terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Segundo preceito - Capítulo II

CAPÍTULO II
Nós acusamos erradamente as coisas, lhes fazemos injustiça quando pensamos que elas se opõem à realização de nossos desejos; visto que elas não têm poder sobre nós, a não ser aquele que nossa Opinião lhes dá. Elas são incapazes de nos fazer o mal, a não ser aquele mal que nós lhes cremos capazes de nos fazer. Nisso, certamente, nossa condição é muito feliz; e devemos sustentar como sendo uma das mais nobres vantagens que nos vem da Razão – não vindo delas a nossa potência, nós as submetemos através de nossos sentimentos; nós as fazemos depender de nós, formando em nós a impressão de que elas nos agradam; e lhes dando a aparência e o rosto que melhor nos parecer. Ora, como, para bem dizer, elas só são aquilo que nossa estima a fazer ser, e como é absolutamente ela que as determina como bem ou mal, nós reinamos o suficiente sobre elas, através disso, sem dúvida; adquirimos o pleno direito de dizer se são boas ou más; não precisamos de nenhum outro título para admiti-las ou rejeitá-las. Como se nós nos encontrássemos cercados por diversos animais venenosos: não estaríamos em mais segurança se eles pudessem chegar até nós, do que se eles, estando próximos, não nos pudessem fazer mal algum; não devemos sofrer com o fato de não termos nenhuma jurisdição sobre as coisas, ou com o fato de elas estarem fora de nosso poder; visto que elas nos são submetidas exatamente naquilo que elas têm que nos pode fazer mal; e visto também que nós temos sua força e seu aguilhão em nossas mãos, por assim dizer. Nós a temos tão seguramente que, certamente, sem nós, elas não têm nem movimento nem vida. É somente a nossa Opinião que as faz contrárias ou favoráveis; que lhes dá armas ou as tira de suas mãos; que faz delas antídotos ou venenos. Sendo assim, qual é a razão, eu vos pergunto, para que nós temos para apreendê-las? Certamente que o mais tímido dos homens não temeria em nada um Leão que não tivesse nem dentes nem garras. Um Basilisco cego não é capaz de nos fazer mal algum; um Tigre desarmado de suas garras também não. Por que, então, caluniamos as coisas? Elas, por si mesmas, são inocentes e puras; elas não têm veneno, a não ser aquele que nossa imaginação derrama nelas. Elas não têm nem tintura nem cor; elas não têm nem sabor nem gosto. Segundo nossa Opinião as pinta e tempera, elas se tornam agradáveis ou desagradáveis, elas ficam doces ou amargas. Nesse sentido, admitimos o pensamento de Epícteto que lhes dá duas alças – uma das quais, as torna pesadas e difíceis de carregar; enquanto que a outra as torna leves e manejáveis; por aquela, nós só encontramos pena nas coisas; por essa, porém, nós encontramos facilidade. Nada nos chega da Fortuna que não tenha dois aspectos e que nossa Opinião não nos faça imaginar diversamente; a essas pinturas engenhosas que, vistas de viés, têm um aspecto diferente daquele que têm quando vistas de frente; que de um lado representam um esqueleto assustador, e do outro, uma escultura ridícula, e vistas de frente representam um belo rosto. Estes dois Filósofos da Antiguidade – Demócrito e Heráclito –, um dos quais tinha na vida humana um perpétuo motivo de riso, e outro que a entendia como motivo de lágrimas, tinham um mesmo objeto em vista e duas ações tão contrárias resultavam disso; eles não estavam vendo coisas diferentes, mas eles as viam diferentemente e em situações diversas. O mesmo ouro que Crasso adorava [certamente, trata-se de Marco Licínio Crasso (c. 115 a.C. - c. 53 a.C.), que foi um patrício, general e político romando do fim da Antiga república; conhecido por haver derrotado a revolta dos escravos liderada por Espártaco, e por sua proverbial riqueza; ndt], Cúrio desprezou [trata-se do mesmo Mânio Cúrio Dentato, sobre o qual já se fez referência; ndt]. Todas as coisas têm, assim, duas faces a partir das quais elas podem ser consideradas; elas têm dois vieses e duas direções – um agradável e outro não.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 436-438.

Nenhum comentário:

Postar um comentário