terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Terceiro preceito - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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TERCEIRO PRECEITO
QUE devemos nos dedicar seriamente a nos distrair da Opinião

CAPÍTULO PRIMEIRO
Eis como, por esta indústria da Opinião corrigida e convertida a um bom uso, acalmaremos as agitações de nosso espírito, pacificaremos os conflitos e os movimentos de nossa Vontade. Por mais difícil e intratável que ela possa ser, a satisfaremos plenamente; ela não terá mais do que se lamentar; fecharemos inteiramente a sua boca. Ora, como ela é flexível e dócil, como não é de sua natureza que ela se torne problemática e rebelde e que, se ela o é, deve-se apenas à falta de instrução e de disciplina, a venceremos e ela abraçará o bem onde quer que ele se apresente e sob qualquer aparência que a Razão lhe mostre. Mas, é nisso que é necessário que nos governemos hábil e eficazmente. É preciso fazer com ela o que uma Mãe faz com seu filho. Da mesma forma que, quando ela vê que ele leva sua mão sobre uma faca, ela tem o cuidado de afastá-la dele; e vendo que ele se obstina a querê-la, gritando e se atormentando por causa disso, ela a retira dali e coloca em seu lugar uma noz ou uma batata, acalmando-a definitivamente; assim também, quando nossa vontade concebe algum desígnio ruinoso, quando solicita coisas capazes de lhe fazer mal, quando leva sua mão sobre o gume da Fortuna, por assim dizer, é preciso afastá-lo dela, subtrai-lo e colocar um bem em seu lugar, para que, ligando-se a ele, ela se acalme e nos deixe em repouso. Mas, porque a aparência sob a qual a Razão lhe mostra o bem não é a que aparece no início, porque nunca descobrimos a verdade de uma só vez, e porque um antigo Filósofo teve razão de dizer que ela se esconde no fundo de um abismo [no original latino, Nieremberg se refere a Demócrito; ndt], é preciso que o Entendimento aplique todos os seus esforços no sentido de procurá-la, é preciso que ele penetre fundo nas coisas até ao ponto de encontrá-la; da mesma forma que os avaros, que vão buscar o ouro até ao centro da terra. Da mesma forma que eles se dedicam noite e dia por causa disso e não param nunca, enquanto não descobrirem alguma coisa, também é preciso que nos dediquemos até encontrarmos nada. Que felicidade e que riqueza é encontrar esse nada! Pois são apenas coisas que o vulgo estima tanto, eleva a um tão alto ponto e deseja tão apaixonadamente. Aprendamos, aqui, a nos servir utilmente de nossa liberdade. Usemos, da forma como se deve, das luzes de nosso Entendimento. Façamos valer bem este instrumento tão nobre e tão capaz de operar nossa alegria. Que ele se empregue nisso e se dedique com todas as suas forças e com todas as ajudas que lhe vêm da Razão; que ele percorra Céu e terra para nos livrar, ou pelo menos, nos distrair de uma Opinião falsa e perigosa; e para nos persuadir de que aquilo que acreditamos ser um mal não o é. Será que sabemos que a memória das coisas duras e desagradáveis é, por si mesma, dura e desagradável? Elas são certamente mais cruéis do que aquela Serpente que traz seu veneno nos olhos, visto que ela só fere através da vista, enquanto que elas nos ferem com a nossa própria; elas se imprimem em nós, por nós mesmos; e se tornam o fatal instrumento de nossa infelicidade. Nisso, sem dúvida, elas são ainda piores, já que não ferem o corpo, mas o espírito; já que ofendem a parte que nos é mais sensível e difícil de curar; aquela parte na qual as menores chagas, sendo perigosas, se tornam facilmente incuráveis. Certamente, temos pouco cuidado com nosso repouso, ligando-nos à lembrança de coisas que nos inquietam e nos causam pena, afligindo-nos com pensamentos tristes e funestos, sem ousar nos distrair deles e transportar nosso espírito para além. Se nos acontece, alguma vez, de esclarecer e se dissiparem as nuvens que nos cobriam; se suspendemos nossa dor e eliminamos nossos problemas; tudo isso é apenas por um momento e, logo em seguida, voltamos a estar como estávamos. Como as crianças que persistem em querer brincar com o fogo, por mais que se queimem e não conseguem se impedir, de forma alguma, nem mesmo com o mal que dele recebem, de levar as mãos. No entanto, temos um meio bem presente e bem fácil para nos garantirmos contra a tristeza. Não consideremos as coisas desagradáveis, quando elas nos acontecerem; e não pensemos mais nela, depois que passarem. Não empreguemos tão mal a nossa memória, renovando a imagem dessas coisas. E se elas retornam, cuidemos que elas não nos causem nem terror nem espanto. É certo que quanto mais manipulamos uma ferida, tanto mais ela se envenena e cresce. De mesma forma que não somos tocados pelos males que não sabemos que nos vieram ao encontro, não sentiremos aqueles de que não nos lembramos mais; eles parecerão não terem acontecido, e nosso esquecimento produzirá o mesmo efeito que nossa ignorância. Sendo assim, não seria sinal de extrema fraqueza nos atormentarmos com as calamidades desta vida? Visto que o remédio é tão fácil de se empregar; e visto que, para nos defendermos, basta apenas não pensar nelas. Somos pouco razoáveis, quando temos tanta paixão e tanto ardor pelos bens; sobretudo quando eles têm em comum com os males o fato de só nos tocarem na medida em que são conhecidos, e quando podemos tão facilmente enganar o sentimento que eles nos dão. Por que é, para nós, tão difícil perdê-los, se, quando se trata de nossa felicidade, nos é indiferente tê-los ou não os ter? Se, não os possuindo, não deixamos de ser contentes? E, pelo contrário, os possuindo, não somos capazes de evitar a nossa miséria? Pensemos num avaro que perdeu seu tesouro, sem o saber; ele não deixará de se regozijar dele, imaginando ainda o ter; enquanto que, se lhe dissessem que ele não o possuísse mais, ele ficaria em desespero. Eu vos pergunto, quem mais, além da Opinião, produziria nele estes dois efeitos? Certamente, não é preciso outra prova para justificar que, assim como o mal que ignoramos não nos toca, aquele no qual não pensamos mais não é capaz de ser mais do que muito pouco sensível.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 467-471.

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