segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Segundo preceito - Capítulo V

CAPÍTULO V
Mas, esta habilidade de tomar as coisas pelo lado onde elas não machucam, por onde elas não são rudes e maldosas, é-nos sobretudo necessária nas armadilhas e nas perseguições que a Fortuna prepara para nós. É nisso que ela tem seu uso mais justo e natural; e, sem dúvida, é justamente nisso que devemos mais praticar. Aquele, entre todos os males, de que os homens mais são presas na vida, contra o qual é preciso os maiores poderes e os mais frequentes remédios – a Pobreza – vem até a nós? Nâo consideremos as riquezas a partir do lado que as mostra como aquilo que serve às delícias; não as representemos como ministras da Volúpia, mas como Tiranos da Virtude; que é o lado pelo qual elas nos causam pena, e são motivo de depravação e devassidão. Pensemos que não há razão alguma de nos afligirmos por sua perda, ou que nos lamentaremos de nos termos curado de uma doença que, nos matendo em perpétua inquietude, nos arrancaria o gosto dos verdadeiros e legítimos prazeres, e perverteria nosso espírito, até ao ponto de torná-lo incapaz do sentimento de sua felicidade própria. Lembremo-nos de que não há nada que tenha menos capacidade de se manter do que as Riquezas; que, por mais maciço e pesado que seja o metal que as componha, elas são extremamente ligeiras; elas mudam constantemente de lugar; elas não têm nem postura nem firmeza. Caçoemos da inconstância da Fortuna, ao invés de nos deixarmos ferir por ela; e nos desenganemos do erro no qual caímos ao crer que ela nos dá bens verdadeiros; recorramos à Virtude, de quem podemos, de fato, esperar os bens verdadeiros, e cujas liberalidades são incomparavelmente maiores e constantes; nos dão abundantemente aquilo de que precisamos e nunca nos arranca aquilo que, uma vez, nos deu. Ela não deixa faltar nada a nós, daquilo que ela acredita que podemos tirar algum proveito. Se há algo que ela nos recusa, é tão somente aquilo que ela acredita que será causa de ruína para nós, e aquilo que só poderia ser fruto de sua liberalidade se ela fosse nossa inimiga. Por que nos incomodamos com as perdas, se podemos adquirir de volta aquilo que perdemos com muito mais vantagem? Se está apenas em nós retomá-los com nossos próprios fundos? Certo: estamos errados de nos lamentarmos da Pobreza, tendo, como temos em nós, um pronto, um infalível meio de nos garantirmos contra ela; sendo suficiente para nós, nisso, tão somente reprimir nossos desejos e corrigir nossa cobiça. Aprendamos que não há via mais segura para se tornar rico do que não desejar nada. Sem dúvida, tornaremos nosso tudo aquilo que não quisermos; adquiriremos, possuiremos todas as coisas, ao não ter paixão por nenhuma. Não nos é possível viver magnificamente? Não temos motivo para nos animarmos? Não olhemos para aquilo que nos agrada, mas para aquilo que nos é suficiente. Não acreditemos no gosto, que só busca a abundância e o luxo; mas acreditemos na Natureza, que pede a mediocridade [trata-se do conceito de meio-termo ou de indiferença; ndt] e que é inimiga do excesso. Tendo pouco para comer, não nos deixamos levar pela Volúpia. Somos mais sãos e menos malvados, fechamos as portas para os vícios que a acompanham e não deixamos entrar em nós nada além dela, evitamos as enfermidades e as doenças que ela atrai em seguida. Regozijemo-nos do fato de que a Pobreza nos obrigue à sobriedade, nos faz ser, por necessidade, aquilo que que deveríamos ser voluntariamente. Pensemos que uma comida leve produz, ordinariamente, uma saúde firme e vigorosa; e – o que não é menos importante – nos dá uma disposição grande para a prática do bem; nos torna mais hábeis e mais preparados para o exercício da Virtude. Mas, nos incomoda ainda sermos privados dos prazeres de comer? Temos dificuldades para renunciar às delícias da boca? Pensemos em Epicuro e nos encontraremos, como ele, numa vida mais simples e austera do que aquela a que nos reduzimos. Nós o encontraremos na abstinência, e experimetaremos que é verdadeiramente nisso que consiste a Volúpia, que pensamos estar na opulência e das superfluidades. Falharam nossas esperanças? Descobrimo-nos decepcionados em nossas pretensões e expectativas? Não pensemos nas vantagens que não obtivemos, mas para os inconvenientes que evitamos. Não olhemos para a eminência do lugar onde queremos chegar, mas para a profundidade do precipício onde podemos cair; e pensemos que nossa elevação pode ser a causa de nossa ruína. Lembremo-nos de que o orgulho das Torres é abatido pelas tempestades e pelo relâmpago; e que a baixeza das cabanas está protegida; e de que a mediocridade [no texto latino, Nieremberg usa o termo mediocritas, que significa meio-termo, ou indiferença; ndt] é, ordinariamente, acompanhada da segurança. Pois bem, somos excluídos do emprego no qual gostaríamos de estar; a dignidade que pedíamos foi-nos recusada; não pensemos que, por isso, ficaremos ofendidos e que seja preciso tomar esta recusa como uma injúria. Nisso, só se fez aquilo que deveríamos ter feito nós mesmos. Imprimiu-se nossa ambição? Devemos, sem dúvida, corrigi-la. Imitemos a Sabedoria da Natureza na união maravilhosa das partes que compõem o Universo. Toda inimizade que reine entre elas, por causa de suas qualidades contrárias e opostas, vemos como são colocadas juntas numa paz comum e vivem em amizade. Assim, por mais que o fogo não esteja de acordo com o ar, visto que aquele é seco e este úmido, eles se unem porque ambos são quentes, e nisso está o vínculo de amizade que os une. O ar e a água são verdadeiramente inimigos, por causa do calor do primeiro e do frio da outra; mas, para além disso, eles se dão as mãos, eles se ajustam na sua umidade comum. Da mesma forma a Terra árida e seca que não é compatível com a água, na medida em que esta última é úmida, mas elas se aliam, visto que ambas são frias. E assim, chocando-se por um lado, se abraçam por outro, e formam entre si uma estreita amizade. Saberíamos ser melhor instruídos que por isso, por esta importante verdade, segundo a qual não é preciso, de forma alguma, tomar as coisas a partir do lado que evidencia o mal que elas nos fazem, mas a partir daquele que mostra como elas são capazes de trazer algum proveito?

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 444-448.

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