CAPÍTULO QUARTO
Consideremos seriamente o quão rara é a vantagem que a moderação nos concede, já que é certo que, reprimindo nossa cobiça, arrancamos da Fortuna o mais seguro meio que ela possui de nos causar mal. Mas, não pensemos, no entanto, que nisso precisamos de nossa vontade inteira, seguramente a metade já será suficiente. E saibamos que é como um arco, cuja força aumenta quanto mais curvado for, e que não tem força nenhuma se estiver extendido. Pensemos em nossa liberdade natural como se ela tivesse duas mãos; pois é assim que, muito propriamente, se pode nomear seus dois privilégios – querer e não querer. Somos frágeis e impotentes no caso da primeira [das mãos; ndt]; mas, pelo contrário, somos muito mais fortes quanto a outra, já que está absolutamente em nosso poder não querer aquilo que não temos. Através daquela, nós nos abandonamos, nós nos entregamos a todas as coisas que estão fora de nós, tornamo-nos escravos da Fortuna; mas através desta, nós nos tornamos seus senhores, nós a submetemos absolutamente a nosso poder. Aquele que obstaculiza sua cobiça pode muito bem se gloriar de estar protegido e como que intrincheirado contra os esforços desta inimiga. Que fraqueza é essa nossa que chega a temê-la, se somos mais fortes do que ela somente usando metade de nossa vontade, como o somos seguramente? Basta-nos uma mão para resistir a ela. Basta-nos uma perna para correr atrás de nossa felicidade. Mas, não é apenas nisso que se encontra toda vantagem que a moderação nos traz. Como ela nos permite apreender as injúrias da Fortuna, ela nos dá muito abundantemente o suficiente para não desejar seus favores; ela nos enche de bens; e sua magnificência se dirige a nós de forma tão favorável que, comparados a nós, os mais opulentos Monarcas parecem pobres. E o que é ainda mais raro é que nossa riqueza não é menos inesperada que grande, visto que para adquiri-la seja necessário apenas não querer. Toda a prudência humana seria capaz de nos conferir um meio mais adequado e seguro para nos enriquecer? O que poderíamos desejar mais do que ver pobre, em comparação conosco mesmos, aquela que dispensa os próprios tesouros? Assim, ela não terá nada que nos atraia e nos chame a atenção. Não haverá nada em nós que aja segundo sua inteligência e que conspire a favor dos desígnios que ela tem de nos agradar, para nos enganar. Por uma vantagem muito mais excelente que a do famoso Rei cujo toque criava ouro [trata-se do Rei Midas, personagem da mitologia grega agraciado por Baco com o dom de transformar em ouro tudo o que tocava; ndt], nós possuímos tudo, simplesmente não querendo nada; nós possuímos tudo não apenas não tendo o trabalho de tocar as coisas, como também sequer tendo o trabalho de lançar um olhar; imagine-se o quão mais fácil é ter sem desejar? Assim, por um maravilhoso efeito de nossa moderação, seremos ricos de nossa pobreza mesma. Escutemos, a esse respeito, um grande homem [no original latino, Nieremberg escreve: "Egregie Eusebius philosophatur: Πλάσιον χεή νομίζειν τί ήγεάμά ον έχειν τά άρκέοντα. (...)". A citação em grego continua, mas apresenta inúmeras manchas que dificultam a transcrição. De qualquer forma, fica claro que o "filósofo" a que se refere é Eusébio de Cesareia (c. 265 - 339), que é considerado o "pai da história da Igreja", visto ser o primeiro a se dedicar à história do cristianismo primitivo; ndt] que nos ensina que é preciso estimar rico e feliz aquele que limitando suas esperanças e seus desejos, persuade-se de ter o suficiente, mesmo que, com efeito, ele tenha pouco. Que, pelo contrário, aquele que lhe dá livre e plena extensão e que se dedica sem cessar a adquirir novos bens, seria incapaz de se defender de ser pobre, não conseguiria evitar ser infeliz; visto que ele se considera como tal; que mesmo parecendo rico, ele, na verdade, não o é; e que a cobiça é um abismo que, contra a natureza dos outros, se enche muito mais de pequenas coisas do que de grandes. Assim, somos muito mais ricos quanto mais possuimos tudo através da Vontade que nada quer. Temos tudo, certamente, desde que creiamos ter o suficiente. O que eu poderia dizer a mais? Temos muito mais do que poderíamos ter; todas as coisas do mundo são supérfluas para nós; e se nós não as temos realmente, imaginemos possuir infinitamente mais, já que temos o meio para isso.
NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 210-212.
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