A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE
LIVRO TERCEIRO
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SEGUNDO PRECEITO
CONCERNENTE ao bom uso da Opinião e do Intelecto
CAPÍTULO PRIMEIRO
Até aqui, vimos as desordens da Opinião; conhecemos seus enganos. Vejamos, de agora em diante, o seu bom uso. Assim como ela é maléfica e perigosa, ela pode ser útil e proveitosa. Assim como ela causa mal, sem dúvida ela pode causar o bem. Ela, verdadeiramente, atrapalha nossa alegria; mas também ela alivia e encanta nossos problemas; ela nos fere, mas ela pode nos curar; semelhante a esses insetos que trazem em si o remédio para curar a picada que eles dão, que são, ao mesmo tempo, antídoto e veneno, e que nos socorrem contra eles mesmos. Há muita arte no tornar inocentes as coisas nocivas; mas há ainda mais arte no torná-las salutares; e trata-se de excelente ciência conseguir converter o mal em bem. Uma mesma coisa serve ou prejudica, segundo seus diversos usos; tornamo-la boa ou má segundo o uso no qual a aplicamos. Assim como um hábil Escudeiro não diminui a força e a coragem de um jovem cavalo, nem condena sua vivacidade e suas asperezas, mas as regra e as ajusta para que sejam úteis, da mesma forma esta potência que forma em nós as imagens das coisas, e através das quais nós as apreendemos, estando desordenada e errada, destrói inteiramente nossa alegria [Nieremberg está falando da Fantasia ou da potência Imaginativa; ndt]; é certo que ela pode nos ajudar bastante no estabelecimento da alegria, desde que seja instruída e treinada; ela pode produzir a paz e a tranquilidade do espírito. Aqueles que não acreditaram naqueles que a acusaram do contrário, e imaginaram que ela pudesse fazer crescer nossa miséria por suas invenções, tornando mais difíceis e duras nossas dores e calamidades, não consideraram que ela é capaz também de os diminuir; e que, estando pura e inocente – como nós queremos deixá-la – ela pode reparar os maiores ultrajes que recebermos da Fortuna. Aqui, é preciso que nos lembremos de que há duas ordens de coisas: uma que é aquela das coisas que são mutáveis e passageiras e não dependem em nada de nós; outra que é aquela das coisas que são firmes e permanentes, e que estão em nosso poder. Ora, visto que é puramente das primeiras que procedem nossas dificuldades, que são elas que causam nossos sofrimentos e penas, seja porque desejamos umas ou tomamos outras nas mãos, elas nos tornam incessantemente infelizes, elas nos causam sofrimento sem parar, seja pelo desejo, que pelo temor. Não seremos capazes de resistir a elas por nós mesmos; falta-nos coragem e força para nos defendermos de seus ataques. É preciso que sejamos prevenidos de toda e qualquer impressão favorável que nos assegure e nos fortifique no combate que devemos ter contra elas; que nós as fantasiemos e escondamos sob uma máscara que não seja semelhante a elas mesmas, desfigurando-as até ao ponto de não encontrarmos mais nada nelas que nos atraia; e que seja capaz, pelo contrário, de maquiar as outras, escondendo aquilo que nos assusta. É preciso que a Razão nos conceda esse bom ofício, e que ela nos dê esta impressão. E seguramente ela no-lo fará, desde que a escutemos falando-nos assim: “Guardai-vos de julgar aquilo que sofreis, porque são os vossos sentidos que vos dizem as palavras para o julgamento, e eles são enganadores e errados; é nisso que seu testemunho é menos admissível. Por que vos lamentais e vos atormentais tanto como fazeis? Aprendei que por mais forte que seja a dor, a Paciência é ainda mais forte; e que não há mal algum que possa ser maior do que a glória de o sofrer com constância. Se o mal passa rápido, a glória dura bastante; se o mal durar muito, a glória é eterna. Sofre-se com facilidade e sem maiores dificuldades quando se sofre voluntariamente. É nisso que há menos sofrimento e muita honra; a pena é leve, mas a glória não. É preciso aceitar os pequenos males, porque eles vos instruirão para a paciência; é preciso aceitar os grandes, porque eles vos serão gloriosos. E o que sabeis vós se eles ainda não são a causa e o instrumento de algum bem que deve vos chegar? O que sabeis vós se a infelicidade que vos atingiu não vos está preservando de uma infelicidade ainda maior? Se não é apenas um refúgio que a má sorte vos está abrindo contra ela mesma? O quê? Vós não vos lembrais de que sois? Não vos lembrais de vossa condição enferma? Pensai nisso seriamente, oponde bem ao vosso mal; oponde a lembrança de vossa fragilidade natural ao rigor das obrigações que ela vos impôs. Pensai no fato de que não sois Deuses, mas que sois homens; que não vos é menos próprio sofrer que viver; e servi-vos deste pensamento como quem se serve de um remédio soberano contra toda sorte de dores. Temperai a amargura de vossos males com a satisfação que tirais do conhecimento de vós mesmos. Mas, tudo isso é incapaz de fazer cessar vossas lamentações. Vós somente sois capazes de colocar em vosso espírito que aquilo que vos aflige é um mal. Será que vos esqueceis de que todas as coisas procedem de Deus? Que sendo, como Ele é, soberanamente bom, dEle nada pode vir que seja mau; que os efeitos não podem ser de outra natureza que suas causas; e que ordinariamente os riachos têm a mesma qualidade de sua fonte? Aprouve a Deus que este acidente vos tenha atingido; foi Ele que o ordenou, Ele o quis; será que vos deveis preferir vossa vontade à Sua? Será que vós deveis estimar mais vosso simples sentido à Sua suprema sabedoria? Não obstante isso, vós ainda murmurais e permaneceis em vosso endurecimento. Pois bem, atormentai-vos o tanto que quiserdes; abandonai-vos à cólera; segui a impetuosidade de vossa paixão; numa palavra, fazei tudo aquilo que vós imaginais ser capaz de levar para longe a vossa dor; tudo o que conseguireis é provar esta verdade: a impaciência azeda os males e os aumenta; pensar em curá-los através disso é cair na extravagância daquele que quis apagar o fogo com óleo, com algo que o acende ainda mais. Mas, meu mal é tão inconveniente, vós dizeis, que eu não consigo sofrê-lo; se ele fosse menor, eu conseguiria me consolar de alguma forma; se ele me fizesse sofrer apenas mediocremente, eu seria capaz de ter paciência. Quem já ouviu dizer que onde o inimigo faz mais esforços é onde ele falha menos na resistência? E não é verdade que quando a dor vos pressiona mais é que vós deveis testemunhar maior resolução? Mais uma vez, saibais que é apenas através disso que vós deveis esperar o fim de vossos males; que somente a paciência é capaz de vos fazer vencer vossas penas”. Certamente, se deixarmos a Razão nos falar assim, de formar tais pensamentos em nosso espírito, e de corrigir desta maneira os sentimentos que temos pelas coisas, nós as experimentaremos como sendo inocentes; elas não nos causarão problemas; e não encontraremos nada que seja duro ou difícil.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 431-435.
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