segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

I Tópico sobre uso da opinião - Capítulo I

A ARTE
DE CONDUZIR
A VONTADE

LIVRO TERCEIRO
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TÓPICO PRECEITUAL SOBRE O USO DA OPINIÃO
PRIMEIRO LUGAR
DA comparação com a Fortuna

CAPÍTULO PRIMEIRO
No entanto, a fim de nos desenganar mais felizmente e nos tornar mais útil e salutar o uso da Opinião, apresentaremos algumas Máximas, e esta será a primeira: compararmo-nos, nos desprazeres e nas desgraças que nos acontecem, com a Fortuna dos outros [é interessante notar que, na tradução francesa, Louys Videl não respeitou a divisão utilizada por Nieremberg no original latino: na versão francesa – diferentemente da versão italiana –, o tradutor optou por continuar a sequenciação dos capítulos como parte do mesmo segundo preceito, enquanto que o original dá início a uma nova parte do mesmo livro terceiro intitulada “Praecepta topica in usu opinionis. Locus I. Ex comparatione fortunae”. Na continuidade, Nieremberg faz uso da mesma estratégia usada por Videl, em sua tradução: começa explicando, tal como o fez o tradutor, dizendo que “Atqui, ut possis te solerter fallere salutati opinionis usu, aliqua memoranda sunt praecepta. Primum sit comparatio fortunae”. Sendo assim, em respeito ao original latino, optarei por seguir a numeração e a capitulação propostas por Nieremberg; ndt]. Nisso, sem dúvida, estará motivo suficiente para que não nos ressintamos desses desprazeres e desgraças: por mais malvado que seja o tratamento que recebamos da Fortuna, não nos acreditaremos infelizes; às vezes, inclusive, encontraremos nisso – naquilo que pensamos ter motivo para a tristeza – motivo para alegria. Consideremos seriamente, em seguida, esta importante verdade, pronunciada por um grande homem: que não é necessário acreditar um mal aquilo que outro crer ser um bem [no original latino, Nieremberg escreve: "Sapienter Barbarus sapiens ait: Non est malm, quod cum alio comparatum bonum est", não se referindo, portanto, a um personagem específico. Será necessária uma pesquisa com a finalidade de identificar, entre os autores comumente citados por Nieremberg, aquele que melhor represente a ideia apresentada; ndt]. Caimos na pobreza? Por que nos abandonamos à dor, se outras pessoas, em situações semelhantes, consolam-se mais facilmente? Não é verdade que antes que tívessemos tido o bem, ficamos sabendo que ele coincidia com a alegria? Ei-nos, de novo, nos mesmos termos, de volta àquele estado capaz de contentamento; nos regozijamos, qual a razão que temos para nos afligir? Acontece de sermos frustrados em nossa expectativa? Teremos menos do que esperamos? Teremos menos do que o que nos é necessário? Teremos motivo para nos maravilharmos com o fato de nos encontrarmos acima de nossas esperanças, tendo as levado para além do dever e da razão? E haverá motivo para se espantar com o fato que, sendo ilegítimas e sem fundamentos, elas se arruinem? Sem dúvida, esperando mais do que deveríamos, é justo que tenhámos menos do que esperamos. Avalio que perdemos muito, mas ainda nos resta algo. Eis o erro ordinário de todos os homens, que é considerar eternamente aquilo que lhes falta, e nunca pensar naquilo que têm. Esquecendo aquilo que permanece, nós nos arrancamos tudo o que temos, e tratamos a nós mesmos com mais rigor do que tratamos a Fortuna que se entregou por nós. Aqui, somos como crianças: se alguém lhes tira seus brinquedos, eles jogam, por despeito, todos os demais; e, porque não lhes dão aquilo que querem, elas não querem nada. Será que não ouvimos falar daquilo que aconteceu a Sócrates quando conversava com alguns de seus amigos? Como eles estavam indo se colocar à mesa e Alcibíades veio e levou metade da carne. E como Sócrates, ao invés de se ofender, assumiu um sentimento contrário, testemunhando obrigação para com Alcibíades, na medida em que este, podendo levar toda a carne, deixou uma parte [Alcibíades Clínias Escambônidas (c. 450 a.C. - c. 404 a.C.) foi um general e político ateniense, amigo e entusiasta do filósofo Sócrates que, em 432 a.C., lhe salvou a vida; ndt]. Devemos agir igualmente com a Fortuna, agradecendo-a por aquilo que ela nos deixa, e não nos incomodando em nada com aquilo que ela nos tira. Ela nos tira menos do que nos dá; os bens que dela recebemos merecem que soframos com seus maltratos, sem que murmuremos. Ela reparou, talvez, com alguma outra coisa o mal que nos fez. Se é uma falta que ela cometeu, pode ser que, mais tarde, ela a corrija. Depois de tudo, não é mais razoável regozijarmo-nos com as coisas que nos ficam, do que nos afligirmos com aquelas que perdemos? Da mesma forma como elas estão fora do nosso poder, que elas estejam fora da nossa memória. Não pensemos nelas mais, sobretudo se elas não foram nossas; não pensemos que nossa condição é pior só porque não as possuímos. Sintamos prazer pelas coisas presentes, e deixemos perder o lamento pela perda da posse. Por que nos cremos infelizes se, comparando-nos aos outros, justifica-se não apenas que não o somos, como também que temos motivo suficiente para louvar nossa fortuna? Regozijemo-nos muito mais com o fato de que ela poderia ser pior e com o fato de um mal maior poderia nos chegar. Não levantemos os olhos para olhar de onde caímos; mas os abaixemos, para ver onde ainda podemos cair; e reconheçamos a graça que nos garantiu ir até ao fundo do precipício. Que nos aconteça que muitas pessoas queiram seram infelizes como nós o somos; e que aquilo que chamamos nossa miséria seja sua felicidade. Aristipo, tendo perdido um fundo que lhe trazia muita felicidade, não apenas não ficou chateado, como também consolou aqueles que se afligiam; e como um adulador parecia sentir mais dor do que os demais, ele lhe disse: Meu amigo, tens apenas um pequeno fundo, e eu ainda tenho três; tens muito mais motivo para te lamentares do que eu. Acredito que tua condição seja ainda mais infeliz do que a minha. Ele soube, através disso, acalmar sabiamente o mal-estar que ele poderia ter por sua perda; ele nos deu o exemplo daquilo que devemos fazer quando nos encontramos acolhidos por uma semelhante ou maior infelicidade.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 448-451.

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