segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Quarta proposição - Capítulo II

CAPÍTULO II
Não é estranho que sejamos muito mais pouco razoáveis no bom senso do que seríamos na loucura? É bastante conhecida a loucura daquele Ateniense que, acreditando que todos os navios do Porto de Pireu eram seus, agia como tal, controlando aqueles que partiam; fazendo votos de que retornassem e, quando voltavam, testemunhando enorme alegria por seu retorno [no original latino, Nieremberg escreve: “Iniquius nostro insanimus iudicio, quam vecordia. Thrasyllus Aexoneus, profectus in Pyraeum, naves in album referebat proprium, quae subducebantur, suas aestimans: hac opinione, si quae in portu salvae venerant, immodica gestiebat laetitia”. O Porto de Pireu foi um importante porto da Grécia até o início da Era Cristã. Quanto ao personagem a que se refere, encontramos duas referências a ele, mas nenhum dado mais preciso: trata-se de Trasilo Assoneu, que é referido, em outra obra, como Trasilo, o Louco, mas não há dados sobre período que viveu e quem foi; ndt]. Como esta sua crença passou e a razão lhe retornou inteiramente, ele avaliou nunca ter sentido alegria mais pura e sensível do que quando tinha aquela posse imaginária. Não tenho, aqui, nenhuma intenção de determinar se somos ou não somos sábios. Mas, não tenho também nenhuma intenção de fingir que nossa extravagância é, muitas vezes, maior do que a dele. Choramos a perda de coisas que sabemos que não são nossas, mas que são dependentes inteiramente da Fortuna. Somos artesãos tão engenhosos de nossos próprios males, que nem mesmo o mais cruel e impiedoso de nossos inimigos seria incapaz de desejar um mal maior do que aquele que nos suscitamos a nós mesmos. Não perdemos nada quando não perdemos as coisas que estão dentro de nós – as únicas que podemos realmente chamar de nossas; e no entanto nós nos afligimos muito mais quando perdemos as coisas que não nos pertencem, a ponto de nada nos consolar. Da mesma forma que há homens que tremem simplesmente por ver certos objetos de quem não poderiam receber mal algum, e que há homens para os quais um pequeno ruído, como o de dois pedaços de ferro um contra o outro, ou de dentes esfregando, causa irritação e pena, nós nos atormentamos sem saber o motivo, concebemos males e temores estando em perfeita segurança. Acontece conosco o mesmo que acontece a alguém que olha de cima de um lugar bastante alto e que, incomodado por si mesmo, acaba caindo sem que ninguém o tenha empurrado. Caímos na dor, tendo sido empurrados apenas pela Opinião. Visto que, portanto, é constante o fato de que todos os nossos problemas provêm dela e que é somente ela que nos torna miseráveis, o remédio é fácil e a cura é certa: basta conhecer a causa do mal. [No original latino, Nieremberg, neste trecho, cita um pensador de nome Aríston: “Optime Ariston dixit inter insaniam publicam & hanc, quae medicis traditur, nihil interest, nisi quod haec morbo laborat”. Não encontramos, porém, algum dado que precise de forma mais exata a quem se refere. Sabemos que há um número grande de personagens na antiguidade com este nome: há um rei – Aríston de Esparta (séc. VI a.C.); há o pai de Platão – Aríston de Atenas (séc. V a.C.); há um filósofo peripatético – Aríston de Queos (séc. III a.C.); há um estóico – Aríston de Quios (séc. III a.C.); há outro peripatético – Aríston de Alexandria (séc. I d.C.); entre outros; ndt]. E se o entendimento, corrompido como está pela Opinião, conserva luz suficiente para julgar de onde procede a doença, e tem vigor suficiente para se defender; se o entendimento, fragilizado como se encontra, pode se livrar daquilo que lhe causa aflição; imaginemos do que ele não será capaz quando agir com toda a sua força e quando estiver plenamente assistido pela razão. Se, estando doente, ele pode curar-se a si mesmo; se ele pode expulsar a dor, está fora de dúvida que, estando são, ele poderá não admiti-la sequer de maneira muito melhor ainda. Às vezes, acontece que, encontrando-se em meio a uma grande e repentina infelicidade vinda de fora de si, que o entrega às forças da Opinião, e faz como que elas lhe imprimam falsas imagens, ele evita os transes e as amarguras que ela atrai em seguida, ele se garante contra os males onde caem aqueles a quem ela engana e que se deixam preocupar. Assim, os empregados de Pompeu, que o viram servindo-se de Vítima para a crueldade de seus inimigos, o viram mantendo os olhos secos e não derramaram uma lágrima sequer, até que, chegando a Tiro, onde não tinham mais nada a temer e se encontravam em perfeita segurança, eles se abandonaram à dor e ficaram extremamente afligidos. O objeto presente da morte que os ameaçava, e o violento desejo de fuga que os possuía igualmente, transportou seus espíritos para fora de sua sede natural e como que fechou todos os caminhos para a Opinião. Deixo de lado o fato de que o tempo é um excelente remédio contra a dor; já que a experiência nos ensina que não há dor tão forte que nos possa, de um só golpe, nos jogar no chão e que não enfraqueça como tempo; assim como, além do mais, não há nenhuma dor que não diminua quanto menos acreditemos ou confiemos na autoridade da Opinião.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 415-417.

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