CAPÍTULO III
Portanto, é preciso que dediquemos todos os nossos cuidados no sentido de nos libertarmos dessa servidão; é preciso fazer todos os esforços possíveis para arruinar o Império da Opinião. Ora, a mais segura via para chegar a isso é, sem dúvida, examiná-la; para destrui-la, é suficiente entrar numa séria consideração sobre ela. Da mesma forma que, quando sonhamos, sofremos; quando imaginamos cair num precipício, ou que um inimigo coloca a espada em nosso pescoço, ou que estamos sendo perseguidos por algum animal selvagem, só conseguimos sair do sofrimento que essa imaginação nos causa, quando nos recolocamos no verdadeiro estado em que estamos; e dizemos, mesmo sonhando, que estamos sonhando; que aquilo que imaginamos não existe; que estamos em nossa cama e que não estamos no perigo que nossa imaginação perdida nos fez crer estar. Assim, quando nos parecer que tenhamos caído numa profunda desgraça, e que um poderoso problema nos devora, recolhamo-nos em nós mesmos e digamos com coragem que tudo não passa de uma ilusão que nos incomoda e que não é uma verdade; que aquilo que acreditamos ser, com efeito, está apenas em nossa imaginação; que é apenas uma máscara que nos assusta, ou um fantasma que nos alarma. Desta maneira, conseguiremos vencer mesmo nas dores mais obstinadas; esclareceremos nossas mais negras tristezas; elas desaparecerão diante de nós, como as nuvens que desaparecem diante do Sol. Através disso, dissiparemos todas as quimeras da Opinião; tornaremos seus artifícios vãos; e vendo que é somente ela quem nos faz mal, conseguiremos rir mesmo dos maiores horrores; caçoaremos da fraqueza onde tivermos caído em nossas lamentações. Será que não sentimos vergonha de ver que, se um copo ou outro recipiente semelhante vem a se quebrar e se fazer em pedaços, nós ficamos num estado de tal cólera, que se chega mesmo a parecer que tudo aquilo que possuímos de bens e de fortuna tenha caído ao mesmo tempo, e que, nisso, está a queda e a ruína mesma de nossa Razão? Um pedaço de cristal será o recife que a fará naufragar? E seremos tão censuráveis por ter um espírito tão pouco firme, tão pouco sólido, a ponto de ser comparável à fragilidade de um cristal? Eu vos pergunto: por que tanto barulho? O que pretendemos com todas as ameaças e injúrias que lançamos contra nossos criados? A este respeito, é preciso que apliquemos aquilo que Epícteto nos diz a respeito de tudo aquilo que acontece no mundo [trata-se de Epícteto (55-135); ndt]: que é preciso nos lembrarmos de que ele é feito da mesma maneira que essas coisas. Lembremo-nos de que não há nada de mais frágil do que o vidro; que sua natureza é quebrável; que este é o seu destino, por assim dizer. Certamente que os menores acidentes – pois mesmos eles acabam nos fazendo mal – são capazes de nos fazer muito, sobretudo quando é a Opinião que os provoca, sobretudo quando estamos esquentados pela cólera. Nesse ponto, podemos nos lembrar de um exemplo tirado de uma aventura acontecida com o conhecido Galeno, que justifica como ele não era menos Médico do espírito que do corpo, e que sua suficiência se estendia também para a cura das doenças do primeiro, assim como para a cura das doenças do corpo [trata-se de Cláudio Galeno (c. 131 - c. 200); ndt]. Voltando, um dia, de Roma a Pérgamo, com um Gortinense [cidadão de Gortina, na ilha de Creta; ndt], personagem bastante recomendado por causa de suas muitas qualidades, mas que as apagava todas devido à sua extrema prontidão para a cólera [no original latino, Nieremberg é mais detalhista na descrição: "Is comitem itineris Roma rediens habuit Gortynensem civem, pluribus quidem rebus non contemnendum, simplicem virum moribus, officiosum amicis, frugi secum, liberalem ad sumptus; sed cuius omnes istas dotes corrumpebat praecipiti phantasia furor"; que poderia ser traduzido assim: "No seu retorno de Roma, teve como companheiro um Cidadão de Gortina, verdadeiramente notável por muitas qualidades, homem de costumes simples, respeitoso com os amigos, moderado e, ao mesmo tempo, liberal no gastar; mas todas estes dotes eram corrompidos pelo furor de sua fantasia impetuosa"; ndt]; este cidadão embarcou uma parte de seus instrumentos no Porto de Corinto, para levá-los a Atenas; e tendo mantido o restante, alugou um carro e tomou seu caminho, por terra, junto com Galeno. Alguns dias depois, tendo pedido certos instrumentos a dois de seus Escravos, os quais ele queria ver naquele instante, e eles [os escravos; ndt], não conseguindo se lembrar, tão prontamente, onde eles estavam, e sua memória não estando igual à sua impaciência [à impaciência do cidadão de Gortina; ndt], ele ficou de tal forma sentido, e a Opinião que ele concebeu de que havia perdido aquele instrumento o encheu de tal forma de tanto furor que, os golpeando com uma espada, ele os encheu de tão grandes feridas que eles perderam muito sangue. Este espetáculo, fazendo-o voltar a si, e a razão retomando o lugar que a cólera lhe havia arrancado, fez com que ele sentisse tanto arrependimento e vergonha de ter se comportado daquela forma, que ele abandonou a companhia na qual estava e foi sozinho para Mégara, onde, reencontrando Galeno, que chegou ao mesmo tempo que ele, e lhe contando com dor aquilo que havia acontecido, ele lhe pediu que entrasse no quarto onde, colocando-se nu, apresentou-lhe uma correia e o conjurou a castigá-lo rigorosamente, dizendo que, por ter se tornado escravo de sua cólera, ele merecia, a bom direito, ser tratado como os Escravos, e sofrer a pena ligada à baixeza de sua condição. Mas, por mais instante que ele fosse, Galeno se recusou todo o tempo; finalmente, o Gortinense, tendo se jogado a seus pés, e tendo empregado novas conjurações acompanhadas de lágrimas, ele lhe prometeu satisfazê-lo, desde que, de sua parte, cumprisse uma condição à qual ele o queria obrigar, que era escutá-lo tranquilamente e sem interrupções sobre algo importante que ele queria dizer. O Gortinense, tendo ficado de acordo, escutou um longo e sério discurso sobre o fato de não estar nisso o meio para reprimir sua cólera, sobre o fato de que tudo o que era necessário era empregar a Razão, que é o soberano remédio contra todas as doenças do espírito. Esta verdade imprimiu-se tão fundo no Gortinense e produziu um efeito tão bom, que ele, a partir de então, adquiriu uma moderação evidente e nunca mais caiu no excesso no qual, tão frequentemente, ele costumava se lançar. Ele se curou das fraquezas e das ilusões da Opinião. Certamente, ela é tão perigosa, e as desordens que ela causa são tão estranhas, que eu conheci uma mulher que acreditava ter perdido tudo aquilo que ela possuía de mais precioso, quando perdeu um cãozinho que era seu único amor; passou dois dias inteiros chorando e, durante esse tempo, não comeu nem viu a luz do dia. Quer dizer, seus olhos estavam nas trevas da mesma forma que sua razão e que, somente com a luz do Entendimento, ela quis ainda perder a outra [no texto latino, Nieremberg é mais claro: "Unicum morum remedium, ratio est. Novi & ipse biduo abstinentem cibo omni, & luce foeminam, solum tenebris & lacrymis incumbentem, ob interitum catuli: pari caligine corpus damnavit mens caeca: carvit ratione recta, efficaci opinionis pharmaco". Que poderia ser assim traduzido: "O único remédio para os costumes é a razão. Eu mesmo conheci uma mulher que, por causa da morte de seu cãozinho, se absteve, por dois dias, da comida, fechada num quarto escuro, sem deixar entrar a mínima luz, desfazendo-se continuamente em lágrimas: a mente cega condenou a igual prisão o corpo: ficou privada da reta razão, fármaco eficaz contra a opinião". É interessante observar que há uma diferença - que já se fez notar em outros momentos do texto e sobre a qual teremos a oportunidade de dedicar uma explicação mais aprofundada - entre mente e razão, entre entendimento e razão. Diferença que não é estranha, nesse contexto histórico-cultural; ndt].
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 425-429.
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