quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Reflexões - Capítulo VIII

CAPÍTULO OITAVO
Assim, portanto, o Apóstolo [refere-se ao apóstolo São Paulo; ndt], não ignorando que todas as coisas do mundo estão fantasiadas, não aconselha a nos fantasiarmos também, visto que elas participam de todos os atos da comédia que se encena, visto que ela [a comédia do Teatro do Mundo; ndt] nos acomuna a elas, e ela será defeituosa se o número de personagens não estiver completo. Sabemos que os Atores podem até parecer alegres ou tristes, mas toda a sua paixão está apenas no gesto; sabemos que eles choram sem se afligir; que elas ameaçam sem estar em cólera, que nada daquilo que eles representam deixa alguma marca em seu espírito. Que feliz é aquele que, os imitando, sabe se conservar nesta indiferença e que, agindo como o Ator de uma Comédia, exprime as paixões de outros, mas, com efeito, não sente nada dessas paixões. Esta habilidade nos é tão importante e necessária que não haveria melhor maneira de manter nosso repouso do que a praticando. Mas, a este respeito, não consultemos os Oráculos da Sabedoria humana; e ainda que eles estejam de acordo em nos dar seus conselhos, recebamo-los mais da boca do Apóstolo, que os recebeu do Céu. Qualquer que tenha sido a condição para a qual Deus nos tenha chamado – e, para não nos afastarmos dos termos que vimos usando, qualquer que tenha sido o personagem que Ele tenha achado melhor que nós representássemos nesse mundo – não O contradigamos em nada; cuidemos apenas de desempenhá-lo bem, pensemos apenas em cumprir nosso dever. Não apenas Ele é o Diretor e o Mestre do Teatro, como também Ele é o Autor da Comédia; foi Ele quem distribuiu os papéis segundo Sua sabedoria eterna; segundo aquilo que Ele julgou mais adequado para cada um. Seja qual for a nossa qualidade – ilustre ou obscura, elevada ou abjeta, de grande ou de pequena extensão – não descuidemos de nada; cuidemos bem de realizar com prazer; não sejamos imprudentes de querer escolher ou pedir outro papel que não nos pertença; e quando estivermos livres, tenhamos por indubitável que não sabemos usar da liberdade adequadamente, que sempre acabamos por escolher aquele papel que achamos mais conveniente para nós. Sem dúvida, pertence apenas ao Mestre da Comédia nos conferir o papel que deveremos desempenhar; é apenas Àquele que conhece melhor nossas capacidade que cabe a escolha. Quem é que sabe incomparavelmente mais do quê cada um de nós é capaz? Como o artesão sabe qual é o melhor uso e o emprego para os diversos vasos que ele fez com suas mãos. Além do mais, não pensemos que a honra seja maior por representar um Príncipe do que um Artesão, um homem de condição do que um homem do vulgo; pensemos, isto sim, que devemos representá-los sempre com dignidade, pois vale muito mais representar um pobre, sob vestes de pouco valor, sob trapos e andrajos, do que representar um Rei, com todos os ornamentos que acompanham a Realeza, como diadema e o Cetro. Assim como a excelência de um Ator está em ter sucesso em todas os papéis que ele representa na Comédia, nosso cuidado deve ser principalmente o de compor tão bem a todos os Atos de nossa vida que o fim e o meio não sejam menos virtuosos e menos dignos de estima do que o começo. Ora, o meio mais seguro de conseguir isso é tornar nossas ações conformes a nossos discursos, e instruir os outros na virtude, mais através de nosso exemplo do que de nossas palavras.

NIEREMBERG, Jean Eusebe. L'art de conduire la volonté selon les preceptes de la Morale Ancienne & Moderne, tirez des Philosophes Payens & Chrestiens. Traduit du Latin de Jean Eusebe Nieremberg, Paraphrasé & de beaucoup enrichy par Louys Videl, de Dauphiné. Dedié à Monsieur de Lionne, Conseiller d'Estat ordinaire & Secretaire des Commandements de la Reyne Regente. Paris: Chez Jean Pocquet, 1657, pp. 200-202.

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