quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Quarto preceito - Capítulo III

CAPÍTULO III
Como é possível que, nisso, não tendo nada que nos estimule o suficiente a sermos mentirosos, não façamos nada com mais liberdade e em maior quantidade do que mentir? Sentimos vergonha, ficamos incomodados por sermos chamados de enganadores; e no entanto enganamos com muita facilidade e, às vezes até – o que é ainda mais estranho –, sentimos um certo prazer em enganarmos a nós mesmos. Entre todos os homens que podem servir de motivo para atiçar nossa cólera, não há nenhum contra quem ela se excita e se inflama mais fortemente do que contra aqueles, sob uma aparência de franqueza e de sinceridade, brincam conosco e nos traem. Isso não podemos suportar e, normalmente, testemunhamos extremos ressentimentos. No entanto, ficamos felizes de brincar conosco mesmo e nos trairmos a nós mesmos. Temos consciência de sermos astutos e enganadores com os outros; mas não temos nenhum escrúpulo de o sermos conosco mesmos; não apenas suportamos isso, como também isso nos agrada; e nossa depravação vai até ao ponto de, nisso, encontrarmos até mesmo alguma delícia. Tão logo descobrimos a Verdade, e este belo Astro derrama seus raios sobre nós, levamos as mãos aos olhos. Nós os fechamos para não ver sua luz; amamos as trevas e sentimos prazer com a obscuridade; como aqueles pássaros infelizes que não suportam a claridade do dia [no original latino, Nieremberg cita as corujas e os gatos almiscarados, ambos animais de hábitos noturnos; ndt]; às vezes até, muito pior do que eles, visto que o fazemos voluntariamente e por desígnio, enquanto que eles o fazem por fragilidade e por impotência. Se, segundo nosso próprio sentimento, há infâmia em fazer calar a Verdade, por causa do temor que temos do suplício e da morte mesma, será que nos cremos honestos ao suprimi-la por causa de um respeito muito menor do que este? Ou seja, para adquirir as riquezas e as outras vantagens desta vida – que são passageiras e vãs –, e adquiri-las perdendo os bens do Céu – que são sólidos e permanentes, e que o amor e a prática da Verdade faz com que sejam infalíveis? Havia uma Lei entre os Egípcios que obrigava os estrangeiros a ir uma vez por ano diante do Magistrado, para declarar seus exercícios e suas atividades; e que condenava à morte aqueles que, nisso, fossem surpreendidos mentindo. Eles acreditavam criminoso e indigno da vida aquele que a fantasiasse e não falasse dela com fidelidade. Podemos pretender-nos inocentes, nós cujas vidas são uma fantasia e uma mentira perpétua? Nós que temos prazer em nos enganar para nos escusar de bem viver? De que serve nos adularmos, se somos criminosos e não abraçamos a Verdade? Sem dúvida, nos devemos propô-la como a soberana regra de nossos pensamentos e de nossas ações; como aquela a que todas as criaturas se reconhecem obrigadas naquilo que fazem; a quem elas não apenas devem o ser como também o bem ser. E como a devemos amar, visto que, através dela, atingimos o máximo da felicidade! Será que não teríamos nem amor nem sentimento algum por aquilo que toda a Terra confessa e publica? Por aquilo que o Céu mesmo reverencia? Por aquilo que atrai todas as graças e faz descer todas as bênçãos? Será que não teríamos respeito pela coisa do mundo que mais merece respeito? Aquela coisa, diante da qual, se dobram e se humilham os mais nobres e os mais sublimes? Abracemo-la, portanto, de todo o nosso coração; consagremos a ela todas as nossas afeições. Ou, se não somos capazes de um tão alto efeito, se não lhe podemos dar nosso amor, não façamos dela, pelo menos, o motivo de nosso ódio. Humilhemo-nos em sua presença e pareçamos, ao menos, tomados por um religioso e santo temor. Será que somos mais seguros do que o Céu, que estremece, que treme, diante dela? 

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 477-480.

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