo de pensamento, abriu todo o seu espírito e, começando a temer para si a mudança que via no outro, começou a desconfiar da duração de sua felicidade, e começou a considerá-la suspeita de inconstância, e mudou o cativeiro desses Reis escravos numa condição suportável e doce, e começou a tratá-los com toda sorte de favores, daí em diante [no original latino, Nieremberg cita explicitamente o Rei Sesóstris, no entanto, não está claro a qual dos três reis com este nome se refere o autor; ndt]. De onde vem o fato de que gritemos tão frequentemente contra a Fortuna, que nos lamentemos sem cessar dela, que digamos que ela só nos dá coisas do Mundo, que este brilho com o qual ela nos deslumbra é não apenas falso como também perigoso, que é um brilho fatal que nos conduz ao precipício? De onde vem que afirmemos isso tão seriamente, mas não sejamos persuadidos disso? É porque não penetramos no interior da verdade e só a vemos pelo lado de fora. Não conhecemos de forma alguma este nada sobre o qual falamos tão fortemente; caímos numa manifesta contradição; tornamo-nos ridículos ao dizer que a coisas do mundo não são nada, ao mesmo tempo em que corremos tão efusivamente para elas. Se, de verdade, acreditássemos nisso, nós as rejeitaríamos constantemente; elas seriam o contínuo objeto de nosso desprezo. Como é possível que aquilo que não é nada posso nos atrair tão poderosamente a ponto de reter o nosso coração? Esta força só pertence a Deus; sem dúvida, ela é própria apenas daquele que é todas as coisas. Será que poderíamos, aqui, admirar suficientemente, deplorar suficientemente a nossa loucura de fingir dizendo que os bens e as honras do mundo são um nada, mas ter a impudência de preferir este nada à Virtude? De preferi-lo à mais nobre e preciosa de todas as coisas? Somos impostores e não cremos no que dizemos. Temos, em nossa boca, muito excelentes propósitos, mas não os temos no coração. Pronunciamos salutares máximas, glorificamo-nos dizendo belas sentenças; mas não temos correta inteligência delas. A languidez de nosso Entendimento faz com que elas sejam inúteis e sem fruto. Solicitamos aos outros que façam o bem, nós os animamos com nossos discursos; mas não lhes mostramos o exemplo. Com isso, permanecemos na frieza e na preguiça, ignorando as coisas com as quais queremos lhes instruir. Somos como aquelas pessoas que falam enquanto dormem, que não conseguem se escutar e são escutadas por outros. Somos semelhantes a um instrumento musical que ninguém escuta o som que ele faz e, portanto, não causa prazer algum. Não consideramos que as aparências da Verdade só são conhecidas por nós pela casca, e nos enganamos de que ela esteja onde, com efeito, ela não está. É por isso que não somos capazes de valorizá-la como realmente vale. Como nós não a vemos, ela não nos excita e não nos parece digna de ser amada. Quem olha apenas para o estojo onde se guardam pedrarias, julga bem que elas estejam dentro, mas não é capaz de estimá-las segundo seu verdadeiro valor. Nós paramos na superfície da Verdade; considerando apenas sua aparência agradável e brilhante; mas não a buscamos mais fundo; nós apenas a estimamos por seu estojo. Que certeza poderemos ter acerca dela com este tipo de estimação? 

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 480-485.

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